Io credo nelle persone, però non credo nella maggioranza delle persone. Anche in una società più decente di questa, mi sa che mi troverò a mio agio e d'accordo sempre con una minoranza. (Nanni Moreti)
Acerca de mim
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
Pearls
Iludo-me na justa crença de que posso ser outro, de que posso ser aquilo que os meus sentidos e a minha cabeça me dizem para que eu seja. Sei que sou capaz de ser outro numa espécie de esquizofrenia que me chega a fazer crer que serei mesmo capaz de ser um outro a quem me dirija de mãos abertas, porque apenas assim me sou capaz de dirigir aos outros. Esse é o gesto que tenho treinado sempre: seguir ao encontro do outro de mãos abertas. Para isso tenho treinado e por causa disso, quando olho para a adversidade sei encontrar aquilo que nela é circunstancial, passageiro, como, afinal de contas, tudo o resto, se assim entendermos a nossa insignificância absoluta. A contingência do presente é apenas o lugar onde aprecio o modo como a sociedade de bem-estar tornou mimados aqueles que agora mais se queixam da vida.
Lembro-me bem de ver pessoas, adultos, crianças, caminhando despidos pela rua em pleno inverno, na terra onde cresci. Lembro-me da quantidade de pessoas sem teto que viviam na rua que ficava abaixo da minha. Lembro-me do tempo em que alguém que me era próximo se esforçava por distribuir alimentos por aqueles que mais necessitavam. Lembro-me de uma terra onde não havia nem direito à saúde, nem à educação. Por mais que as privações nos batam à porta, os ganhos são tão assinaláveis que apenas num silêncio contemplativo poderei exprimir-me.
Enquanto tanto de extraordinário nos aconteceu, houve sempre uma mulher na Somália ou noutro lugar qualquer do mundo a lutar. Silenciosamente.
E continua…
Laughing Gravy
The crisis has just passed.
Uh-oh, here it comes again,
looking for someone to blame itself on, you, I...
All these people coming in...
The last time we necked
I noticed this lobe on your ear.
Please, tell me we may begin.
All the wolves in the wolf factory paused
at noon, for a moment of silence.
Uh-oh, here it comes again,
looking for someone to blame itself on, you, I...
All these people coming in...
The last time we necked
I noticed this lobe on your ear.
Please, tell me we may begin.
All the wolves in the wolf factory paused
at noon, for a moment of silence.
John Ashbery, Notes from the air, selected later poems
Chorar
«Entre o asceta e o homem vulgar não conheço, na esfera da dignidade da alma, uso intermédio ou médio termo. Quem usa que use, quem abdica que abdique. Use com a brutalidade do uso; abdique com a absoluteza da abdicação. Abdique sem lágrimas, sem consolações de si mesmo, senhor ao menos da força da sua abdicação. Abdique sem lágrimas, sem consolações de si mesmo, senhor ao menos da força da sua abdicação. Despreze-se, sim, mas com dignidade.
Chorar ante o mundo - e quanto mais belo o choro, mais largo mundo se lhe abre e mais pública vergonha - eis a última indignidade que pode praticar sobre a sua vida íntima um vencido que não conserva a espada para o último dever do soldado. Somos todos soldados neste regimento instintivo da vida: temos de viver com a lei da razão ou com nenhuma lei. O prazer é para os cães, a queixa para as mulheres; o homem tem somente, de seu e próprio, a honra ou o silêncio. Senti isto, mais que nunca, nas chamas do fogão em que acabei para sempre com os meus escritos.»
Chorar ante o mundo - e quanto mais belo o choro, mais largo mundo se lhe abre e mais pública vergonha - eis a última indignidade que pode praticar sobre a sua vida íntima um vencido que não conserva a espada para o último dever do soldado. Somos todos soldados neste regimento instintivo da vida: temos de viver com a lei da razão ou com nenhuma lei. O prazer é para os cães, a queixa para as mulheres; o homem tem somente, de seu e próprio, a honra ou o silêncio. Senti isto, mais que nunca, nas chamas do fogão em que acabei para sempre com os meus escritos.»
Barão de Teive, A Educação do Estóico
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
As Trevas da Tua Dor
E também te podem dizer
sê servil na pátria dos outros
pois a tua terra deixou-te nascer
somente para a fome ou para que vivas
no chiqueiro de um porco. Emigra e
volta da pátria dos outros
sem palavras, mas carregado de coisas
se, acaso, tiveres sorte, isto é,
se fores suficientemente servil.
Podes depois voltar
com alma de aluguer
abandonada que foi a tua terra
para te sujeitares ao trabalho que
te envergonharias de fazer. E
quando regressares - julgando tu que
regressar é verbo que se conjuga -, vais
julgar-te um herói, qualquer coisa,
só porque andas com máquina de vídeo
choldreando por todo o lado. Isto é
também a tua pátria, a tua vida. E
não há cão que
uive às trevas da tua dor.
sê servil na pátria dos outros
pois a tua terra deixou-te nascer
somente para a fome ou para que vivas
no chiqueiro de um porco. Emigra e
volta da pátria dos outros
sem palavras, mas carregado de coisas
se, acaso, tiveres sorte, isto é,
se fores suficientemente servil.
Podes depois voltar
com alma de aluguer
abandonada que foi a tua terra
para te sujeitares ao trabalho que
te envergonharias de fazer. E
quando regressares - julgando tu que
regressar é verbo que se conjuga -, vais
julgar-te um herói, qualquer coisa,
só porque andas com máquina de vídeo
choldreando por todo o lado. Isto é
também a tua pátria, a tua vida. E
não há cão que
uive às trevas da tua dor.
João Miguel Fernandes Jorge, Terra Nostra
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
Il logos spurio
«Gli individui da cui prendono origine le espressioni astratte possono essere semplici specchi riflettenti e allora nella costrizione del logos si propagherà la violenza dei contatti metafisici; di regola però si instaura un rapporto tra le rappresentazioni concrete che innestandosi nell'unità espressiva dell'organismo umano si collegano, attraverso il meccanismo della causalità, ad altre serie rappresentative concrete, si manifestano come centri propulsivi di concatenazioni espressive circoscritte, in cui l'individuo è pensato come origine prima, e dànno luogo all'apparenza mitica della volontà, dell'azione e del libero arbitrio. In base al suddetto rapporto la rappresentazione astratta viene allora assunta come ratio volendi, come "motivo" per un' "azione" dell'individuo, ossia per una modificazione causale in una catena rappresentativa.
È normale che i pensieri, le parole e i discorsi degli uomini obbediscano a questo intreccio eterogeneo di spunti e cammini espressivi, cosicché una formazione grezza degli universali, una mescolanza caotica del necessario e del contingente nei nessi rappresentativi, la subordinazione di ogni prodotto astratto e discorsivo al propagarsi individuale, al di là della convergenza organica in cui si costituisce, della spinta espressiva primaria - tutto ciò potrà chiamarsi appunto un logos spurio. Se ne raffigurano varie specie, a cominciare dal discorso poetico, dove il potere astraente della parola è contrastato, la costrizione è superata dal giuoco e spesso il diaframma dell'organismo viene anche a cadere, al discorso retorico, dove la costrizione è cercata per legare, assieme agli universali, altresì gli individui, e viene chiamata persuasione, giù sino ai discorsi semplicemente umani, siano essi conversazioni, comandi, informazioni e via dicendo.»
È normale che i pensieri, le parole e i discorsi degli uomini obbediscano a questo intreccio eterogeneo di spunti e cammini espressivi, cosicché una formazione grezza degli universali, una mescolanza caotica del necessario e del contingente nei nessi rappresentativi, la subordinazione di ogni prodotto astratto e discorsivo al propagarsi individuale, al di là della convergenza organica in cui si costituisce, della spinta espressiva primaria - tutto ciò potrà chiamarsi appunto un logos spurio. Se ne raffigurano varie specie, a cominciare dal discorso poetico, dove il potere astraente della parola è contrastato, la costrizione è superata dal giuoco e spesso il diaframma dell'organismo viene anche a cadere, al discorso retorico, dove la costrizione è cercata per legare, assieme agli universali, altresì gli individui, e viene chiamata persuasione, giù sino ai discorsi semplicemente umani, siano essi conversazioni, comandi, informazioni e via dicendo.»
Giorgio Colli, Filosofia dell'Espressione
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
Poetry
«With Nietzsche, however, the categories of analysis began to dissolve. The "forms" which Hegel found in history, no less than the "laws" found by Marx, were defined by Nietzsche as nothing but fictions, products of the poetic imagination, more or less useful or convenient for the living of a particular kind of life, but in no way adequate to the discovery of the truth of human life. For Nietzsche, full authority for determining which "forms" and which "laws" will be treated as if they are the "truth" is vested in the sovereign ego or will, which admits no law except its own life interests or will to power. Nietzsche even dissolved the distinction between the Comic and the Tragic kinds: the conventional Ironic kind, which teaches resignation to "things as they are"; and the new, Comic, Apollonian-Dionysiac kind, which teaches a radical overcoming of all situations in the service of the life force alone. In short, Irony is assimilated to Tragedy, and Tragedy to Comedy, in such a way as to make the distinctions between them inconsequential, in the same way that the distinctions among science, philosophy, and poetry are dissolved by their progressive assimilation to the last-named.»
Hayden White, Metahistory, The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe
Swann
«Mas, mesmo do ponto de vista das coisas mais insignificantes da vida, nós não somos um todo materialmente constituído, idêntico para toda a gente e de quem cada um apenas tenha de tomar conhecimento, como de um cadernos de encargos ou de um testamento; a nossa personalidade social é uma criação do pensamento dos outros. Mesmo o acto tão simples a que chamamos «ver uma pessoa conhecida» é em parte um acto intelectual. Preenchemos a aparência física do ser que vemos com todas as noções que temos sobre ele e, na figura total que imaginamos, esses noções possuem certamente um importante papel. Elas acabam por inchar as faces tão perfeitamente, por acompanhar numa aderência de tal modo exacta a linha do nariz, tratam tão bem de graduar a sonoridade da voz como se esta não passasse de um transparente invólucro, que, de cada vez que vemos este rosto e que ouvimos esta voz, são essas noções que reencontramos, são elas que escutamos. Por certo, no Swann que tinham fabricado, os meus parentes haviam omitido por ignorância a entrada de inúmeras particularidades da sua vida mundana que faziam com que outras pessoas, quando estavam na sua presença, vissem as elegâncias reinarem no seu rosto e deterem-se no seu nariz curvo como sua fronteira natural; mas haviam podido também amontoar naquele rosto desviado do seu prestígio, desocupado e espaçoso, no fundo daqueles olhos depreciados, o vago e doce resíduo - meio memória, meio olvido - das horas ociosas passadas na sua companhia depois dos nossos jantares semanais, em redor da mesa de jogo ou no jardim, durante a nossa vida de boa vizinhança campesina. O invólucro corporal do nosso amigo tinha sido tão bem atestado de tudo isso, assim como de algumas recordações relativas aos seus pais, que aquele Swann se tornara um ser completo e vivo, e tenho a impressão de abandonar uma pessoa para ir para outra dela distinta quando, na minha memória, do Swann que conheci mais tarde com exactidão passo àquele primeiro Swann - àquele primeiro Swann em quem reencontro os encantadores erros da minha juventude, e que aliás se assemelha menos ao outro que às pessoas que conheci pela mesma época, como se a nossa vida fosse como um museu, onde todos os retratos de um mesmo tempo possuem um ar de família, uma mesma tonalidade -, àquele primeiro Swann cheio de vagares, perfumado pelo aroma do grande castanheiro, dos cestos de framboesas e de um raminho de estragão.»
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, Do Lado de Swann
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
A Mário de Andrade Ausente
Anunciaram que você morreu.
Meus olhos, meus ouvidos testemunham:
A alma profunda, não.
Por isso não sinto agora a sua falta.
Sei bem que ela virá
(Pela força persuasiva do tempo).
Virá súbito um dia,
Inadvertida, para os demais.
Por exemplo assim:
À mesa conversarão de uma coisa e outra,
Uma palavra lançada à toa
Baterá na franja dos lutos de sangue,
Alguém perguntará em que estou pensando,
Sorrirei sem dizer que em você
Profundamente.
Mas agora não sinto a sua falta.
(É sempre assim quando o ausente
Partiu sem se despedir:
Você não se despediu.)
Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.
Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?
A vida é uma só. A sua continua
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.
Meus olhos, meus ouvidos testemunham:
A alma profunda, não.
Por isso não sinto agora a sua falta.
Sei bem que ela virá
(Pela força persuasiva do tempo).
Virá súbito um dia,
Inadvertida, para os demais.
Por exemplo assim:
À mesa conversarão de uma coisa e outra,
Uma palavra lançada à toa
Baterá na franja dos lutos de sangue,
Alguém perguntará em que estou pensando,
Sorrirei sem dizer que em você
Profundamente.
Mas agora não sinto a sua falta.
(É sempre assim quando o ausente
Partiu sem se despedir:
Você não se despediu.)
Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.
Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?
A vida é uma só. A sua continua
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.
Manuel Bandeira, Belo Belo
sábado, 24 de dezembro de 2011
Silentium Amoris
As often-times the too resplendent sun
Hurries the pallid and reluctant moon
Back to her sombre cave, ere she hath won
A single ballad from the nightingale,
So doth thy Beauty make my lips to fail,
And all my sweetest singing out of tune.
And as at dawn across the level mead
On wings impetuous some wind will come,
And with its too harsh break the reed
Which was its only instrument of song,
So my too stormy passions work me wrong,
And for excess os Love my Love is dumb.
But surely unto Thee mine eyes did show
Why I am silent, and my lute unstrung;
Else it were better we should part, and go,
Thou to some lips of sweeter melody,
And I to nurse the barren memory
Of unkissed kisses, and songs never sung.
Hurries the pallid and reluctant moon
Back to her sombre cave, ere she hath won
A single ballad from the nightingale,
So doth thy Beauty make my lips to fail,
And all my sweetest singing out of tune.
And as at dawn across the level mead
On wings impetuous some wind will come,
And with its too harsh break the reed
Which was its only instrument of song,
So my too stormy passions work me wrong,
And for excess os Love my Love is dumb.
But surely unto Thee mine eyes did show
Why I am silent, and my lute unstrung;
Else it were better we should part, and go,
Thou to some lips of sweeter melody,
And I to nurse the barren memory
Of unkissed kisses, and songs never sung.
Oscar Wilde
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
Dedication
«I never thought to amuse a disdainful world;
but friendly interest I do prize;
and I should like to have presented you
with a token worthier of you,
yes, worthier of your noble spirit,
so full of sublime imagination,
of lively, limpid poetry,
of lofty ideas
and of simplicity.
But there it is. Be kind:
accept this batch of patchy chapters,
half-funny abd half-sad,
idealistic, down-to-earth -
the slipshod product of my leisure-hours,
my sleepless nights, my momentary inspirations,
of a life blighted ere its prime,
of a mind's chilling observations,
and of a heart's experience of pain.»
but friendly interest I do prize;
and I should like to have presented you
with a token worthier of you,
yes, worthier of your noble spirit,
so full of sublime imagination,
of lively, limpid poetry,
of lofty ideas
and of simplicity.
But there it is. Be kind:
accept this batch of patchy chapters,
half-funny abd half-sad,
idealistic, down-to-earth -
the slipshod product of my leisure-hours,
my sleepless nights, my momentary inspirations,
of a life blighted ere its prime,
of a mind's chilling observations,
and of a heart's experience of pain.»
Alexander Pushkin, Eugene Onegin
XXXV. Les Fenêtres
«Celui qui regarde du dehors à travers une fenêtre ouverte, ne voit jamais autant de choses que celui qui regarde une fenêtre fermée. Il n'est pas d'objet plus profond, plus mystérieux, plus fécond, plus ténébreux, plus éblouissant qu'une fenêtre éclairée d'une chandelle. Ce qu'on peut voir au soleil est toujours moins intéressant que ce qui se passe derrière une vitre. Dans ce trou noir ou lumineux vit la vie, rêve la vie, souffre la vie.
Par delà des vagues de toits, j'aperçois une femme mûre, ridée déjà, pauvre, toujours penchée sur quelque chose, et qui ne sort jamais. Avec son visage, avec son vêtement, avec son geste, avec presque rien, j'ai refait l'histoire de cette femme, ou plutôt sa légende, et quelquefois je me la raconte à moi-même en pleurant.
Si c'eût été un pauvre vieux homme, j'aurais refait la sienne tout aussi aisément.
Et je me couche, fier d'avoir vécu et souffert dans d'autres que moi-même.
Peut-être me direz-vous: «Es-tu sûr que cette légende soit la vraie?» Qu'importe de que peut être la réalité placée hors de moi, si elle m'a aidé à vivre, à sentir que je suis et ce que je suis?»
Par delà des vagues de toits, j'aperçois une femme mûre, ridée déjà, pauvre, toujours penchée sur quelque chose, et qui ne sort jamais. Avec son visage, avec son vêtement, avec son geste, avec presque rien, j'ai refait l'histoire de cette femme, ou plutôt sa légende, et quelquefois je me la raconte à moi-même en pleurant.
Si c'eût été un pauvre vieux homme, j'aurais refait la sienne tout aussi aisément.
Et je me couche, fier d'avoir vécu et souffert dans d'autres que moi-même.
Peut-être me direz-vous: «Es-tu sûr que cette légende soit la vraie?» Qu'importe de que peut être la réalité placée hors de moi, si elle m'a aidé à vivre, à sentir que je suis et ce que je suis?»
Charles Baudelaire, Le Spleen de Paris
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
Magnanimità
«Io non credo che si trovi in tutte le memorie dell'antichità voce più lacrimevole e spaventosa, e con tutto ciò, parlando umanamente, più vera di quella che Marco Bruto, poco innanzi alla morte, si racconta che proferisse in dispregio della virtù: la qual voce, secondo che è riportata da Cassio Dione, è questa: «O virtù miserabile, eri una parola nuda, e io ti seguiva com tu fossi una cosa; ma tu sottostavi alla fortuna». E comunque Plutarco nella vita di Bruto non tocchi distintamente di questa sentenza, laonde Pier Vettori dubita che Dione in questo particolare faccia da poeta più che da storico, si manifesta il contrario per la testimonianza di Floro, il quale afferma che Bruto vicino a morire proruppe esclamando «che la virtù non fosse cosa ma parola». Quei moltissimi che si scandalezzano di Bruto e gli fanno carico della detta sentenza, danno a vedere l'una delle due cose; o che non abbiano mai praticato familiarmente colla virtù, o che non abbiano esperienza degl'infortuni; il che, fuori del primo caso, non pare che si possa credere. E in ogni modo è certo che poco intendono e meno sentono la natura infelicissima delle cose umane, o si meravigliano ciecamente che le dottrine del Cristianesimo non fossero professate avanti di nascere. Quegli altri che torcono le dette parole a dimostrare che Bruto non fosse mai quell'uomo santo e magnanimo che fu riportato vivendo, e conchiudono che morendo si smascherasse, argomentano a rovescio: e se credono che quelle parole gli venissero dall'animo, e che Bruto, dicendo questo, ripudiasse effettivamente la virtù, veggano come si possa lasciare quello che non s'è mai tenuto, e disgiungersi da quello che s'è avuto sempre discosto. Se non l'hanno per sincere, ma pensano che fossero dette con arte e per ostentazione; primieramente che modo è questo di argomentare dalle parole ai fatti, e nel medesimo tempo levar via le parole come vane e fallaci? Volere che i fatti mentano perché si stima che i detti non suonino allo stesso modo, e negare a questi ogni autorità dandoli per finti? Di poi ci hanno a persuadere che un uomo sopraffatto da una calamità eccessiva e irreparabile; disanimato e sdegnato della vita e della fortuna; uscito di tutti i desiderii, e di tutti gl'inganni delle speranze; risoluto di preoccupare il destino mortale e di punirsi della propria infelicità; nell'ora medesima che esso sta per dividersi eternamente dagli uomini, s'affatichi di correr dietro al fantasma della gloria, e vada studiando e componendo le parole e i concetti per ingannare i circostanti, e farsi avere in pregio da quelli che egli si dispone a fuggire, e in quella terra che se gli rappresenta per odiosissima e dispregevole. Ma basti di ciò.»
Giacomo Leopardi, Scritti d'Amore e di Politica
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
Heart and Soul
Instants that can still betray us
A journey that leads to the sun
Soulless and bent on destruction
Struggle between right and wrong
You take my place in the show-down
I'll observe with a pitiful eye
And humbly ask for forgiveness
A request well beyond you and I
Heart and soul, one will burn
An abyss that lasted creation
A circus complete with all fools
Foudations that lasted the ages
Then ripped apart at their roots
Beyond all this good is the terror
The grip of a mercenary hand
When savagery returns for good reason
There's no turning back the last stand
Heart and soul, one will burn
Existence, well what does it matter
I exist on the best terms I can
The past is now part of my future
The present is well out of hand
The present is well out of hand
Heart and soul, one will burn
One will burn, one will burn
Heart and soul, one will burn
A journey that leads to the sun
Soulless and bent on destruction
Struggle between right and wrong
You take my place in the show-down
I'll observe with a pitiful eye
And humbly ask for forgiveness
A request well beyond you and I
Heart and soul, one will burn
An abyss that lasted creation
A circus complete with all fools
Foudations that lasted the ages
Then ripped apart at their roots
Beyond all this good is the terror
The grip of a mercenary hand
When savagery returns for good reason
There's no turning back the last stand
Heart and soul, one will burn
Existence, well what does it matter
I exist on the best terms I can
The past is now part of my future
The present is well out of hand
The present is well out of hand
Heart and soul, one will burn
One will burn, one will burn
Heart and soul, one will burn
Ian Curtis
IX
Depuis un si long temps que nous allions en Ouest, que
savions-nous des choses
périssables?... Et soudain à nos pieds les premières fumées.
- Jeunes femmes! et la nature d'un pays s'en trouve toute
parfumée:
«... Je t'annonce les temps d'une grande chaleur et les
veuves criardes sur la dissipation des morts.
Ceux qui vieillissent dans l'usage et le soin du silence, assis
sur les hauteurs, considèrent les sables
et la célébrité du jour sur les rades foraines;
mais le plaisir au flanc des femmes se compose, et dans nos
corps de femmes il y a comme un ferment de raisin noir, et de
répit avec nous-mêmes il n'en est point.
«... Je t'annonce les temps d'une grande faveur et la félicité
des feuilles dans nos songes.
Ceux qui savent les sources sont avec nous dans cet exil;
ceux qui savent les sources nous diront-ils au soir
sous quelles mains pressant la vigne de nos flancs
nos corps s'emplissent d'une salive? (Et la femme s'est
couché avec l'homme dans l'herbe; elle se lève, met ordre aux
lignes de son corps, et le criquet s'envole sur son aile bleue.)
«... Je t'annonce les temps d'une grande chaleur, et
pareillement la nuit, sous l'aboiement des chiens, trait son
plaisir au flanc des femmes.
Mais l'Étranger vit sous sa tente, honoré de laitages, de
fruits. On lui apporte de l'eau fraîche
pour y laver sa bouche, son visage et son sexe.
On lui mène à la nuit de grandes femmes bréhaignes (ha! plus
nocturnes dans le jour!) Et peut-être aussi de moi tirera-t-il son
plaisir. (Je ne sais quelles sont ses façons d'être avec les femmes.)
«... Je t'annonce les temps d'une grande faveur et la félicité
des sources dans nos songes.
Ouvre ma bouche dans la lumière, ainsi qu'un lieu de miel
entre les roches, et si l'on trouve faute en moi, que je sois
congédié! sinon,
que j'aille sous la tente, que j'aille nue, près de la cruche,
sous la tente,
et compagnon de l'angle du tombeau, tu me verras
longtemps muette sous l'arbre-fille de mes veines... Un lit
d'instances sous la tente, l'étoile verte dans la cruche, et que je
sois sous ta puissance! nulle servante sous la tente que la
cruche d'eau fraîche! (Je sais sortir avant le jour sans éveiller
l'étoile verte, le criquet sur le seuil et l'aboiement des chiens de
toute la terre.)
Je t'annonce les temps d'une grande faveur et la félicité du
soir sur nos paupières périssables...
mais pour l'instant encore c'est le jour!»
- et debout sur la tranche éclatante du jour, au seuil d'un
grand pays plus chaste que la mort,
les filles urinaient en écartant la toile peinte de leur robe.
savions-nous des choses
périssables?... Et soudain à nos pieds les premières fumées.
- Jeunes femmes! et la nature d'un pays s'en trouve toute
parfumée:
«... Je t'annonce les temps d'une grande chaleur et les
veuves criardes sur la dissipation des morts.
Ceux qui vieillissent dans l'usage et le soin du silence, assis
sur les hauteurs, considèrent les sables
et la célébrité du jour sur les rades foraines;
mais le plaisir au flanc des femmes se compose, et dans nos
corps de femmes il y a comme un ferment de raisin noir, et de
répit avec nous-mêmes il n'en est point.
«... Je t'annonce les temps d'une grande faveur et la félicité
des feuilles dans nos songes.
Ceux qui savent les sources sont avec nous dans cet exil;
ceux qui savent les sources nous diront-ils au soir
sous quelles mains pressant la vigne de nos flancs
nos corps s'emplissent d'une salive? (Et la femme s'est
couché avec l'homme dans l'herbe; elle se lève, met ordre aux
lignes de son corps, et le criquet s'envole sur son aile bleue.)
«... Je t'annonce les temps d'une grande chaleur, et
pareillement la nuit, sous l'aboiement des chiens, trait son
plaisir au flanc des femmes.
Mais l'Étranger vit sous sa tente, honoré de laitages, de
fruits. On lui apporte de l'eau fraîche
pour y laver sa bouche, son visage et son sexe.
On lui mène à la nuit de grandes femmes bréhaignes (ha! plus
nocturnes dans le jour!) Et peut-être aussi de moi tirera-t-il son
plaisir. (Je ne sais quelles sont ses façons d'être avec les femmes.)
«... Je t'annonce les temps d'une grande faveur et la félicité
des sources dans nos songes.
Ouvre ma bouche dans la lumière, ainsi qu'un lieu de miel
entre les roches, et si l'on trouve faute en moi, que je sois
congédié! sinon,
que j'aille sous la tente, que j'aille nue, près de la cruche,
sous la tente,
et compagnon de l'angle du tombeau, tu me verras
longtemps muette sous l'arbre-fille de mes veines... Un lit
d'instances sous la tente, l'étoile verte dans la cruche, et que je
sois sous ta puissance! nulle servante sous la tente que la
cruche d'eau fraîche! (Je sais sortir avant le jour sans éveiller
l'étoile verte, le criquet sur le seuil et l'aboiement des chiens de
toute la terre.)
Je t'annonce les temps d'une grande faveur et la félicité du
soir sur nos paupières périssables...
mais pour l'instant encore c'est le jour!»
- et debout sur la tranche éclatante du jour, au seuil d'un
grand pays plus chaste que la mort,
les filles urinaient en écartant la toile peinte de leur robe.
Saint-John Perse, Anabase
domingo, 18 de dezembro de 2011
Sono
«Um homem que dorme tem em círculo à sua volta o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Consulta-os instintivamente ao acordar, e nele lê num segundo o ponto da terra que ocupa, o tempo que decorreu até ao seu despertar; mas as respectivas linhas podem misturar-se, quebrar-se. Basta que, já de manhã, depois de uma insónia qualquer, o sono o invada enquanto lê, numa posição muito diferente daquela em que habitualmente dorme, basta que tenha o braço levantado para deter e fazer recuar o sol, e ao primeiro minuto depois de acordar já não saberá que horas são, julgará que mal acaba de se deitar. Se se deixar dormir numa posição ainda mais deslocada e divergente, por exemplo, sentado num cadeirão depois do jantar, então a perturbação será completa nos mundos desorbitados, o cadeirão mágico fa-lo-á viajar a toda a velocidade no tempo e no espaço e, no momento de abrir as pálpebras, irá julgar-se deitado alguns meses antes noutro país. Mas bastava que, na minha própria cama, o meu sono fosse profundo e me distendesse completamente o espírito; então, este deixava escapar o mapa do lugar onde adormecera e, quando acordava a meio da noite, como não sabia onde estava, ignorava até, no primeiro instante, quem era; tinha apenas, na sua simplicidade primitiva, a sensação da existência como ela pode fremir no fundo de um animal; estava mais carecido que o homem das cavernas; mas então a lembrança - não ainda do lugar onde estava, mas de alguns outros que habitara ou onde poderia estar - ocorria-me como um auxílio vindo do alto para me tirar do nada donde não poderia sair sozinho; passava num segundo por cima de séculos de civilização, e a imagem confusamente entrevista de candeeiros a petróleo, e, depois, de camisas de colarinho revirado, recompunha a pouco e pouco as feições originais do meu eu.»
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, do Lado de Swann
Serenità
«Qualunque giudizio si porti sull'assenza di passione politica, tante volte notata, biasimata e variamente lumeggiata nel Goethe, mi sarà lecito dire che io ho sentito come singolare ventura che tra i sublimi poeti, fonti perenni di alti conforti, ce ne sia pur uno, il quale, sebbene esperto quanto altri mai in ogni forma di umanità , mantiene l'animo fuori e sopra gli affetti politici e le necessarie contese dei popoli. Questa ventura, com'è noto, non poté godere il nostro Carducci, quando, nell'ansia patriottica, nel furore delle lotte di parte, rivoltosi a commentare il Petrarca («Messer Francesco, a voi per pace io vegno...»), anche dal Canzoniere udí uscire voci che lo riconducevano alle immagini dalle quali cercava stornarsi, gli rinnovavano la puntura che si era provato, per qualche istante, di acchetare.
Rileggendo dunque, in cupi giorni della guerra mondiale, le opere del Goethe, ne trassi lenimento e rasserenamento, quale forse da nessun altro poeta avrei potuto in pari misura; e ciò m'invogliò a mettere in carta alcuni concetti critici che intorno ad esse mi erano risorti spontanei e che mi avevano sempre guidato a bene intenderle.»
Rileggendo dunque, in cupi giorni della guerra mondiale, le opere del Goethe, ne trassi lenimento e rasserenamento, quale forse da nessun altro poeta avrei potuto in pari misura; e ciò m'invogliò a mettere in carta alcuni concetti critici che intorno ad esse mi erano risorti spontanei e che mi avevano sempre guidato a bene intenderle.»
Benedetto Croce, Goethe
sábado, 17 de dezembro de 2011
Conhecimento
«Mas talvez nada embote mais veloz e profundamente um espírito nobre e valoroso do que o charme amargo e afiado do conhecimento; e certo é que a intransigência melancólica e escrupulosa da adolescência se revela superficial quando comparada com a resolução profunda do homem tornado mestre em regenerar a abdicar da erudição, cabeça erguida que dela desvia o olhar, impedindo-a assim de paralisar a vontade, desanimar a acção, aviltar a sensibilidade e mesmo a paixão. De que outro modo se poderia entender o célebre conto «O Miserável», a não ser vendo nele uma manifestação da sua repugnância face ao indecente psicologismo da época, a que deu corpo na figura de um crápula mole e estúpido que usurpa um destino ao lançar a mulher, por impotência, perversão ou veleidade ética, para os braços de um adolescente, julgando-se autorizado a cometer as maiores vilezas sob pretexto da profundidade. A ira com que, pela palavra, condenava aqui o que era condenável anunciava a renúncia à ambiguidade moral, à simpatia pelo abismo, a recusa do axioma frouxo da compaixão, segundo o qual tudo compreender é tudo perdoar, e o que aqui se antecipava, se desvendava por inteiro, mais não era do que aquele «milagre da ingenuidade renascida», sobre o qual, em diálogo posterior, o autor se exprimira intencionalmente e não sem misteriosa entoação. Singulares ligações! Seriam este «renascimento», esta nova dignidade e rigor, a causa espiritual do apuramento quase excessivo do seu sentido estético que nesta mesma altura se fazia observar, da pureza aristocrática, da simplicidade e proporção da forma, que desde então conferiam às suas produções um cunho tão palpável e voluntário de mestria e classicismo? Mas esta resolução moral que transcende o conhecimento, a erudição dissolvente e paralisante - não comportará ela também uma simplificação, um empobrecimento ético do mundo e da alma, e logo também um reforço do mal, do proibido, do que é moralmente inadmissível? E não terá a forma duas faces? Não será ela a um tempo moral e imoral - moral enquanto fruto e expressão da disciplina, mas imoral, e mesmo contra a moral, por naturalmente conter a indiferença, ou melhor, por virtualmente tender a vergar a moral sob o seu ceptro orgulhoso e absoluto?»
Thomas Mann, A Morte em Veneza
sábado, 3 de dezembro de 2011
11. O Tempo não pode medir a eternidade
«Quem afirma tais coisas, ó «Sabedoria de Deus». Luz das inteligências - ainda não compreendeu como se realiza o que se faz por Vós e em Vós. Esforça-se por saborear as coisas eternas, mas o seu pensamento ainda volita ao redor das ideias, ideias da sucessão dos tempos passados e futuros, e, por isso, tudo o que excogita em vão.
A esse quem o poderá prender e fixar para que pare um momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade perpetuamente imutável, para que veja como a eternidade é incomparável, se a confronta com o tempo que nunca pára? Compreenderá então que a duração do tempo não será longa, se não se compuser de muitos movimentos passageiros. Ora estes não podem alongar-se simultaneamente.
Na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente. Esse tal, verá que o passado é impelido pelo futuro e que todo o futuro está precedido dum passado, e todo o passado e futuro são criados e dimanam d'Aquele que sempre é presente. Quem poderá prender o coração do homem, para que pare e veja como a eternidade imóvel determina o futuro e o passado, não sendo nem passado nem futuro? Poderá, porventura, a minha mão que escreve, explicar isto? Poderá a actividade da minha língua conseguir pela palavra realizar empresa tão grandiosa?»
A esse quem o poderá prender e fixar para que pare um momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade perpetuamente imutável, para que veja como a eternidade é incomparável, se a confronta com o tempo que nunca pára? Compreenderá então que a duração do tempo não será longa, se não se compuser de muitos movimentos passageiros. Ora estes não podem alongar-se simultaneamente.
Na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente. Esse tal, verá que o passado é impelido pelo futuro e que todo o futuro está precedido dum passado, e todo o passado e futuro são criados e dimanam d'Aquele que sempre é presente. Quem poderá prender o coração do homem, para que pare e veja como a eternidade imóvel determina o futuro e o passado, não sendo nem passado nem futuro? Poderá, porventura, a minha mão que escreve, explicar isto? Poderá a actividade da minha língua conseguir pela palavra realizar empresa tão grandiosa?»
Santo Agostinho, Confissões
quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
Niilismo
«A era de Nietzsche - «uma vez que o velho Deus abdicou, governarei o mundo doravante» -, a era do niilismo, manifestou-se muito antes do que ele ousara suspeitar. Catorze anos depois da sua morte iniciou-se a Primeira Guerra Mundial. Depois a Europa ficou nas garras do fascismo, do comunismo e nazismo. E sofreu outra guerra. Uma orgia de violência triunfou sobre a verdade, a bondade e a beleza. O ideal de civilização foi desprezado. Dezenas de milhões de pessoas aplaudiram, admiraram e apoiaram a violência. Dezenas de milhões de vidas foram aniquiladas. O niilismo acaba sempre, inevitavelmente, em violência e aniquilação.
O niilismo começa sempre - a lúcida análise de Nietzsche não deixa margem para qualquer equívoco neste aspeto - por roubar à existência humana a possibilidade de elevar o ser acima da sua natureza animal. Este roubo da eternidade como do espírito dota a humanidade com a nobreza que permite a cada pessoa ser a imagem de valores universais e intemporais. Com este roubo começa a «reavaliação de todos os valores» assim como a distorção de todo o significado que Sócrates previu. A liberdade - difícil e trágica liberdade - já não é mais o espaço de que o indivíduo necessita para praticar a aquisição da dignidade humana; é antes a perda dessa dignidade a favor da idolatria do ideal animal: tudo é permitido. O significado é desconhecido, o sentimento é substituído pelo objetivo. Experiências «divertidas» e «saborosas» substituem o conhecimento do bem e do mal. Porque o eterno não existe, tudo tem de ser agora, novo e rápido. ninguém pode ser mais sábio, portanto todos têm razão. Todos são o mesmo, portanto o que é difícil é antidemocrático. A arte transforma-se em entretenimento, e a fama das coisas ou das gentes é importante. A declaração de Gracian de que o peso material determina o valor do ouro mas o peso moral determina o valor humano é posta às avessas. A moral? A cada um a sua moral! A matéria reina e, em todos os pequenos deuses que se pavoneiam, o ouro é a divindade suprema. O que é bom para o ouro é bom para ti. Portanto, comercializa-te! Adapta-te! Tudo o que te tornar mais rico é útil, e o que, ou quem, não for divertido, não for delicioso, é de facto inútil, pode desaparecer. Toda a gente por si, e ninguém por todos nós.
É este niilismo da sociedade de massas que, como um cancro, ataca a civilização, o tecido conectivo da ordem social, e o destrói. O que resta sem esse tecido é uma quantidade ilimitada de indivíduos separados que no fim procuram destruir-se uns aos outros porque já não estão unidos por um valor universal mas seduzidos pela ideia de «eu sou livre, portanto tudo é permitido». Resta-nos saber em que medida a sociedade ocidental está invadida por este niilismo. A questão mais importante é: de onde veio este niilismo?»
O niilismo começa sempre - a lúcida análise de Nietzsche não deixa margem para qualquer equívoco neste aspeto - por roubar à existência humana a possibilidade de elevar o ser acima da sua natureza animal. Este roubo da eternidade como do espírito dota a humanidade com a nobreza que permite a cada pessoa ser a imagem de valores universais e intemporais. Com este roubo começa a «reavaliação de todos os valores» assim como a distorção de todo o significado que Sócrates previu. A liberdade - difícil e trágica liberdade - já não é mais o espaço de que o indivíduo necessita para praticar a aquisição da dignidade humana; é antes a perda dessa dignidade a favor da idolatria do ideal animal: tudo é permitido. O significado é desconhecido, o sentimento é substituído pelo objetivo. Experiências «divertidas» e «saborosas» substituem o conhecimento do bem e do mal. Porque o eterno não existe, tudo tem de ser agora, novo e rápido. ninguém pode ser mais sábio, portanto todos têm razão. Todos são o mesmo, portanto o que é difícil é antidemocrático. A arte transforma-se em entretenimento, e a fama das coisas ou das gentes é importante. A declaração de Gracian de que o peso material determina o valor do ouro mas o peso moral determina o valor humano é posta às avessas. A moral? A cada um a sua moral! A matéria reina e, em todos os pequenos deuses que se pavoneiam, o ouro é a divindade suprema. O que é bom para o ouro é bom para ti. Portanto, comercializa-te! Adapta-te! Tudo o que te tornar mais rico é útil, e o que, ou quem, não for divertido, não for delicioso, é de facto inútil, pode desaparecer. Toda a gente por si, e ninguém por todos nós.
É este niilismo da sociedade de massas que, como um cancro, ataca a civilização, o tecido conectivo da ordem social, e o destrói. O que resta sem esse tecido é uma quantidade ilimitada de indivíduos separados que no fim procuram destruir-se uns aos outros porque já não estão unidos por um valor universal mas seduzidos pela ideia de «eu sou livre, portanto tudo é permitido». Resta-nos saber em que medida a sociedade ocidental está invadida por este niilismo. A questão mais importante é: de onde veio este niilismo?»
Rob Riemen
terça-feira, 29 de novembro de 2011
Fatalismo Russo
«Ausência de ressentimento, lucidez sobre a natureza do ressentimento, - quem sabe se as não devo também à minha grande doença! O problema não é simples: supõe uma experiência, experiência conseguida a partir da força e também a partir da fraqueza. Se alguma coisa podemos objectar ao estado de doença, é que o verdadeiro instinto de cura enfraquece e, no homem, tal instinto é um autêntico instinto de defesa. Não chegamos a desembaraçar-nos de nada; de nada nos libertamos. Tudo nos fere. Homens e coisas surgem em proximidade indiscreta; tudo quanto nos acontece deixa marcas profundas, a recordação é uma ferida purulenta.
Estar doente é propriamente uma forma de ressentimento. Contra tudo isto há um grande remédio, e um só, e eu chamo-lhe o «fatalismo russo», esse fatalismo sem revolta de que está impregnado o soldado russo que, depois de queixar-se da dureza da campanha, acaba por deitar-se em plena neve. Não tomar mais remédios, renunciar a absorver seja o que for, não reagir em caso algum... A grande razão deste fatalismo, que não é sempre, e só, valentia perante a morte, deste fatalismo conservador da vida na sua contingência mais perigosa, é o abaixamento das funções do metabolismo, o seu retardamento, uma espécie de desejo do sono hibernal. Alguns passos mais nesta lógica e ter-se-á o faquir que dorme semanas num esquife.»
Estar doente é propriamente uma forma de ressentimento. Contra tudo isto há um grande remédio, e um só, e eu chamo-lhe o «fatalismo russo», esse fatalismo sem revolta de que está impregnado o soldado russo que, depois de queixar-se da dureza da campanha, acaba por deitar-se em plena neve. Não tomar mais remédios, renunciar a absorver seja o que for, não reagir em caso algum... A grande razão deste fatalismo, que não é sempre, e só, valentia perante a morte, deste fatalismo conservador da vida na sua contingência mais perigosa, é o abaixamento das funções do metabolismo, o seu retardamento, uma espécie de desejo do sono hibernal. Alguns passos mais nesta lógica e ter-se-á o faquir que dorme semanas num esquife.»
Friedrich Nietzsche, Ecce Homo
domingo, 27 de novembro de 2011
Snazionalizzare la Storia
«Anche qui un'esigenza che si è andata affacciando e attuando nella storiografia e nella sua metodologia dà la mano a un'esigenza morale e politica dei nostri tempi. Snazionalizzare la storia: diciamo la storia che sia veramente tale, la storia che è critica e che è scienza o, meglio, filosofia.
Quel nazionalizzamento ebbe le sue origini nel carattere epico serbatosi nella prima età della storiografia, e in quello oratorio e tendenzioso in servigio degli interessi politici dei singoli popoli e stati. Vi s'introdusse poi una cattiva filosofia che costruì il concetto dell'esprit des peuples o esprit des nations, e, più tardi, della «missione» delle varie nazionalità, onde s'invitò a narrare la storia di ciascuna di queste monadi, che lungo i secoli svolgevano o piuttosto conservavano il proprio loro carattere.
Ma, in verità, quel che realmente si svolge non è l'individuo o questo o quel gruppo d'individui associati, ma lo spirito universale che, per creare le sue opere, atterra e suscita e conforma ai suoi fini gl'individui e i popoli. Sicchè delle opere è da trattare, delle opere che sono umane o umano-divine, e formano il solo soggetto della storia, e non già di entità immaginarie e di nomi classificatorii scambiati per sostanze e realtà.
In effetto, la storia del pensiero o della filosofia si comportò quasi del tutto incontaminata dai cosiddetti valori nazionali, commisurando le opere all'avanzamento del pensiero umano, e non già ai sentimenti e alle passioni nazionali. Ma anche la storia della poesia, se più dell'altra era esposta al pericolo di venire trattata nazionalmente per l'equivoco che nasceva dalla varietà delle lingue e dall'ordinario distinguersi delle nazioni secondo le lingue, si è quasi del tutto, almeno in Italia, liberata da queste servitù, e tende a trasferire i poeti, e tutti gli altri creatori di arte, in una sfera sopranazionale e ideale. Le divisione delle trattazioni per singoli popoli e paesi saranno ormai intese unicamente per quel che sono: divisioni pratiche per comodo di lavoro, e classificazioni per facilità di ritrovamento di quel che si cerca.
Nelle storie dell'azione pratica quella della varia tecnica non ha bisogno di snazionalizzarsi, perché le sono mancate quasi affatto le seduzioni allo sviamento dei giudizi, prodotto da sentimenti e tendenze politiche e morali. Ma all'opposto, e per questa medesima considerazione, gran bisogno ne ha la storia etico-politica, che come fu la prima che si presentò avviluppata in questi sentimenti e tendenze, così è l'ultima a disvilupparsene. Non già che siano mancati per il passato modi di trattazione che, oltrepassando gli stati e le nazioni, indicavano la via buona, come le storie della vita religiosa e quelle della civiltà, nelle quali le diverse nazioni convenivano, tutte collaboratrici, e delle quali si giudicava il lavoro a cui esse tutte contribuivano e non si giudicava esse per sé. Ma contro o accanto a queste trattazioni che si rivolgevano alla pura umanità, perduravano le altre informate al concetto di una umanità diversificata, e formante in ciascuno dei suoi componenti un centro assoluto, e che pertanto non erano più storie veramente umane, ma immaginazioni e costruzioni naturalistiche o metafisiche. Ognuno di noi sa a quali perversioni e a quali orrori questa coscienza nazionale entificata ha oggi portato il mondo, che fu un tempo il mondo cristiano e, in un altro tempo, volle essere il mondo dell'umanità, della fratellanza e della libertà. Al risanamento di questo mondo straziato e avvelenato noi storici dobbiamo dare la nostra parte specifica di lavoro, con lo «snazionalizzare» sempre più la storiografia: il che non vuol dire, come è chiaro, rinunziare a conoscere le cose degli italiani e dei francesi, dei tedeschi e degli inglesi, dei russi e dei giapponesi, e via dicendo, ma volerle conoscere e intendere e giudicare unicamente secondo il loro valore umano e universale.»
Quel nazionalizzamento ebbe le sue origini nel carattere epico serbatosi nella prima età della storiografia, e in quello oratorio e tendenzioso in servigio degli interessi politici dei singoli popoli e stati. Vi s'introdusse poi una cattiva filosofia che costruì il concetto dell'esprit des peuples o esprit des nations, e, più tardi, della «missione» delle varie nazionalità, onde s'invitò a narrare la storia di ciascuna di queste monadi, che lungo i secoli svolgevano o piuttosto conservavano il proprio loro carattere.
Ma, in verità, quel che realmente si svolge non è l'individuo o questo o quel gruppo d'individui associati, ma lo spirito universale che, per creare le sue opere, atterra e suscita e conforma ai suoi fini gl'individui e i popoli. Sicchè delle opere è da trattare, delle opere che sono umane o umano-divine, e formano il solo soggetto della storia, e non già di entità immaginarie e di nomi classificatorii scambiati per sostanze e realtà.
In effetto, la storia del pensiero o della filosofia si comportò quasi del tutto incontaminata dai cosiddetti valori nazionali, commisurando le opere all'avanzamento del pensiero umano, e non già ai sentimenti e alle passioni nazionali. Ma anche la storia della poesia, se più dell'altra era esposta al pericolo di venire trattata nazionalmente per l'equivoco che nasceva dalla varietà delle lingue e dall'ordinario distinguersi delle nazioni secondo le lingue, si è quasi del tutto, almeno in Italia, liberata da queste servitù, e tende a trasferire i poeti, e tutti gli altri creatori di arte, in una sfera sopranazionale e ideale. Le divisione delle trattazioni per singoli popoli e paesi saranno ormai intese unicamente per quel che sono: divisioni pratiche per comodo di lavoro, e classificazioni per facilità di ritrovamento di quel che si cerca.
Nelle storie dell'azione pratica quella della varia tecnica non ha bisogno di snazionalizzarsi, perché le sono mancate quasi affatto le seduzioni allo sviamento dei giudizi, prodotto da sentimenti e tendenze politiche e morali. Ma all'opposto, e per questa medesima considerazione, gran bisogno ne ha la storia etico-politica, che come fu la prima che si presentò avviluppata in questi sentimenti e tendenze, così è l'ultima a disvilupparsene. Non già che siano mancati per il passato modi di trattazione che, oltrepassando gli stati e le nazioni, indicavano la via buona, come le storie della vita religiosa e quelle della civiltà, nelle quali le diverse nazioni convenivano, tutte collaboratrici, e delle quali si giudicava il lavoro a cui esse tutte contribuivano e non si giudicava esse per sé. Ma contro o accanto a queste trattazioni che si rivolgevano alla pura umanità, perduravano le altre informate al concetto di una umanità diversificata, e formante in ciascuno dei suoi componenti un centro assoluto, e che pertanto non erano più storie veramente umane, ma immaginazioni e costruzioni naturalistiche o metafisiche. Ognuno di noi sa a quali perversioni e a quali orrori questa coscienza nazionale entificata ha oggi portato il mondo, che fu un tempo il mondo cristiano e, in un altro tempo, volle essere il mondo dell'umanità, della fratellanza e della libertà. Al risanamento di questo mondo straziato e avvelenato noi storici dobbiamo dare la nostra parte specifica di lavoro, con lo «snazionalizzare» sempre più la storiografia: il che non vuol dire, come è chiaro, rinunziare a conoscere le cose degli italiani e dei francesi, dei tedeschi e degli inglesi, dei russi e dei giapponesi, e via dicendo, ma volerle conoscere e intendere e giudicare unicamente secondo il loro valore umano e universale.»
Benedetto Croce, La Mia Filosofia
sábado, 26 de novembro de 2011
Times are evil
«Let others complain that the times are evil. I complain that they are wretched, for they are without passion. People's thoughts are as thin and fragile as lace, and they themselves as pitiable as lace-making girls. The thoughts of their hearts are too wretched to be sinful. It is perhaps possible to regard it as sin for a worm to nourish such thoughts, but not for a human being, who is created in the image of God. Their desires are staid and dull, their passions drowsy. They perform their duties, these mercenary souls, but just like the Jews, they indulge in trimming the coins a little; they think that, even though our Lord keeps ever so orderly an account book, they can still manage to trick him a little. Fie on them! That is why my soul always turns back to the Old Testament and to Shakespeare. There one still feels that those who speak are human beings; there they hate, there they love, there they murder the enemy, curse his descendants through all generations - there they sin.»
Soren Kierkegaard, Diapsalmata
Courage
«"Never lose courage! When troubles pile up most appallingly about you, you will see a helping hand in the clouds" - so said His Reverence Jesper Morten at vespers recently. Well, I am accustomed to walking a great deal under the open sky, but I have never noticed such a thing. A few days ago while on a walking tour, I became aware of such a phenomenon. It was really not a hand, but more like an arm, that reached out of the cloud. I fell into contemplation, and the thought came to me: If only Jesper Morten were here so he could decide whether this was the phenomenon he referred to. As I stood there lost in these thoughts, a passerby addressed me and said as he pointed up to the clouds, "Do you see that funnel-shaped cloud? One seldom sees such a thing in these parts. Sometimes it carries whole houses long with it." Good heavens, I thought, is that a funnel-shaped cloud-and took to my heels as fast as I could. What would His Reverence Jesper Morten have done, I wonder, in my place?»
Soren Kierkegaard, Diapsalmata
quinta-feira, 24 de novembro de 2011
Le Passé dans le Présent
La rose et le lis, dans la rosée matinale,
Fleurissent dans le jardin du voisinage;
Dans le fond, buissonneux, familier,
Le rocher monte vers le ciel;
Et, ceint d'une haute forêt,
Couronné du burg médiéval,
Le contour du sommet se prolonge
Jusqu'à s'unir à la vallée.
Et cela embaume comme jadis,
Quand nous connaissions les peines d'amour
Et que les cordes de ma harpe
Rivalisaient avec le rayon du matin;
Quand le chant du chasseur, hors du hallier
Résonnait à pleins poumons,
Pour enflammer, réconforter
Selon que le désirait notre coeur.
Or, puisque les forêts éternellement reverdissent,
Prenez courage et suivez leur exemple;
Ce que vous avez naguère goûté pour vous
Peut se goûter aussi dans les autres.
Personne alors ne nous accusera plus
De vouloir pour nous seuls le plaisir;
À tous les moments de la vie,
Il convient de savoir jouir.
Et avec ce détour de mon chant
Nous voici de nouveau chez Hafiz;
Car il sied de goûter l'achèvement du jour,
Avec ceux qui connaissent le plaisir.
Fleurissent dans le jardin du voisinage;
Dans le fond, buissonneux, familier,
Le rocher monte vers le ciel;
Et, ceint d'une haute forêt,
Couronné du burg médiéval,
Le contour du sommet se prolonge
Jusqu'à s'unir à la vallée.
Et cela embaume comme jadis,
Quand nous connaissions les peines d'amour
Et que les cordes de ma harpe
Rivalisaient avec le rayon du matin;
Quand le chant du chasseur, hors du hallier
Résonnait à pleins poumons,
Pour enflammer, réconforter
Selon que le désirait notre coeur.
Or, puisque les forêts éternellement reverdissent,
Prenez courage et suivez leur exemple;
Ce que vous avez naguère goûté pour vous
Peut se goûter aussi dans les autres.
Personne alors ne nous accusera plus
De vouloir pour nous seuls le plaisir;
À tous les moments de la vie,
Il convient de savoir jouir.
Et avec ce détour de mon chant
Nous voici de nouveau chez Hafiz;
Car il sied de goûter l'achèvement du jour,
Avec ceux qui connaissent le plaisir.
Goethe, Le Livre du chanteur
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Memória
«Sem o saber nem o querer - respondeu Carlota - o senhor deu à nossa conversa uma volta inteiramente favorável à minha tese. Mas a efígie do homem é, sem dúvida, muito independente; onde quer que esteja, está para si só, e não vamos pedir-lhe que nos indique o verdadeiro sepulcro. Mas quer que lhe confesse um estranho sentimento? Até pelas estátuas experimento uma certa aversão; pois sempre me pareceu que me dirigem uma tácita censura; evocam um remoto passado e recordam-me como é difícil honrar devidamente o presente. Quando recordamos os seres que vimos e conhecemos e confessamos quão pouco fomos para eles, quão pouco foram eles para nós, pomo-nos de tão mau humor! Encontramo-nos com um homem engenhoso e nem lhe falamos; com um homem sabedor e não procuramos aprender com ele; com um homem que conhece o mundo e não queremos o seu conselho; com um homem afável sem sequer o cumprimentarmos. E, por desgraça, não acontece assim unicamente com os que vão de passagem. Sociedades e famílias conduzem-se de modo exactamente igual com os seus mais queridos membros; as cidades com os seus cidadãos mais dignos; os povos com os seus melhores príncipes; as nações com os seus homens mais ilustres. Ouvi uma vez perguntar porque se diz dos mortos tanto bem e dos vivos se fala sempre com receio. E a resposta foi: porque dos mortos não há nada que temer ao passo que os vivos podemos encontrá-los no caminho. Pois imoral é também preocupar-se alguém com a memória dos outros; a maioria das vezes não passa de uma distracção egoísta quando, pelo contrário, deveria ser coisa sagrada manter sempre vivas e activas as nossas relações com os sobreviventes.»
Goethe, As Afinidades Electivas
sexta-feira, 18 de novembro de 2011
Poeta
«Com a grande parte dos poetas, ó pai e ó filhos dignos de tal pai, deixamos enganar-nos por falsas aparências de verdade: forcejo por ser breve, em obscuro me torno; a quem procura o estilo polido, faltam a força e o calor, e todo o que se propõe atingir o sublime, descamba no empolado. Acaba, todavia, rastejando pelo chão o demasiado cauto, o que tem medo da procela; mas quem deseje variar prodigiosamente um tema uno, pintará golfinhos nas florestas e javalis nas ondas do mar. Procurando fugir do engano se cai no erro, caso se não possua a arte. Nas imediações da escola Emília, o mais ínfimo dos escultores moldará unhas no bronze e até nele imitará cabelos sedosos, mas será infeliz no acabamento da obra por não saber criar um todo. Se algo desejasse compor, não quereria assemelhar-se a esse, do mesmo modo que não me agradaria possuir horrível nariz, ainda que meus olhos negros e negros cabelos fossem dignos de admiração.
Vós que escreveis, escolhei matéria à altura das vossas forças e pesai no espírito longamente que coisas vossos ombros bem carregam e as que eles não podem suportar. A quem escolher assunto de acordo com as suas possibilidades nunca faltará eloquência nem tão-pouco ordem luzidia.
A virtude e beleza da ordem consistirão - ou eu me engano - em que se diga imediatamente o que tem de ser dito, pondo muitos pormenores de lado e omitindo-os de momento: que o autor do poema prometido, ora escolha este aspecto, ora despreze aquele.»
Vós que escreveis, escolhei matéria à altura das vossas forças e pesai no espírito longamente que coisas vossos ombros bem carregam e as que eles não podem suportar. A quem escolher assunto de acordo com as suas possibilidades nunca faltará eloquência nem tão-pouco ordem luzidia.
A virtude e beleza da ordem consistirão - ou eu me engano - em que se diga imediatamente o que tem de ser dito, pondo muitos pormenores de lado e omitindo-os de momento: que o autor do poema prometido, ora escolha este aspecto, ora despreze aquele.»
Horácio, Arte Poética
quinta-feira, 17 de novembro de 2011
Otília
«Há uma variedade de monumentos e símbolos que aproximam de nós os ausentes e os mortos. Mas nenhum vale tanto como imagem. A conversa com uma imagem querida tem o mesmo encantamento que o debate com um amigo. Sentimos de modo muito grato que somos dois e que, no entanto, não nos podem separar.
Conversamos muitas vezes com uma pessoa presente como com um retrato. Não necessita falar, nem olhar-nos, nem ocupar-se de nós; vemo-lo, sentimos a nossa ligação com ele, e até essa nossa ligação pode aumentar sem que nada faça para isso, nem o sinta, embora se porte connosco exactamente como um retrato.»
Conversamos muitas vezes com uma pessoa presente como com um retrato. Não necessita falar, nem olhar-nos, nem ocupar-se de nós; vemo-lo, sentimos a nossa ligação com ele, e até essa nossa ligação pode aumentar sem que nada faça para isso, nem o sinta, embora se porte connosco exactamente como um retrato.»
Goethe, As Afinidades Electivas
quarta-feira, 16 de novembro de 2011
Vida
«-Passemos agora ao resto - disse a seu amigo - à descrição da herdade, para o que deve haver já um trabalho prévio suficiente, de que depois resultarão os modelos de arrendamento e outras coisas. Mas assinalemos e estabeleçamos um princípio: separemos a vida de tudo o que é propriamente negócio. A vida requer seriedade, esforço e livre arbítrio, o negócio impõe a mais pura perseverança; como a vida necessita às vezes de inconsequência, até mesmo se pode dizer que a vida nos dá alegria e suavidade; quanto mais exacto fores num, tanto mais livre serás no outro, ao passo que, se misturar as duas coisas, o arbitrário destrói e elimina o exacto.»
Goethe, As Afinidade Electivas
terça-feira, 15 de novembro de 2011
Tempo
«A distinção absoluta primitiva entre tempo e ternidade no pensamento Cristão - entre nunc movens com o seu princípio e fim e nunc stans, a posse perfeita da vida infinda - adquiriu uma terceira ordem intermediária baseada nesta posição muito singular de "nem numa nem noutra" dos anjos. Mas tal como o Princípio da Complementaridade, esta ficção-concórdia em breve provou que tinha utilidade fora do seu contexto imediato, a angeologia. Porque serviu como um meio para se falar sobre certos aspectos da experiência humana, foi humanizada. Ajudou as pessoas a pensar na sensação que os homens às vezes têm de participar numa qualquer ordem de duração que não seja do nunc movens de poderem, por assim dizer, fazer tudo o que os anjos fazem. Estes momentos são os tais a que Agostinho chama os momentos daquilo a que os psicólogos chamam a "integração temporal". Quando Agostinho recitava o seu salmo, encontrou nele uma imagem para a integração do passado, presente e futuro, que desafia o tempo consecutivo. Descobriu aquilo a que agora erradamente se refere como "forma espacial". Ele estava a antecipar o que sebemos da relação entre livros e a terceira ordem de duração de S. Tomás - porque na espécie de tempo que os livros conhecem , um momento tem perspectivas infindas da realidade. Sentimos, nas palavra de Thomas Mann, que "no seu começo existe o seu meio e o seu fim, o seu passado invade o presente e até a mais extrema atenção ao presente é invadida pela preocupação com o futuro". O conceito de aevum fornece uma forma de falar sobre esta variedade invulgar de duração - nem temporal nem eterna, mas, segundo Aquino disse, participando tanto no temporal como no eterno. Não elimina o tempo nem o espacializa; coexiste com o tempo, e é uma forma nas quais as coisas podem ser perpétuas sem serem eternas.»
Frank Kermode, A Sensibilidade Apocalíptica
domingo, 13 de novembro de 2011
105
«A justiça que recompensa. Quem tenha entendido plenamente a teoria da inteira irresponsabilidade já não pode meter no conceito de justiça a chamada justiça que pune e recompensa: caso esta consista em dar o seu a cada um. Pois aquele que é punido não merece a punição: ele é apenas utilizado como meio para, doravante, dissuadir de certos actos; do mesmo modo, aquele a quem se recompensa não merece essa recompensa: é que ele não podia agir de maneira diferente daquela em que agiu. Portanto, a recompensa tem só o sentido dum encorajamento para ele e para outros, a fim de fornecer um motivo para ulteriores acções; é para o corredor na pista de corridas que se gritam elogios, não para aquele que está na meta. Nem o castigo nem a recompensa são algo que caiba a alguém como o que é seu: são-lhe dados por razões utilitárias, sem que, com justiça, ele os pudesse reclamar. Deve-se poder dizer que «o sábio não recompensa, porque se agiu bem», tal qual como se disse que «o sábio não castiga, porque se agiu mal, mas para que não se aja mal». Se a pena e a recompensa fossem suprimidas, então desapareceriam os mais poderosos motivos que afastam de certas acções e levam a certas outras acções; o interesse dos homens exige a sua permanência; e na medida em que pena e recompensa, repreensão e louvor agem da maneira mais sensível sobre a vaidade, pois o mesmo interesse reclama também a permanência da vaidade.»
Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano
Tea at the Palaz of Hoon
Not less because in purple I descended
The western day through what you called
The loneliest air, not less was I myself.
What was the ointment sprinkled on my beard?
What were the hymns that buzzed beside my ears?
What was the sea whose tide swept through me there?
Out of my mind the golden ointment rained,
And my ears made the blowing hymns they heard.
I was myself the compass of that sea:
I was the world in which I walked, and what I saw
Or heard or felt came not but from myself;
And there I found myself more truly and more strange.
Wallace Stevens
quarta-feira, 9 de novembro de 2011
Dangerousness
«The political is threatened insofar as man's dangerousness is threatened. Therefore the affirmation of the political is the affirmation of man's dangerousness. How should this affirmation be understood? Should it be intended politically, it can have "no normative meaning but only an existential meaning", like everything political. One then will have to ask: in time of danger, in the "dire emergency", does "a fighting totality of men" affirm the dangerousness of its enemy? does it wish for dangerous enemies? And one will have to answer "no," along the lines of C. Fabricius's comment when he heard that a Greek philosopher had proclaimed pleasure as the greatest good: If only Pyrrhus and the Samnites shared this philosopher's opinion as long as we are at war with them! Likewise, a nation in danger wants its own dangerousness not for the sake of dangerousness, but for the sake of being rescued from danger. Thus, the affirmation of dangerousness as such has no political meaning but only a "normative", moral meaning; expressed appropriately, that affirmation is the affirmation of power as the power that forms states, of virtù in Machiavelli's sense. Here, too, we recall Hobbes, who describes fearfulness as the virtue (which, incidentally, is just as much negated by him as is the state of nature itself) of the state of nature, but who understands fearfulness as inclusive of glory and courage. Thus warlike morals seem to be the ultimate legitimation for Schmitt's affirmation of the political, and the opposition between the negation and the position of the political seems to coincide with the opposition between pacifist internationalism and bellicose nationalism.
Is that conclusion really correct? One has to doubt it if one considers the resolution with which Schmitt refuses to come on as a belligerent against the pacifists. And one must quarrel with the conclusion as soon as one has seen more precisely how Schmitt arrives at man's dangerousness as the ultimate presupposition of the position of the political. After he has aleady twice rejected the pacifist ideal on the ground that the ideal in any case has no meaning for behavior in the present situation and for the understanding of this situation, Schmitt - while recognizing the possibility in principle of the "world state" as a wholly apolitical "partnership in consumption and production" of humanity united - finally asks "upon which men will the terrible power devolve that a global economic and technical centralization entails"; in other words, which men will rule in the "world state." "This question cannot by any means be dismissed by hoping... that government of men over men will have become superfluous, because men will then be absolutely free. One can answer this question with optimistic or pessimistic suppositions," namely with the optimistic supposition that man will then be undangerous, or with the pessimistic supposition that he will be dangerous. The question of man's dangerousness or undangerousness thus surfaces in view of the question whether the government of men over men is, or will be, necessary or superfluous. Accordingly, dangerousness means need of dominion. And the ultimate quarrel occurs not between belicosity and pacifism (or nationalism and internationalism) but between the "authoritarian and anarchistic theories".»
Is that conclusion really correct? One has to doubt it if one considers the resolution with which Schmitt refuses to come on as a belligerent against the pacifists. And one must quarrel with the conclusion as soon as one has seen more precisely how Schmitt arrives at man's dangerousness as the ultimate presupposition of the position of the political. After he has aleady twice rejected the pacifist ideal on the ground that the ideal in any case has no meaning for behavior in the present situation and for the understanding of this situation, Schmitt - while recognizing the possibility in principle of the "world state" as a wholly apolitical "partnership in consumption and production" of humanity united - finally asks "upon which men will the terrible power devolve that a global economic and technical centralization entails"; in other words, which men will rule in the "world state." "This question cannot by any means be dismissed by hoping... that government of men over men will have become superfluous, because men will then be absolutely free. One can answer this question with optimistic or pessimistic suppositions," namely with the optimistic supposition that man will then be undangerous, or with the pessimistic supposition that he will be dangerous. The question of man's dangerousness or undangerousness thus surfaces in view of the question whether the government of men over men is, or will be, necessary or superfluous. Accordingly, dangerousness means need of dominion. And the ultimate quarrel occurs not between belicosity and pacifism (or nationalism and internationalism) but between the "authoritarian and anarchistic theories".»
Leo Strauss, «Notes on Carl Schmitt, The Concept of the political»
terça-feira, 8 de novembro de 2011
Retórica
«Entendamos por retórica a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de persuadir. Esta não é seguramente a função de nenhuma outra arte; pois cada uma das outras apenas é instrutiva e persuasiva nas áreas da sua competência; como, por exemplo, a medicina sobre a saúde e a doença, a geometria sobre as variações que afectam as grandezas, e a aritmética sobre os números; o mesmo se passando com todas as outras artes e ciências. Mas a retórica parece ter, por assim dizer, a faculdade de descobrir os meios de persuasão sobre qualquer questão dada. E por isso afirmamos que, como arte, as suas regras não se aplicam a nenhum género específico de coisas.
Das provas de persuasão, umas são próprias da arte retórica e outras não. Chamo provas inartísticas a todas as que não são produzidas por nós, antes já existem: provas como testemunhos, confissões sob tortura, documentos escritos e outras semelhantes; e provas artísticas, todas as que se podem preparar pelo método e por nós próprios. De sorte que é necessário utilizar as primeiras, mas inventar as segundas.
As provas de persuasão fornecidas pelo discurso são de três espécies: umas residem no carácter moral do orador; outras, no modo como se dispõe o ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar.
Persuade-se pelo carácter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé. Pois acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas, em todas as coisas em geral, mas sobretudo nas de que não há conhecimento exacto e que deixam margem para dúvida. É, porém, necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não de uma opinião prévia sobre o carácter do orador; pois não se deve considerar sem importância para a persuasão a probidade do que fala, como aliás alguns autores desta arte propõem, mas quase se poderias dizer que o carácter é o principal meio de persuasão.
Persuade-se pela disposição dos ouvintes, quando estes são levados a sentir emoção por meio do discurso, pois os juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio. É desta espécie de prova e só desta que, dizíamos, se tentam ocupar os autores actuais de artes retóricas. E a ela daremos especial atenção quando falarmos das paixões.
Persuadimos, enfim, pelo discurso, quando mostramos a verdade ou o que parece verdade, a partir do que é persuasivo em cada caso particular.
Ora, como as provas por persuasão se obtêm por estes três meios, é evidente que delas se pode servir quem for capaz de formar silogismos, e puder teorizar sobre os caracteres, sobre as virtudes e, em terceiro lugar, sobre as paixões (o que cada uma das paixões é, quais as suas qualidades, que origem têm e como se produzem). De sorte que a retórica é como que um rebento da dialéctica e daquele saber prático sobre os caracteres a que é justo chamar política. É por isso também que a retórica se cobre com a figura da política, e igualmente aqueles que têm a pretensão de a conhecer, quer por falta de educação, quer por jactância, quer ainda por outras razões inerentes à condição humana. A retórica é, de facto, uma parte da dialéctica e a ela se assemelha, como dissemos no princípio; pois nenhuma das duas é ciência de definição de um assunto específico, mas mera faculdade de proporcionar razões para os argumentos.»
Das provas de persuasão, umas são próprias da arte retórica e outras não. Chamo provas inartísticas a todas as que não são produzidas por nós, antes já existem: provas como testemunhos, confissões sob tortura, documentos escritos e outras semelhantes; e provas artísticas, todas as que se podem preparar pelo método e por nós próprios. De sorte que é necessário utilizar as primeiras, mas inventar as segundas.
As provas de persuasão fornecidas pelo discurso são de três espécies: umas residem no carácter moral do orador; outras, no modo como se dispõe o ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar.
Persuade-se pelo carácter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé. Pois acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas, em todas as coisas em geral, mas sobretudo nas de que não há conhecimento exacto e que deixam margem para dúvida. É, porém, necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não de uma opinião prévia sobre o carácter do orador; pois não se deve considerar sem importância para a persuasão a probidade do que fala, como aliás alguns autores desta arte propõem, mas quase se poderias dizer que o carácter é o principal meio de persuasão.
Persuade-se pela disposição dos ouvintes, quando estes são levados a sentir emoção por meio do discurso, pois os juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio. É desta espécie de prova e só desta que, dizíamos, se tentam ocupar os autores actuais de artes retóricas. E a ela daremos especial atenção quando falarmos das paixões.
Persuadimos, enfim, pelo discurso, quando mostramos a verdade ou o que parece verdade, a partir do que é persuasivo em cada caso particular.
Ora, como as provas por persuasão se obtêm por estes três meios, é evidente que delas se pode servir quem for capaz de formar silogismos, e puder teorizar sobre os caracteres, sobre as virtudes e, em terceiro lugar, sobre as paixões (o que cada uma das paixões é, quais as suas qualidades, que origem têm e como se produzem). De sorte que a retórica é como que um rebento da dialéctica e daquele saber prático sobre os caracteres a que é justo chamar política. É por isso também que a retórica se cobre com a figura da política, e igualmente aqueles que têm a pretensão de a conhecer, quer por falta de educação, quer por jactância, quer ainda por outras razões inerentes à condição humana. A retórica é, de facto, uma parte da dialéctica e a ela se assemelha, como dissemos no princípio; pois nenhuma das duas é ciência de definição de um assunto específico, mas mera faculdade de proporcionar razões para os argumentos.»
Aristóteles, Retórica
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
II
Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.
António Franco Alexandre, Quatro Caprichos
Idee
«Nel realizzare la trasformazione delle idee in unità di misura, Platone si ispira alla vita pratica, nella quale, a quanto sembra, tutte le arti e le tecniche sono guidate da «idee», ossia da «forme» di oggetti che l'artefice immagina con l'occhio della mente, e imita per riprodurle nella realtà. Con l'aiuto di questa analogia Platone riesce a concepire la trascendenza delle idee allo stesso modo in cui concepisce l'esistenza trascendente del modello: quest'ultimo, proprio in quanto trascende il processo di realizzazione, pur essendone la guida, potrà infine costituire il criterio di giudizio per misurarne la riuscita o il fallimento. Le idee diventano criteri inamovibili, «assoluti», del comportamento e del giudizio politico e morale, nello stesso senso in cui l'«idea» generica di «letto» costituisce il criterio per realizzare ogni singolo letto e giudicarne la funzionalità. Infatti non c'è grande differenza tra usare le idee come modelli, e l'usarle, in una maniera più grossolana, più rozza, come un vero e proprio metro del comportamento; nei suoi primi dialoghi, scritti sotto la diretta influenza di Platone, Aristotele già paragona «la legge più perfetta», ossia la legge che si avvicina maggiormente all'idea, al «filo a piombo, al regolo e al compasso... eccellenti fra tutti gli utensili».
Hannah Arendt, Tra Passato e Futuro
sábado, 5 de novembro de 2011
Bem e Mal
«Sabemos que o bem e o mal crescem juntos neste mundo numa quase inextricável mistura; e o conhecimento do bem está tão associado e interligado ao conhecimento do mal, tornando-se, com tantas semelhanças traiçoeiras, tão difícil discernir entre ambos, que nem aquela confusão de sementes que a Psique se viu incessantemente obrigada a joeirar e separar estaria mais caldeada. Foi da casca de uma maçã trincada que o conhecimento do bem e do mal, como um par de gémeos colados entre si, saltou para este mundo. E talvez a maldição em que Adão incorreu ao conhecer o bem e o mal tenha sido justamente essa, conhecer o bem através do mal. Considerando pois a presente condição do homem, que sabedoria pode haver na escolha, que continência na abstenção, sem o conhecimento do mal? Só aquele que é capaz de entender e considerar o vício em todas as suas seduções e aparentes prazeres, e todavia abster-se, todavia distinguir, todavia preferir o que é verdadeiramente melhor, só esse está no caminho certo para se tornar um cristão autêntico.
Não posso louvar uma virtude esquiva e enclausurada, ancilosa e abafada, que nunca avança e enfrenta o seu adversário, antes abandona furtivamente a competição em que aquela imortal coroa de louros é o troféu a conquistar, por entre lama e suor. A verdade é que, muito mais do que inocência, o trazemos é impureza a este mundo. São as provações que nos purificam, e o que nos põe à prova é o que nos é adverso. Essa virtude feita criança na contemplação do mal, que não conhece tudo o que o vício promete aos seus adeptos para só então o rejeitar, não passa, pois, de uma virtude oca e inautêntica. A sua brancura é apenas excrementícia. Eis a razão porque o nosso sábio e circunspecto poeta Spencer, que me atrevo a considerar melhor professor que Escoto ou Aquino, ao descrever a verdadeira temperança na personagem de Guion, fá-lo atravessar com o seu romeiro a caverna de Mamona e a morada da felicidade terrena, para que ele as possa ver e conhecer e, no entanto, abster-se. Uma vez, pois, que o conhecimento e a investigação do vício neste mundo são tão necessários para a constituição da virtude humana quanto o exame do erro para a confirmação da verdade, como poderemos nós com maior segurança e menor perigo explorar as regiões do pecado e da falsidade do que lendo todo o tipo de tratados e escutando todo o género de argumentos? É esse o benefício que podemos obter da leitura ecléctica de livros.»
Não posso louvar uma virtude esquiva e enclausurada, ancilosa e abafada, que nunca avança e enfrenta o seu adversário, antes abandona furtivamente a competição em que aquela imortal coroa de louros é o troféu a conquistar, por entre lama e suor. A verdade é que, muito mais do que inocência, o trazemos é impureza a este mundo. São as provações que nos purificam, e o que nos põe à prova é o que nos é adverso. Essa virtude feita criança na contemplação do mal, que não conhece tudo o que o vício promete aos seus adeptos para só então o rejeitar, não passa, pois, de uma virtude oca e inautêntica. A sua brancura é apenas excrementícia. Eis a razão porque o nosso sábio e circunspecto poeta Spencer, que me atrevo a considerar melhor professor que Escoto ou Aquino, ao descrever a verdadeira temperança na personagem de Guion, fá-lo atravessar com o seu romeiro a caverna de Mamona e a morada da felicidade terrena, para que ele as possa ver e conhecer e, no entanto, abster-se. Uma vez, pois, que o conhecimento e a investigação do vício neste mundo são tão necessários para a constituição da virtude humana quanto o exame do erro para a confirmação da verdade, como poderemos nós com maior segurança e menor perigo explorar as regiões do pecado e da falsidade do que lendo todo o tipo de tratados e escutando todo o género de argumentos? É esse o benefício que podemos obter da leitura ecléctica de livros.»
John Milton, Areopagítica, Discurso sobre a liberdade de expressão
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
O Portugal Futuro
O Portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e e espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e e espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
Anna
«Vronsky seguiu o condutor e subiu ao estribo do vagão, detendo-se à entrada do compartimento para dar passagem a uma senhora que saía.
Com a sua velha experiência de homem de sociedade, bastou-lhe um olhar para compreender, pelo aspecto da desconhecida, que pertencia à alta-roda. Curvou-se e ia entrar no vagão quando sentiu necessidade de voltar a olhá-la, não atraído pela sua beleza, nem pela sua elegância, nem pela singela graça que se desprendia de toda a sua pessoa, mas apenas porque a expressão do seu rosto encantador, quando passara junto dele, se mostrara especialmente suave e delicada. No momento em que se voltou, também ele olhara para trás. Os seus brilhantes olhos cinzentos, que pareciam escuros graças às espessas pestanas, detiveram-se nele, amistosos e atentos, como se o reconhecessem, e imediatamente se desviaram para a estação, como que procurando alguém. Naquele rápido olhar, Vronsky teve tempo de lhe observar a expressão de uma vivacidade contida, os olhos reluzentes e o sorriso quase imperceptível dos lábios rubros. Parecia que algo excessivo lhe inundava o ser e, a pesar seu, transbordava ora do olhar luminoso, ora do sorriso. Não obstante ter velado intencionalmente a luz dos olhos, ela transparecia através do leve sorriso.»
Com a sua velha experiência de homem de sociedade, bastou-lhe um olhar para compreender, pelo aspecto da desconhecida, que pertencia à alta-roda. Curvou-se e ia entrar no vagão quando sentiu necessidade de voltar a olhá-la, não atraído pela sua beleza, nem pela sua elegância, nem pela singela graça que se desprendia de toda a sua pessoa, mas apenas porque a expressão do seu rosto encantador, quando passara junto dele, se mostrara especialmente suave e delicada. No momento em que se voltou, também ele olhara para trás. Os seus brilhantes olhos cinzentos, que pareciam escuros graças às espessas pestanas, detiveram-se nele, amistosos e atentos, como se o reconhecessem, e imediatamente se desviaram para a estação, como que procurando alguém. Naquele rápido olhar, Vronsky teve tempo de lhe observar a expressão de uma vivacidade contida, os olhos reluzentes e o sorriso quase imperceptível dos lábios rubros. Parecia que algo excessivo lhe inundava o ser e, a pesar seu, transbordava ora do olhar luminoso, ora do sorriso. Não obstante ter velado intencionalmente a luz dos olhos, ela transparecia através do leve sorriso.»
Lev Tolstoy, Ana Karenina
terça-feira, 1 de novembro de 2011
Stepane Arkadievitch
«Quando terminou a leitura das cartas, Stepane Arkadievitch pegou nos processos, folheou-os rapidamente, garatujou algumas notas com um lápis enorme e, pousando tudo de lado, começou a tomar o café, ao mesmo tempo que abria o jornal da manhã, ainda húmido de tinta.
Stepane Arkadievitch era leitor de um jornal liberal, não extremista, antes da tendência política a que pertencia a maioria. Embora, na realidade, não lhe interessasse nem a ciência, nem a arte, nem a política, defendia firmemente as mesmas opiniões da maioria e do jornal, só mudando de ideias quando todos o faziam, ou melhor, não mudava de ideias; estas é que se transformavam imperceptivelmente, por si mesmas.
Stepane Arkadievitch não escolhia as suas tendências nem os seus pontos de vista; estes é que vinham até ele, tal como acontecia no que respeitava ao feitio do chapéu e ao corte das roupas: usava o que estava na moda. Em virtude de pertencer a determinado círculo social e de necessitar de alguma actividade mental - coisa que geralmente se desenvolve na idade madura - era-lhe tão imprescindível possuir pontos de vista próprios como usar chapéu.»
Stepane Arkadievitch era leitor de um jornal liberal, não extremista, antes da tendência política a que pertencia a maioria. Embora, na realidade, não lhe interessasse nem a ciência, nem a arte, nem a política, defendia firmemente as mesmas opiniões da maioria e do jornal, só mudando de ideias quando todos o faziam, ou melhor, não mudava de ideias; estas é que se transformavam imperceptivelmente, por si mesmas.
Stepane Arkadievitch não escolhia as suas tendências nem os seus pontos de vista; estes é que vinham até ele, tal como acontecia no que respeitava ao feitio do chapéu e ao corte das roupas: usava o que estava na moda. Em virtude de pertencer a determinado círculo social e de necessitar de alguma actividade mental - coisa que geralmente se desenvolve na idade madura - era-lhe tão imprescindível possuir pontos de vista próprios como usar chapéu.»
Lev Tolstoy, Ana Karenina
Para além da casualidade
«Na propriedade de Lévine, um homem e uma mulher encontram-se, dois seres solitários, melancólicos. Gostam um do outro e desejam, secretamente, juntar as suas vidas. Só estão à espera de ficarem sós por momentos para o dizerem. Um dia, finalmente, encontram-se sem testemunhas num bosque onde foram apanhar cogumelos. Perturbados, ficam calados, sabendo que chegou o momento e que não o podem deixar escapar. Quando o silêncio já se prolongou demasiado a mulher, de repente, «contra a sua vontade, inopinadamente», começa a falar de cogumelos. Depois, volta o silêncio, o homem procura as palavras para a sua declaração mas, em vez de falar de amor, «por causa de um impulso inesperado»... fala igualmente de cogumelos. No regresso, continuam a falar de cogumelos, impotentes e desesperados, pois nunca, e eles sabem-no, nunca falarão de amor.
Uma vez em casa, o homem diz a si mesmo que não falou de amor por causa da sua mulher morta cuja memória ele não podia trair. Mas nós sabemos bem: é uma justificação falsa que ele só invoca para se consolar. Para se consolar? Sim. Pois resignamo-nos por perdermos um amor por uma razão. Nunca nos perdoamos por o termos perdido sem qualquer razão.
Este pequeno episódio muito belo é como a parábola de uma das maiores descobertas de Anna Karenina: o pôr em evidência o aspecto a-casual, incalculável, mesmo misterioso, da acção humana.
O que é a acção: eterna questão do romance, a sua questão, por assim dizer, constitutiva. Como nasce uma decisão? Como é que se transforma em acto e como é que os actos se encadeiam para se tornarem aventura?
Da matéria estranha e caótica da vida, os antigos romancistas tentaram abstrair o fio de uma racionalidade límpida; segundo eles, o móbil racionalmente apreensível faz nascer o acto, este provoca um outro. A aventura é o encadeamento, luminosamente casual, dos actos.»
Uma vez em casa, o homem diz a si mesmo que não falou de amor por causa da sua mulher morta cuja memória ele não podia trair. Mas nós sabemos bem: é uma justificação falsa que ele só invoca para se consolar. Para se consolar? Sim. Pois resignamo-nos por perdermos um amor por uma razão. Nunca nos perdoamos por o termos perdido sem qualquer razão.
Este pequeno episódio muito belo é como a parábola de uma das maiores descobertas de Anna Karenina: o pôr em evidência o aspecto a-casual, incalculável, mesmo misterioso, da acção humana.
O que é a acção: eterna questão do romance, a sua questão, por assim dizer, constitutiva. Como nasce uma decisão? Como é que se transforma em acto e como é que os actos se encadeiam para se tornarem aventura?
Da matéria estranha e caótica da vida, os antigos romancistas tentaram abstrair o fio de uma racionalidade límpida; segundo eles, o móbil racionalmente apreensível faz nascer o acto, este provoca um outro. A aventura é o encadeamento, luminosamente casual, dos actos.»
Milan Kundera, A Arte do romance
Opinião
«O altar da opinião é o lugar-comum. Sempre que um lugar-comum é pronunciado - os oficiantes terão à sua disposição um certo número, e não mais, de timbres e formas de linguagem, para garantir a ortodoxia cerimonial - abre-se de novo o abismo original e os elementos dividem-se. Léon Bloy sugere a definição do lugar-comum como inversão paródica de um theologoúmenon: «Sem o saberem, os burgueses mais inúteis são uns profetas tremendos, não podem abrir a boca sem abalarem os astros e os abismos da luz são imediatamente invocados pelos báratros da sua Estupidez». E as suas palavras encontram sequência em Kraus: «Aprender a ver os abismos onde existem os lugares-comuns». Flaubert, em Bouvard et Pécuchet, Bloy e Kraus confrontaram-se com este facto extraordinário, mas só Kraus pôde assistir à sua última e atroz metamorfose.
Lugares-comuns, frases feitas, são pedras da linguagem «que nos transportam à época pouco conhecida que antecede imediatamente a catástrofe. "Naquele tempo," diz o Génesis, "a terra tinha uma única língua"». O objectivo supremo da escrita sempre foi, e cito mais uma vez Mallarmé, sair das línguas «imparfeites en cela que plusieurs» e, paralelamente, descobrir nas coisas uma língua escrita e falante no silêncio, como testemunham séculos de especulações sobre os hieroglifos. Mas se, com o passar do tempo, tudo se converte em paródia, também esta doutrina, que nenhuma tradição desenvolveu como a judaica, terá de deparar com a presença actual da sua imitação. Será o nazismo a pô-la em acção. O seu modo de agir implica «o aniquilamento da metáfora»: na imagem, retraduzida numa linguagem de factos, ecoa agora o som da tortura. Foi esse o acontecimento que fez emudecer Kraus quando Hitler tomou o poder. Brecht anotou o sucedido: «Quando o Terceiro Reich foi criado / do eloquente chegou apenas uma pequena mensagem. / Num poema de dez linhas / ergueu-se a sua voz, só para lamentar / que não lhe bastava». Mas Kraus não emudeceu simplesmente, como anunciara no seu último poema, aquele a que Brecht se refere. O eloquente dedicou então o seu mais severo discurso à perda da palavra em consequência da afirmação do nazismo: escreveu Dritte Walpurgisnacht, enorme carvalho crescido na vala comum do século, divisória maciça, obra catafractária de que só se conhece o incipit, e dir-se-ia quase com razão, porque, segundo a regra do «construtor de frases», a primeira frase do livro corresponde ao seu conjunto: «A propósito de Hitler, nada me vem ao espírito». E o texto prossegue: «Bem sei que, com este fruto de prolongadas reflexões e de múltiplas tentativas de captar o acontecimento e a força que o move, fico muito aquém da expectativa, que talvez tendesse mais do que nunca para o polemista a quem o popular mal-entendido exige o que se designa por tomada de posição, já que, sempre que um mal atingia de qualquer forma a sua susceptibilidade, ele fez o que se chama «fazer testa». Mas há males perante os quais isso deixa de ser uma metáfora, e que tornam o cérebro que lhe está por detrás, e que participa de qualquer forma nessas acções, incapaz de ter um pensamento qualquer. Eu sinto-me como atingido na cabeça, e se, antes de o ser de facto, não quero considerar-me satisfeito por parecer tão emudecido como de facto estou, é porque obedeço a algo que me obriga também a prestar contas de um fracasso, a explicar a situação em que me colocou uma derrota tão completa no domínio da língua alemã, e o meu enfraquecimento pessoal por ocasião do despertar de uma nação e da instauração de uma ditadura, que hoje tudo comanda e não apenas a linguagem». Se a escrita sempre ambicionou reconduzir as metáforas à sua origem, que depois se descobre ser mais uma vez algo de impróprio, os nazis fizeram de repente algo de demasiado semelhante, com «a irrupção da frase-feita em acção». Foi este o acontecimento que, depois de ter imposto o silêncio a Kraus, o fez escrever o grandioso comentário ao seu silêncio. Quando «espalhar sal nas chagas abertas» é um facto presente e não a origem remota e não memorável de uma metáfora, quando as metáforas mortas despertam para ser aplicadas directamente sobre o corpo das vítimas, a própria metáfora desaparece e o seu fim é o espelho infernal da origem: «como o facto ocorreu, a palavra deixa de ser utilizável». Finalmente, «o sangue escorre da crosta das frases feitas» e a palavra cala-se. «É esse - na nova fé, que porém não se apercebe disso - o milagre da transubstanciação».
Lugares-comuns, frases feitas, são pedras da linguagem «que nos transportam à época pouco conhecida que antecede imediatamente a catástrofe. "Naquele tempo," diz o Génesis, "a terra tinha uma única língua"». O objectivo supremo da escrita sempre foi, e cito mais uma vez Mallarmé, sair das línguas «imparfeites en cela que plusieurs» e, paralelamente, descobrir nas coisas uma língua escrita e falante no silêncio, como testemunham séculos de especulações sobre os hieroglifos. Mas se, com o passar do tempo, tudo se converte em paródia, também esta doutrina, que nenhuma tradição desenvolveu como a judaica, terá de deparar com a presença actual da sua imitação. Será o nazismo a pô-la em acção. O seu modo de agir implica «o aniquilamento da metáfora»: na imagem, retraduzida numa linguagem de factos, ecoa agora o som da tortura. Foi esse o acontecimento que fez emudecer Kraus quando Hitler tomou o poder. Brecht anotou o sucedido: «Quando o Terceiro Reich foi criado / do eloquente chegou apenas uma pequena mensagem. / Num poema de dez linhas / ergueu-se a sua voz, só para lamentar / que não lhe bastava». Mas Kraus não emudeceu simplesmente, como anunciara no seu último poema, aquele a que Brecht se refere. O eloquente dedicou então o seu mais severo discurso à perda da palavra em consequência da afirmação do nazismo: escreveu Dritte Walpurgisnacht, enorme carvalho crescido na vala comum do século, divisória maciça, obra catafractária de que só se conhece o incipit, e dir-se-ia quase com razão, porque, segundo a regra do «construtor de frases», a primeira frase do livro corresponde ao seu conjunto: «A propósito de Hitler, nada me vem ao espírito». E o texto prossegue: «Bem sei que, com este fruto de prolongadas reflexões e de múltiplas tentativas de captar o acontecimento e a força que o move, fico muito aquém da expectativa, que talvez tendesse mais do que nunca para o polemista a quem o popular mal-entendido exige o que se designa por tomada de posição, já que, sempre que um mal atingia de qualquer forma a sua susceptibilidade, ele fez o que se chama «fazer testa». Mas há males perante os quais isso deixa de ser uma metáfora, e que tornam o cérebro que lhe está por detrás, e que participa de qualquer forma nessas acções, incapaz de ter um pensamento qualquer. Eu sinto-me como atingido na cabeça, e se, antes de o ser de facto, não quero considerar-me satisfeito por parecer tão emudecido como de facto estou, é porque obedeço a algo que me obriga também a prestar contas de um fracasso, a explicar a situação em que me colocou uma derrota tão completa no domínio da língua alemã, e o meu enfraquecimento pessoal por ocasião do despertar de uma nação e da instauração de uma ditadura, que hoje tudo comanda e não apenas a linguagem». Se a escrita sempre ambicionou reconduzir as metáforas à sua origem, que depois se descobre ser mais uma vez algo de impróprio, os nazis fizeram de repente algo de demasiado semelhante, com «a irrupção da frase-feita em acção». Foi este o acontecimento que, depois de ter imposto o silêncio a Kraus, o fez escrever o grandioso comentário ao seu silêncio. Quando «espalhar sal nas chagas abertas» é um facto presente e não a origem remota e não memorável de uma metáfora, quando as metáforas mortas despertam para ser aplicadas directamente sobre o corpo das vítimas, a própria metáfora desaparece e o seu fim é o espelho infernal da origem: «como o facto ocorreu, a palavra deixa de ser utilizável». Finalmente, «o sangue escorre da crosta das frases feitas» e a palavra cala-se. «É esse - na nova fé, que porém não se apercebe disso - o milagre da transubstanciação».
Roberto Galasso, Os Quarenta e nove degraus
domingo, 30 de outubro de 2011
Justiça
«É natural ressentir, e repelir ou retaliar, qualquer mal feito ou tentado contra nós, ou contra aqueles com os quais sentimos empatia. Não é necessário discutir aqui a origem deste sentimento. Seja ele um instinto ou o resultado do uso da inteligência, é, sabêmo-lo, comum a toda a natureza animal; pois qualquer animal tenta ferir os que o feriram, ou que pensa estarem prestes a feri-lo a si ou às sua crias. Os seres humanos, neste ponto, apenas diferem dos outros animais em dois aspectos. Primeiro, em serem capazes de terem empatia, não apenas com as suas crias, ou, como alguns dos animais mais nobres, com algum animal superior que seja amável para com eles, mas com todos os seres humanos, e mesmo com todos os seres sencientes. Segundo, em terem uma inteligência mais desenvolvida, o que confere um maior alcance a todos os seus sentimentos, sejam eles de preocupação consigo mesmo ou de empatia. Graças à sua inteligência superior, mesmo sem ter em conta o maior alcance da sua empatia, um ser humano é capaz de dar-se conta da comunidade de interesses entre si e a sociedade humana da qual faz parte, de tal forma que qualquer conduta que ameace a segurança da sociedade em geral é ameaçadora é ameaçadora para a sua própria segurança e desperta o seu instinto (se é que é um instinto) de autodefesa. A mesma superioridade de inteligência, aliada à possibilidade de sentir empatia para com os seres humanos em geral, permite-lhe ligar-se à ideia colectiva da sua tribo, do seu país, ou da humanidade, de tal maneira que qualquer acto prejudicial para eles desperta o seu instinto de empatia, e insta-o a resistir.
O sentimento de justiça, naquele dos seus elementos que consiste no desejo de punir, é, portanto, suponho, o sentimento natural de retaliação ou vingança, tornado pela inteligência e empatia aplicável àquelas ofensas, isto é, àquelas mágoas, que nos ferem por meio da sociedade no seu todo, ou em comum com ela. Este sentimento, em si, nada tem de moral; o que é moral é a sua subordinação exclusiva às empatias sociais, de tal forma que espera e obedece ao seu chamamento. Pois o sentimento natural tende a fazer-nos ressentir indiscriminadamente o que qualquer pessoa faça de desagradável para nós; mas, quando moralizado pelo sentimento social, apenas actua nas direcções conformes ao bem geral: as pessoas justas ficam ofendidas com um mal para a sociedade, embora não seja um mal para si mesmas, e não ficam ofendidas com um mal para si mesmas, por mais doloroso, a menos que seja do tipo que a sociedade tem um interesse com elas em reprimir.
Não é uma objecção a esta doutrina afirmar que, quando sentimos o nosso sentimento de justiça ultrajado, não estamos a pensar na sociedade no seu todo, ou em qualquer interesse colectivo, mas apenas no caso particular. É certamente algo muito comum, embora seja o contrário do recomendável, sentir ressentimento apenas por sofrer uma dor; mas uma pessoa cujo ressentimento é realmente um sentimento moral, isto é, uma pessoa que avalia se um acto é censurável antes de se permitir ter ressentimento - tal pessoa, embora possa não dizer expressamente a si mesma que defende o interesse da sociedade, sente por certo que está a defender uma regra que existe para o benefício dos outros, mas também de si próprio. Se não sente isto - se encara o acto apenas na medida em que a afecta pessoalmente - não é conscienciosamente justa; não está a preocupar-se com a justiça das suas acções. Isto é admitido até mesmo por pensadores morais anti-utilitaristas. Quando Kant (como antes assinalámos) propõe como princípio fundamental da moral «Age de tal forma que a regra da tua acção possa ser adoptada como lei por todos os seres racionais», reconhece virtualmente que o interesse da humanidade, no seu conjunto, ou pelo menos da humanidade considerada indescriminadamente, deve estar na mente do agente quando decide conscienciosamente sobre a moralidade do acto. De outra forma está a usar palavras sem sentido: pois não pode defender-se com plausibilidade que mesmo uma regra de total egoísmo não tenha a possibilidade de ser adoptada por todos os seres racionais - que exista na natureza das coisas um qualquer obstáculo insuperável à sua adopção. Para dar algum significado ao princípio kantiano, o sentido que lhe é conferido tem de ser que devemos moldar a nossa conduta por uma regra que todos os seres racionais pudessem adoptar com benefício para o seu interesse colectivo.
Racapitulando: a ideia de justiça supõe duas coisas; uma regra de conduta, e um sentimento que sancione a regra. Devemos supor que a primeira é comum a toda a humanidade, e destinada ao seu bem. A outra (o sentimento) é um desejo de que aqueles que infringem a regra possam ser castigados. Também está incluída, adicionalmente, a concepção de uma pessoa concreta que sofre em consequência da infracção; cujos direitos (para usar a expressão adequada ao caso) são violadas por essa infracção. E parece-me que o sentimento de justiça é o desejo animal de repelir ou retaliar um mal ou dano que nos é feito, ou é feito a alguém por quem sentimos empatia, alargado de maneira a incluir todas as pessoas, por meio da capacidade humana de empatia alargada, e a concepção humana de interesse próprio inteligente. Destes últimos elementos deriva o sentimento a sua moralidade; dos anteriores, a sua peculiar força, e energia de auto-afirmação.»
O sentimento de justiça, naquele dos seus elementos que consiste no desejo de punir, é, portanto, suponho, o sentimento natural de retaliação ou vingança, tornado pela inteligência e empatia aplicável àquelas ofensas, isto é, àquelas mágoas, que nos ferem por meio da sociedade no seu todo, ou em comum com ela. Este sentimento, em si, nada tem de moral; o que é moral é a sua subordinação exclusiva às empatias sociais, de tal forma que espera e obedece ao seu chamamento. Pois o sentimento natural tende a fazer-nos ressentir indiscriminadamente o que qualquer pessoa faça de desagradável para nós; mas, quando moralizado pelo sentimento social, apenas actua nas direcções conformes ao bem geral: as pessoas justas ficam ofendidas com um mal para a sociedade, embora não seja um mal para si mesmas, e não ficam ofendidas com um mal para si mesmas, por mais doloroso, a menos que seja do tipo que a sociedade tem um interesse com elas em reprimir.
Não é uma objecção a esta doutrina afirmar que, quando sentimos o nosso sentimento de justiça ultrajado, não estamos a pensar na sociedade no seu todo, ou em qualquer interesse colectivo, mas apenas no caso particular. É certamente algo muito comum, embora seja o contrário do recomendável, sentir ressentimento apenas por sofrer uma dor; mas uma pessoa cujo ressentimento é realmente um sentimento moral, isto é, uma pessoa que avalia se um acto é censurável antes de se permitir ter ressentimento - tal pessoa, embora possa não dizer expressamente a si mesma que defende o interesse da sociedade, sente por certo que está a defender uma regra que existe para o benefício dos outros, mas também de si próprio. Se não sente isto - se encara o acto apenas na medida em que a afecta pessoalmente - não é conscienciosamente justa; não está a preocupar-se com a justiça das suas acções. Isto é admitido até mesmo por pensadores morais anti-utilitaristas. Quando Kant (como antes assinalámos) propõe como princípio fundamental da moral «Age de tal forma que a regra da tua acção possa ser adoptada como lei por todos os seres racionais», reconhece virtualmente que o interesse da humanidade, no seu conjunto, ou pelo menos da humanidade considerada indescriminadamente, deve estar na mente do agente quando decide conscienciosamente sobre a moralidade do acto. De outra forma está a usar palavras sem sentido: pois não pode defender-se com plausibilidade que mesmo uma regra de total egoísmo não tenha a possibilidade de ser adoptada por todos os seres racionais - que exista na natureza das coisas um qualquer obstáculo insuperável à sua adopção. Para dar algum significado ao princípio kantiano, o sentido que lhe é conferido tem de ser que devemos moldar a nossa conduta por uma regra que todos os seres racionais pudessem adoptar com benefício para o seu interesse colectivo.
Racapitulando: a ideia de justiça supõe duas coisas; uma regra de conduta, e um sentimento que sancione a regra. Devemos supor que a primeira é comum a toda a humanidade, e destinada ao seu bem. A outra (o sentimento) é um desejo de que aqueles que infringem a regra possam ser castigados. Também está incluída, adicionalmente, a concepção de uma pessoa concreta que sofre em consequência da infracção; cujos direitos (para usar a expressão adequada ao caso) são violadas por essa infracção. E parece-me que o sentimento de justiça é o desejo animal de repelir ou retaliar um mal ou dano que nos é feito, ou é feito a alguém por quem sentimos empatia, alargado de maneira a incluir todas as pessoas, por meio da capacidade humana de empatia alargada, e a concepção humana de interesse próprio inteligente. Destes últimos elementos deriva o sentimento a sua moralidade; dos anteriores, a sua peculiar força, e energia de auto-afirmação.»
John Stuart Mill, Utilitarismo
sábado, 29 de outubro de 2011
Amor
«Haverá que amar o género humano na sua totalidade ou é ele um objecto que se deve considerar com / desdém, ao qual sem dúvida (para não se tornar misantropo) se deseja todo o bem, mas nunca contudo se deve esperar nele, por conseguinte, será preciso antes desviar dele os olhos? - A resposta a esta pergunta funda-se na réplica que se der a uma outra: há na natureza humana disposições a partir das quais se pode inferir que a espécie progredirá sempre em direcção ao melhor, e que o mal dos tempos presentes e passados desaparecerá no bem das épocas futuras? Pois, se assim for, podemos amar a espécie, pelo menos na sua constante aproximação do bem; caso contrário, deveríamos votar-lhe o ódio ou o desprezo; em contrapartida, a afectação de um universal amor dos homens (que seria então, quando muito, apenas um amor de benevolência, não de complacência), pode dizer o que quiser. Com efeito, ao que é e permanece mau, sobretudo na violação mútua premeditada dos direitos mais / sagrados do homem, não é possível - mesmo com o maior esforço por em si se obrigar ao amor - evitar o ódio, não justamente para fazer mal aos homens, mas para lidar o menos possível com eles.»
Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos
"Noivado"
«Enquanto durou o "noivado" de Ema com Osório, houve um período que Carlos não achou ser o pior da sua vida. Ele dormia muito, parecia que o sono o protegia duma realidade que podia ser fatal. Deitava-se praticamente vestido, por respeito ao corpo que a repelia ou, o que é pior, o ignorava. Ema desenvolveu um estilo fantástico, que lhe grangeava muitos admiradores; mas logo estancavam, receosos de irem muito além com uma mulher inteligente e cujo desequilíbrio parecia uma forma de má consciência. Não era. Ema via que o marido sofria, preferia que ele a deixasse e levasse com ele as filhas. Mas ele afectava não dar por nada e depositava em Pedro Dossém, como dantes em Pedro Lumiares, uma confiança tão absoluta que roçava pelo ridículo. Dizia que os seus afazeres não lhe permitiam dar a Ema o género de vida turbulenta que ela queria ter; e mostrava-se grato por ela dispor de acompanhantes de boa índole e moral intocável como Pedro Dossém, cuja mulher, uma inglesa desportiva, tomava o amor conjugal como uma partida de ténis, às vezes de pares. De resto, ela era golfista muito reputada.
Num Outono muito chuvoso, Pedro Dossém foi a Vale Abraão convidar Ema para uma caçada onde estariam cabeças coroadas, como ele dizia, de maneira que se prestava à galhofa. Ficou surpreendido com a casa dos Paiva, tão cheia de talha dourada que mais parecia um altar barroco. Ema introduzira o ouro e a seda pérola, quase branca, depois de ver no cinema O Grande Gatsby. Tinha uma sala toda branca que abria sobre um relvado, e pusera lá um baloiço de jardim com riscas cor-de-rosa. Embora Pedro Dossém tivesse bom gosto, tudo o que Ema decidia era para ele uma lei. Achava que ela brilhava num lugar assim e que a forma fica enquanto a matéria se perde. Ema era a forma perfeita num bricabraque de aves de cristal e de cofres orientais. Gastava tanto dinheiro, que Pedro Dossém se interrogou aonde ia Carlos buscar as somas exorbitantes precisas para aquele luxo anárquico. Mas rematava os seus pensamentos com a ideia de que o médico dispunha agora duma clientela rica, que o ocupava indiferenciadamente para redigir as memórias de senhoras pias, ou para controlar negócios. Vivia numa espécie de dependência feudal, dando a essa gente, na maioria arruinada, o sentimento de uma comunhão ainda poderosa que os perigos da revolução tinham feito convergir para a mesma consciência. Consciência de desastre comum e de ambições novas que subiam dos novos estamentos sociais, até então ignorados do jogo do poder.»
Num Outono muito chuvoso, Pedro Dossém foi a Vale Abraão convidar Ema para uma caçada onde estariam cabeças coroadas, como ele dizia, de maneira que se prestava à galhofa. Ficou surpreendido com a casa dos Paiva, tão cheia de talha dourada que mais parecia um altar barroco. Ema introduzira o ouro e a seda pérola, quase branca, depois de ver no cinema O Grande Gatsby. Tinha uma sala toda branca que abria sobre um relvado, e pusera lá um baloiço de jardim com riscas cor-de-rosa. Embora Pedro Dossém tivesse bom gosto, tudo o que Ema decidia era para ele uma lei. Achava que ela brilhava num lugar assim e que a forma fica enquanto a matéria se perde. Ema era a forma perfeita num bricabraque de aves de cristal e de cofres orientais. Gastava tanto dinheiro, que Pedro Dossém se interrogou aonde ia Carlos buscar as somas exorbitantes precisas para aquele luxo anárquico. Mas rematava os seus pensamentos com a ideia de que o médico dispunha agora duma clientela rica, que o ocupava indiferenciadamente para redigir as memórias de senhoras pias, ou para controlar negócios. Vivia numa espécie de dependência feudal, dando a essa gente, na maioria arruinada, o sentimento de uma comunhão ainda poderosa que os perigos da revolução tinham feito convergir para a mesma consciência. Consciência de desastre comum e de ambições novas que subiam dos novos estamentos sociais, até então ignorados do jogo do poder.»
Agustina Bessa-Luís, Vale Abraão
quinta-feira, 27 de outubro de 2011
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
Será a esperança possível?
E contudo, uma montanha que cai some-se
E a rocha se desloca do seu lugar;
As pedras, as águas as empurram,
E o seu fluxo inunda o pó da terra;
Assim, a esperança do humano, tu a fazes perecer.
Tu o arrasas para sempre, e ele desaparece,
Tu mudas a sua face e tu o [re]envias.
Eles são glorificados, os seus filhos?, e ele não o sabe;
E eles são afligidos?, e ele não discerne.
Mas a sua carne está dolorida sobre ele,
E a sua alma sobre ele lamenta enlutada.
E a rocha se desloca do seu lugar;
As pedras, as águas as empurram,
E o seu fluxo inunda o pó da terra;
Assim, a esperança do humano, tu a fazes perecer.
Tu o arrasas para sempre, e ele desaparece,
Tu mudas a sua face e tu o [re]envias.
Eles são glorificados, os seus filhos?, e ele não o sabe;
E eles são afligidos?, e ele não discerne.
Mas a sua carne está dolorida sobre ele,
E a sua alma sobre ele lamenta enlutada.
Job, 14, 18-22
Esta última estrofe do discurso de Job retoma o tema do vv. 7-12: a descrição da caducidade do homem. O sonho que ele acaba de ter imaginando a possibilidade de uma esperança vem embater contra a dura realidade: todas as criaturas são frágeis, mesmo as mais resistentes. Quatro comparações sublinham esta fraqueza: a rocha que se esboroa, a pedra gasta pela água, o rochedo que se desloca, as terras que desabam com uma chuvada. Alguns exegetas pensam que estas imagens ilustram antes que a ideia de Deus procura aniquilar a esperança da sua criatura como as intempéries deslocam os terrenos e os rochedos. Seja como for, todas as aspirações humanas se detêm, ao fim de contas, na parede irrevogável da morte (cf. Ecl 9, 5-6).
Job esforça~se em vão por fazer uma representação da existência dos mortos. Ele percebe bem que a morte não significa um regresso ao nada, mas ela parece abolir as relações interpessoais. É interessante em todo o caso esta lembrança de que o defunto gostaria de saber dos outros, e especialmente dos seus filhos, mas que ele julga recusado àquele que morre; só lhe resta o sentimento do seu próprio sofrimento.»
Jean Radermakers, Deus, Job e a Sabedoria
Influência
«Tem de se carregar o fardo da influência se se quiser alcançar uma originalidade digna de nota, e fazê-la surgir dentro da riqueza da tradição literária ocidental. A tradição não é só uma passagem de testemunho ou um amistoso processo de transmissão. Ela é também uma disputa entre o génio passado e a aspiração presente, em que o prémio é a sobrevivência literária ou a inclusão canónica. Essa disputa não pode ser resolvida através de preocupações sociais, ou pelo juízo crítico de qualquer geração de idealistas impacientes, ou por marxistas proclamando «Deixem os mortos enterrar os mortos», ou por sofistas que procuram substituir o Cânone pela biblioteca e o espírito de discernimento pelo arquivo. Poemas, histórias, romances e peças, todos surgem como resposta a poemas, histórias, romances e peças anteriores, e essa resposta está dependente de actos de leitura e de interpretação levados a cabo pelos escritores posteriores, actos esses que são idênticos às novas obras.
Harold Bloom, O Cânone Ocidental
Anexo
«Fosse Portugal uma Grécia, que Oliveira Martins seria um Tucídides e Fernão Lopes um Heródoto. E porque não há-de ser Portugal uma Grécia, embora bastante arcaica, ou a da caverna dos leões... desses leões que descobriram e conquistaram as terras desconhecidas? Se a Grécia foi uma espécie de sublime cristalização balcânica, um ponto luminoso numa confusão de povos que se perdem, para as bandas do Norte, em geladas estepes infinitas, também Portugal foi uma definição ocidental e da confusa Ibéria ou Balcãs do Ocidente, não espraiada ou ilimitada, mas definida como um bloco a sair do mar, apenas ligado à terra firma por um processo isolador ou montanhoso: a maior confusão étnica dentro da mais nítida definição geográfica.
Os Gregos, como o Lusíadas, foram navegadores e colonizadores. Ainda existe uma nova Tróia, em frente de Setúbal, numa paisagem que lembra a Helénia. E ainda possuímos belas estátuas actuais de carne e osso de antigas mulheres gregas em algumas praias. Temos um Partenão nos Jerónimos, uma deusa Minerva em Coimbra, que ostenta o título de Lusa Atenas, com tão alta prosápia como a torre da Universidade, onde floresce a filosofia medieva, vulgo Teologia. A deusa da Ciência está sobre a cátedra de um lente ou de uma veneranda cabeça catedrática e segura uma esfera de mármore nas mãos, o que inspirou a seguinte quadra ao nosso Afonso Vieira:
Os Gregos, como o Lusíadas, foram navegadores e colonizadores. Ainda existe uma nova Tróia, em frente de Setúbal, numa paisagem que lembra a Helénia. E ainda possuímos belas estátuas actuais de carne e osso de antigas mulheres gregas em algumas praias. Temos um Partenão nos Jerónimos, uma deusa Minerva em Coimbra, que ostenta o título de Lusa Atenas, com tão alta prosápia como a torre da Universidade, onde floresce a filosofia medieva, vulgo Teologia. A deusa da Ciência está sobre a cátedra de um lente ou de uma veneranda cabeça catedrática e segura uma esfera de mármore nas mãos, o que inspirou a seguinte quadra ao nosso Afonso Vieira:
Se o pai dos deuses consente,
Deixa cair essa bola
Sobre a cabeça do lente.
Teixeira de Pascoaes, Ensaios de Exegese Literária e Vária Escrita
sábado, 22 de outubro de 2011
A gracious spirit
«A gracious spirit o'er this earth presides,
And o'er the heart of man; invisibly
It comes, to works of unreproved delight,
And tendency benign, directing those
Who care not, know not, think not, what they do.
Tha tales that charm away the wakeful night
In Araby, romances; legends penned
For solace by dim light of monkish lamps;
Fictions, for ladies of their love, devised
By youthful squires; adventures endless, spun
By the dismantled warrior in old age,
Out of the bowels of those very schemes
In which his youth did first extravagate;
These spread like day, and something in the shape
Of these will live till man shall be no more.
Dumb yearnings, hidden appetites, are ours,
And "they must" have their food. Our childhood sits,
Our simple childhood, sits upon a throne
That hath more power than all the elements.
I guess not what this tells of Being past,
Nor what it augurs of the life to come;
But so it is; and, in that dubious hour -
That twilight - when we first begin to see
This dawning earth, to recognise, expect,
And, in the long probation that ensues,
The time of trial, ere we learn to live
In reconcilement with our stinted powers;
To endure this state of meagre vassalage,
Unwilling to forego, confess, submit,
Uneasy and unsettled, yoke-fellows
To custom, mettlesome, and not yet tamed
And humbled down - oh! then we feel, we feel,
We know where we have friends. Ye dreamers, then,
Forgers of daring tales! we bless you then,
Impostors, drivellers, dotards, as the ape
Philosophy will call you: "tehn" we feel
With what, and how great might ye are in league,
Who make our wish, our power, our thought a deed,
An empire, a possession, - ye whom time
And seasons serve; all Faculties to whom
Earth crouches, the elements are potter's clay,
Space like a heaven filled up with northern lights,
Here, nowhere, there, and everywhere at once.»
And o'er the heart of man; invisibly
It comes, to works of unreproved delight,
And tendency benign, directing those
Who care not, know not, think not, what they do.
Tha tales that charm away the wakeful night
In Araby, romances; legends penned
For solace by dim light of monkish lamps;
Fictions, for ladies of their love, devised
By youthful squires; adventures endless, spun
By the dismantled warrior in old age,
Out of the bowels of those very schemes
In which his youth did first extravagate;
These spread like day, and something in the shape
Of these will live till man shall be no more.
Dumb yearnings, hidden appetites, are ours,
And "they must" have their food. Our childhood sits,
Our simple childhood, sits upon a throne
That hath more power than all the elements.
I guess not what this tells of Being past,
Nor what it augurs of the life to come;
But so it is; and, in that dubious hour -
That twilight - when we first begin to see
This dawning earth, to recognise, expect,
And, in the long probation that ensues,
The time of trial, ere we learn to live
In reconcilement with our stinted powers;
To endure this state of meagre vassalage,
Unwilling to forego, confess, submit,
Uneasy and unsettled, yoke-fellows
To custom, mettlesome, and not yet tamed
And humbled down - oh! then we feel, we feel,
We know where we have friends. Ye dreamers, then,
Forgers of daring tales! we bless you then,
Impostors, drivellers, dotards, as the ape
Philosophy will call you: "tehn" we feel
With what, and how great might ye are in league,
Who make our wish, our power, our thought a deed,
An empire, a possession, - ye whom time
And seasons serve; all Faculties to whom
Earth crouches, the elements are potter's clay,
Space like a heaven filled up with northern lights,
Here, nowhere, there, and everywhere at once.»
William Wordsworth, The Prelude or, Growth of a Poet's Mind. An Autobiographical Poem
Brise Marine
La chair est triste, hélas! et j'ai lu tous les livres.
Fuir! là-bas fuir! Je sens que des oiseaux sont ivres
D'être parmi l'écume inconnue et les cieux!
Rien, ni lex vieux jardins reflétés par les yeux!
Ne retiendra ce coeur qui dans la mer se trempe
Ô nuits! ni la clarté déserte de ma lampe
Sur le vide papier que la blancheur défend
Et ni la jeune femme allaitant son enfant.
Je partirai! Steamer balançant ta mâture,
Lève l'ancre pour une exotique nature!
Un Ennui désolé par les cruels espoirs,
Croit encore à l'adieu suprême des mouchoirs!
Et, peut-être, les mâts, invitant les orages
Sont-ils ceux que le vent penche sur les naufrages
Perdus, sans mâts, sans mâts ni fertiles ilots...
Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots!
Fuir! là-bas fuir! Je sens que des oiseaux sont ivres
D'être parmi l'écume inconnue et les cieux!
Rien, ni lex vieux jardins reflétés par les yeux!
Ne retiendra ce coeur qui dans la mer se trempe
Ô nuits! ni la clarté déserte de ma lampe
Sur le vide papier que la blancheur défend
Et ni la jeune femme allaitant son enfant.
Je partirai! Steamer balançant ta mâture,
Lève l'ancre pour une exotique nature!
Un Ennui désolé par les cruels espoirs,
Croit encore à l'adieu suprême des mouchoirs!
Et, peut-être, les mâts, invitant les orages
Sont-ils ceux que le vent penche sur les naufrages
Perdus, sans mâts, sans mâts ni fertiles ilots...
Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots!
Stéphane Mallarmé
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
Mundo
«O mundo desconhecido poderá estar feito de modo a dar-nos o gosto do mundo daqui, a não ser mais do que uma forma inferior e talvez estúpida de existência;
O outro mundo, indiferente aos nossos desejos - que nele nunca encontrariam qualquer satisfação - poderá fazer parte da massa de coisas que nos tornam possível o mundo daqui, o qual, por ser conhecido, seria um meio de tornar-nos felizes;
O mundo verdadeiro - e quem nos diz que o mundo aparente há-de ter menos valor do que o mundo verdadeiro! Será que o nosso instinto não contradiz um tal juízo? Não constrói o homem, incessantemente, um mundo imaginário por que quer ter um mundo melhor do que a realidade? Tanto mais que nada nos leva a pensar que o nosso mundo não é o mundo verdadeiro... À primeira vista, o outro mundo é que será aparente (de facto, os gregos imaginaram um reino das sombras, uma existência aparente ao lado duma existência verdadeira).
Enfim: o que é que nos dará o direito de estabelecer graus de realidade? É que não se trata da existência dum mundo desconhecido, mas da nossa necessidade de saber alguma coisa dum mundo desconhecido.
O outro mundo... o mundo desconhecido... Pois seja: mas, dizer o mundo verdadeiro, é dizer que sabemos alguma coisa dele: o contrário da hipótese dum mundo x.
Em suma: o mundo x poderá ser, em todos os sentido, x mais aborrecido, mais desumano e mais indigno do que o mundo daqui. Diferentemente seria se afirmássemos que há o número x de mundos; ou seja, que há todos os mundos possíveis em nosso redor. O que jamais foi afirmado.
Problema: por que é que a representação de outro mundo conclui sempre pela desvantagem, ou pelo menos pela crítica, do mundo daqui? O que indicará isso?
Assim, um povo ufano, de vida ascendente, pensa que qualquer outra maneira de ser será inferior, de menor valia; o mundo estranho, desconhecido, é considerado como inimigo e oponente; não há, para com o estrangeiro, nem curiosidade nem aversão. Um qualquer povo nunca nunca admitiria que um outro povo fosse o povo verdadeiro. Para que uma tal distinção fosse possível, seria porém necessário tomar o mundo daqui por aparente e o outro por verdadeiro - o que é sintomático.
Focos que originaram a ideia de outro mundo:
Os filósofos, ao inventarem um mundo de razão, onde a razão e as funções lógicas estão adequadas ao mundo verdadeiro;
Os homens religiosos, que inventaram um mundo divino, donde deriva um mundo desvirtuado, contranatura;
Os homens morais, que imaginam um mundo livre, donde deriva o mundo bom, perfeito, justo, santo.
Ponto comum destes três focos: erro psicológico, confusões fisiológicas.
O outro mundo, tal como efectivamente aparece na história, é caracterizado por quais atributos? Pelos estigmas de pré-juízos filosóficos, religiosos e morais. O outro modo, que resulta desses factos, é sinónimo do não-viver, da vontade de não viver. Verdadeiramente, foi a fraqueza de viver e não o instinto vital que criou o outro mundo.
Em consequência: a filosofia, a religião, a moral são sintomas de decadência.»
O outro mundo, indiferente aos nossos desejos - que nele nunca encontrariam qualquer satisfação - poderá fazer parte da massa de coisas que nos tornam possível o mundo daqui, o qual, por ser conhecido, seria um meio de tornar-nos felizes;
O mundo verdadeiro - e quem nos diz que o mundo aparente há-de ter menos valor do que o mundo verdadeiro! Será que o nosso instinto não contradiz um tal juízo? Não constrói o homem, incessantemente, um mundo imaginário por que quer ter um mundo melhor do que a realidade? Tanto mais que nada nos leva a pensar que o nosso mundo não é o mundo verdadeiro... À primeira vista, o outro mundo é que será aparente (de facto, os gregos imaginaram um reino das sombras, uma existência aparente ao lado duma existência verdadeira).
Enfim: o que é que nos dará o direito de estabelecer graus de realidade? É que não se trata da existência dum mundo desconhecido, mas da nossa necessidade de saber alguma coisa dum mundo desconhecido.
O outro mundo... o mundo desconhecido... Pois seja: mas, dizer o mundo verdadeiro, é dizer que sabemos alguma coisa dele: o contrário da hipótese dum mundo x.
Em suma: o mundo x poderá ser, em todos os sentido, x mais aborrecido, mais desumano e mais indigno do que o mundo daqui. Diferentemente seria se afirmássemos que há o número x de mundos; ou seja, que há todos os mundos possíveis em nosso redor. O que jamais foi afirmado.
Problema: por que é que a representação de outro mundo conclui sempre pela desvantagem, ou pelo menos pela crítica, do mundo daqui? O que indicará isso?
Assim, um povo ufano, de vida ascendente, pensa que qualquer outra maneira de ser será inferior, de menor valia; o mundo estranho, desconhecido, é considerado como inimigo e oponente; não há, para com o estrangeiro, nem curiosidade nem aversão. Um qualquer povo nunca nunca admitiria que um outro povo fosse o povo verdadeiro. Para que uma tal distinção fosse possível, seria porém necessário tomar o mundo daqui por aparente e o outro por verdadeiro - o que é sintomático.
Focos que originaram a ideia de outro mundo:
Os filósofos, ao inventarem um mundo de razão, onde a razão e as funções lógicas estão adequadas ao mundo verdadeiro;
Os homens religiosos, que inventaram um mundo divino, donde deriva um mundo desvirtuado, contranatura;
Os homens morais, que imaginam um mundo livre, donde deriva o mundo bom, perfeito, justo, santo.
Ponto comum destes três focos: erro psicológico, confusões fisiológicas.
O outro mundo, tal como efectivamente aparece na história, é caracterizado por quais atributos? Pelos estigmas de pré-juízos filosóficos, religiosos e morais. O outro modo, que resulta desses factos, é sinónimo do não-viver, da vontade de não viver. Verdadeiramente, foi a fraqueza de viver e não o instinto vital que criou o outro mundo.
Em consequência: a filosofia, a religião, a moral são sintomas de decadência.»
Friedrich Nietzsche, A Vontade de Poder, o Niilismo europeu
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