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Oeiras, Portugal
Aluno e Professor. Sempre aluno.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Aos 44 anos constato que a minha cabeça não acompanha o meu corpo e que o meu bilhete de identidade está marado. Ao ouvir certas músicas, percebo melhor como o envelhecimento é a palavra de que dispomos para dizer que estamos em permanente upgrade...

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Oceano Mare




Às vezes tentamos ser certinhos. Ao fim de algum tempo, percebemos que o sangue sofreu uma diminuição do seu fluxo. Ser certinho é simpático, mas não chega. É preciso correr sobre os limites, seguir os desejos e deixar correr. Mesmo que nos faça mal. Apenas correr...

Ravel - Le Tombeau de Couperin (I)

Viver é ser outro[1]


A única atitude digna de um homem superior é o persistir tenaz de uma actividade que se reconhece inútil, o hábito de uma disciplina que se sabe estéril, e o uso fixo de normas de pensamento filosófico e metafísico cuja importância se sente ser nula.[2]

O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, apresenta-se como um livro acerca de aborrecimentos[3]. À partida, quando alguém afirma que o seu lugar é onde a imaginação pode permitir uma existência concreta, onde o significado de “agir” se apresenta do avesso, aquilo que pode ser expectável será muito mais uma espécie de não existência em que a acção não tem lugar. Contudo, o problema que a este respeito o autor nos coloca situa-se ao nível do desfiar de um novelo, só que em vez de o fazermos de fora para dentro, necessitamos de descobrir, a partir do seu interior, a ponta que nos possa ajudar a chegar à superfície. Uma superfície que, tal como um novelo, se vai desfiando, até se revelar em contornos pouco definidos.
Ao ler o Livro do Desassossego, vem-me à lembrança uma passagem de um texto de Otto Fenichel[4] em que o autor afirma que “boredom […] is not just a lack of impulse, but also a ‘need for intense mental activity”. Com efeito, o texto de Bernardo Soares parece ser uma maneira de o autor combater o seu estado de “aborrecimento”. Ou será melhor dizer uma maneira de o autor assumir o seu estado de “aborrecimento”, como coisa boa em sim mesma? Confesso que me parece muito mais atraente esta segunda possibilidade, não apenas porque considero realmente que um estado de “aborrecimento” não tem que ser necessariamente uma coisa desagradável, mas também porque o desfiar do novelo, para além de ser um trabalho de paciência, pode ser feito apenas para ocupar o tempo. Apesar de preferir a segunda sugestão que apresento, não creio que ela possa ser tida em consideração independentemente da primeira, antes colaborando com ela, na medida em que o exercício de escrever ocupará o lugar onde o vazio (seja ele o que for) vai sendo ocupado. Nem que seja com matizes diferenciados.

“Agir” é, em Bernardo Soares, o resultado de uma vontade, uma determinação em perseguir uma ideia, e exerce-se por via de uma particular forma de entender a noção de desejo, de gerar uma vitalidade que parece estar em falta. Ora, esta necessidade vital de preencher um tempo corrosivo no seu fluir, acaba por se cumprir através da escrita, de um modo que pode encontrar algum eco nas palavras de Patricia Meyer Spacks, quando afirma que “the act of writing both draws on and generates vitality”[5].
A ideia de vitalidade pode resultar, então, como modalidade susceptível de permitir o encontro com a noção de fuga. A fuga, tal como aqui me pretendo referir, indicia um caminho em direcção ao conceito de desobediência, na medida em que, ao falarmos de fuga, parece existir muitas vezes, em associação, uma maneira particular de assumir uma necessidade de sair de si, bem como uma vontade de libertação, espiritual ou não. Contudo, fugir é muitas vezes um acto condenado ao fracasso, visto que, só na aparência, ele pode ser consequente. Um caso paradigmático desta ideia pode ser tomado a partir do exemplo de Jonas. Com efeito, no «Livro de Jonas», esta personagem bíblica, através da sua desobediência a Deus, pode ser tomada como exemplo do modo como, sendo próprio dos homens a sua incapacidade para fugirem em absoluto de si próprios, mesmo sabendo intimamente que esta é uma característica da sua condição, se manifesta constantemente essa ilusão de que é possível partir em direcção a um lugar diferente. Se na maioria dos casos esta situação se revela em relação a aspectos exteriores, o facto é que o caso de Bernardo Soares adquire, nestas circunstâncias aspectos específicos, na medida em que se dirige para o interior do sujeito. É nesta característica particular do seu texto que reside o nó central do seu percurso. Com efeito, Bernardo Soares “foge”, mas para dentro de si, de forma a explorar uma interioridade que é a sua.
É este movimento particular do espírito que é visível no Livro do Desassossego, no seu conjunto, mas que se manifesta, por exemplo, na secção 268. Atentemos na seguinte passagem:

O olfacto é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes. Passo numa rua. Não vejo nada, ou antes, olhando tudo, vejo como toda a gente vê. Sei que vou por uma rua e não sei que ela existe com lados feitos de casas diferentes e construídas por gente humana. Passo numa rua. De uma padaria sai um cheiro a pão que nauseia por doce no cheiro dele: e a minha infância ergue-se de determinado bairro distante, e outra padaria me surge daquele reino das fadas que é tudo que se nos morreu. Passo numa rua. Cheira de repente às frutas do tabuleiro inclinado da loja estreita; e a minha breve vida de campo, não sei já quando nem onde, tem árvores ao fim e sossego no meu coração, indiscutivelmente menino. Passo numa rua. Transtorna-me, sem que eu espere, um cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó meu Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei, pela recordação, à única verdade, que é a literatura.[6]

O exercício de Bernardo Soares consiste sistematicamente em lançar um tópico, sugerir um percurso de leitura, de forma a, mais adiante, inverter o seu sentido. É nesta inversão de sentido, que se processa regularmente ao longo do texto, que se manifesta a noção de fuga a que me refiro. Com efeito, o início do texto parece remeter para uma memória de factos concretos, associados ao olfacto ou à visão, por exemplo. Contudo, o movimento descritivo que se realiza de seguida não tem como elemento central a paisagem observada, mas sim a paisagem para onde se escapa a imaginação do autor. Por esse motivo as “frutas de tabuleiro” não evocam as “frutas de tabuleiro”, mas o “menino”, ou a figura do autor numa espécie de momento inaugural do cheiro das “frutas de tabuleiro”, ou, através da sensação daquele cheiro, a infância e a figura que agora o autor constrói de si próprio no tempo em que, enquanto menino, experimentava aquele cheiro. Num certo sentido, este movimento mental remeterá para uma ideia de desobediência, ou de não aceitação daquilo que é visível em si mesmo, do concreto. É deste modo que poderemos compreender o sentido do final da passagem, quando se afirma que “a única verdade é a literatura”. O texto coloca ao mesmo nível as recordações que resultam de sensações do autor ao passar numa rua e recordações de leituras de Cesário Verde, assumindo, assim, que tudo pode ser considerado como elemento central da cogitação e, por esse motivo, são tão importantes na vida as recordações de momentos concretos como as recordações de leituras e que a literatura assume, então, um lugar ainda mais central do que a vida, porque mais verdadeiro.
A desobediência a que me refiro resulta de uma construção particular que impõe uma recusa de aceitação do concreto como elemento decisivo e primordial da reflexão[7]. A esta ideia de desobediência associa-se um tom subversivo provocado pelo modo como, em outros momentos da obra, é feita, por exemplo, a caracterização da mentira.

A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos das palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer.[8]

A mentira, tal como é referida nesta passagem, ocupa o lugar daquilo que não é visto, aproximando-se, então, da cegueira a que o autor alude ao mesmo tempo que afirma que olha tudo[9]. Isto é, quando afirma a sua cegueira, o autor enuncia o princípio que o distancia de toda a gente, sendo que o nada que ele afirma não ver, acaba por consubstanciar uma ideia segundo a qual a única verdade reside naquilo que não se vê e que, por esse motivo, e na perspectiva de que é esse espaço nebuloso que o ocupa prioritariamente, é aí que ele “vive” e encontra a explicação para a mentira e para a felicidade de encontrar “a única verdade, que é a literatura”.
Apesar de todo este procedimento mental, que, em si mesmo se assume como uma forma de acção em Bernardo Soares, o facto é que encontramos frequentemente ao longo da obra uma assumpção por parte do autor de uma incapacidade em compreender os mecanismos mais íntimos que precedem as deambulações do seu espírito, nomeadamente em passagens em que descreve acontecimentos, sem que, contudo, seja capaz de identificar os impulsos imediatos que os originam. Num certo sentido, porque somos imperfeitos por passarmos pelas coisas sem nos fixarmos nelas[10].

E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei.[11]

Numa outra passagem, o autor afirma que “O poder de criar precisa de um ponto de apoio, da muleta da realidade”[12]. Se atendermos ao modo como se vão sucedendo, em cadência, os desenvolvimentos do processo mental do autor, poderemos dizer que, não apenas perante uma conversa ocasional, mas também num passeio a pé pelas ruas, ou noutra situação qualquer, tudo pode ser absorvido por ele, toda a realidade pode ser encontrada, assimilada, digerida, mas sempre em função de outra coisa, de algo que pode ser encontrado na referência à literatura, à mentira, lugares onde a vida se manifesta na sua mais vincada exuberância. E onde o patrão Vasques não entra.
Aliás, a explicação para este facto parece estar próxima da relação que se pode estabelecer entre duas palavras utilizadas pelo autor em momentos particulares da obra: as palavras “nada” e “tudo”. A propósito de uma passagem em que nos fala do patrão Vasques, o autor afirma que “ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora”[13]. A Vida que o patrão Vasques representa é o lado concreto da existência, das coisas comezinhas, daquilo que aproxima o autor dos outros, o espaço onde, apesar de tudo, existe a possibilidade de uma comunhão. Só que, em Bernardo Soares, esse é o lugar que contrasta com a profundidade para que o nada remete, na medida em que ao nada se associa constantemente a imagem de essencialidade. Deste modo, quando afirma “Tudo me interessa e nada me prende”, o autor apenas materializa, embora de uma forma paradoxal, o lugar invisível onde os grandes acontecimentos se verificam e quando a certa altura considera que “não sei nada”, ele realmente constata que o universo de referências prioritário que é o seu, só se manifesta e encontra no lugar da literatura e da mentira, nos termos enunciados anteriormente.
Ao afirmar que “A única arte verdadeira é a da construção”, o autor assume, então, que o único lugar onde verdadeiramente existe e onde poderá aspirar a uma possível consolação é o da literatura e da obra assim entendida emergirá um caminho para uma leitura do seu subtítulo, bem como das implicações que encerra. A Autobiografia sem factos assumirá por isso a forma como o autor se descreve por dentro e assume uma busca: a do conhecimento de si próprio. Mesmo sabendo tratar-se de uma tarefa cujos resultados nunca serão definitivos, ele põe-se a caminho e foge. Na desobediência que então parece manifestar perante esse fracasso ele encontra no seu espaço interior o ambiente propício para uma contenção dos eventuais danos.

Se alguma coisa há que esta vida tem para nós, e, salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses, é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros[14].


[1] SOARES, Bernardo, Livro do desassossego, Assírio & Alvim, Col.«Obras de Fernando Pessoa», nº4, 7ª edição, Lisboa, 2007. Secção 94, pág.121.
[2] ob. cit., Secção 89, pág.116.
[3] Cf. SPACKS, Patricia Meyer, Boredom, The University of Chicago Press, Chicago, 1995.
[4] FENICHEL, Otto, «On The Psychology of Boredom», in The Collected papers of Otto Finichel, First Series, W.W. Norton & Company, New York, 1953, pp.292-302.
[5] SPACKS, Patricia Meyer, «Reading, Writing, and Boredom», in Boredom, The University of Chicago Press, Chicago, 1995, pág.1.
[6] SOARES, Bernardo, Livro do desassossego, Assírio & Alvim, Col. «Obras de Fernando Pessoa», nº4, 7ª edição, Lisboa, 2007. Secção 268, pág.255.
[7] ob. cit., Secção 138, p.151: “A erudição da sensibilidade nada tem a ver com a experiência da vida. A experiência da vida nada ensina, como a história nada informa. A verdadeira experiência consiste em restringir o contacto com a realidade e aumentar a análise desse contacto.”
[8] idem, secção 268, pág.255.
[9] idem.
[10] idem,secção 94, pág.122: “(…) Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção – isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.”
[11] idem, secção 10, pág.53.
[12] idem, secção 250, pág.237.
[13] idem, secção 9, pág.53.
[14] idem, secção 255, p.243.
Um Camões


“… la fortuna, come sempre fu, cosi è ancor oggidì contraria alla virtù”[1]

O verso de abertura de Os Lusíadas parece anunciar uma história de vitórias incomparáveis e únicas. Com efeito, o anúncio de uma epopeia protagonizada por “barões assinalados”, capazes de cometerem façanhas únicas que, inclusivamente, encontram raízes na sua própria história colectiva e irão rivalizar com os feitos praticados por heróis da Antiguidade, sugere que é realmente de sucessos que se trata quando lemos a obra. Contudo, mais do que outra coisa, aquilo que Camões indicia no início da sua obra faz parte de uma estratégia que ele próprio vai desenvolver e aperfeiçoar ao longo dos dez Cantos que a constituem. Com efeito, contrariamente àquilo que seria de supor, Os Lusíadas constituem um exemplo de como, sob o efeito de uma pretensa sucessão de êxitos, se expõem, muito mais, uma sucessão de desgraças, nomeadamente pessoais.
Desde muito novo, habituei-me a pensar por que motivo, apesar de me terem apresentado sempre Os Lusíadas como uma obra patriótica, em que os grandes acontecimentos dos portugueses se encontravam espelhados, contém tantas estrofes em que o Poeta faz um contraponto a esses feitos, apresentando reflexões pessoais acerca da vida e da condição humana. É verdade que essas considerações são incorporadas na obra e apresentadas no enquadramento das acções. Ainda assim, o seu âmbito geral ultrapassa a simples condição nacional e projecta a obra numa dimensão mais ampla. Deste modo, quando leio Os Lusíadas, embora, à partida, seja Portugal e os portugueses o centro literal das acções, aquilo que me tem sido dado a observar, muito mais do que um cantinho de gente, é toda a humanidade no seu conjunto.
Na prossecução deste fim encontra-se, por exemplo, o facto de, ao longo da obra, os episódios se sucederem como um conjunto de alusões a circunstâncias que, pelo menos em parte, são ilustrativas. A regra parece, então, consistir no facto de o Poeta propor ilustrações que, de seguida, são explicadas, não necessariamente em termos de nacionalidade, mas principalmente naquilo que dessas ilustrações resulta enquanto análise do comportamento dos homens perante as situações que a vida lhes pode oferecer. Daqui resulta que parece existir em Camões uma descrença no mundo, tal como ele no-lo descreve.
Com efeito, se ao longo da obra o Poeta ainda resiste de algum modo, e apesar de tudo, a mostrar esse mundo em que descrê, a circunstância de a obra não terminar em apoteose, no Canto IX, mas em “tristeza”, no Canto X, é, em si mesma, facto a ter em consideração. Nomeadamente porque o tom “alto e sublimado” que Camões pede às ninfas do Tejo no Canto I, resulta contrariado no final da obra (porque a obra termina num tom de decepção) e, além disso, parece não se coadunar com o registo que inicialmente o Poeta anuncia no Canto I. De qualquer modo, o Canto IX vai constituir o espaço em que, na obra, o Poeta descobre a única harmonia possível. Partindo das palavras de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, citando Karl Manheim, segundo as quais, num “sentido fraco”, as utopias podem ser caracterizadas como «todas as ideias (e não apenas projecções de desejos) que transcendem uma dada situação e que, de algum modo, têm um efeito transformador em relação à ordem histórico-social existente»[2], o episódio da “Ilha dos Amores” pode constituir esse tópico onde a transformação é susceptível de vir a concretizar-se. Transformação que decorre num lugar em que se desenvolve uma diferente dimensão da viagem e que apenas se torna possível enquanto resultado de uma profanação[3]. Com efeito, ao restituir ao livre uso dos homens algo que apenas aos deuses é concedido, aquilo que Camões faz, independentemente da ideia de prémio que possa estar intuída, é violar uma regra e, simultaneamente, uma condição: a regra da sacralidade e a condição humana. Para mais, sabendo o Poeta que é próprio do homem o exercício do erro, tão significativamente mostrado ao longo do Poema. Talvez seja esta uma das razões pelas quais o Canto X serve de contraponto ao delírio amoroso apresentado na ínsula divina. Com efeito, Camões sabe que a vida e a felicidade têm um preço e que esse preço deve ser pago, nem que seja através de uma espécie de assumpção de uma infracção cometida anteriormente. A este respeito pode ser importante referir aquilo que constituem as referências ao mito de Acteon ao longo da obra e o recurso que a ele é feito por parte de Camões. Acteon aparece em alguns momentos da obra como um exemplo de uma espécie particular de transgressor: o que ultrapassa a sua condição, desrespeitando aquilo que é do domínio do divino. Ao desrespeitar uma ordem celeste, Acteon sofre a pena resultante dos actos que pratica. Ora, mesmo que involuntariamente o faça, Acteon desafia essa ordem no momento em que a transgride. Camões, conhecedor das penas de Acteon, sabe que o desafio e a transgressão que apresenta no Canto IX, terá repercussões e que essas repercussões se tornarão visíveis numa pena a cumprir. A diferença fundamental que parece aqui estar presente consiste, no entanto, no facto de, ao contrário do que acontece com Acteon, em Camões existe um conhecimento anterior em relação aos limites, bem como em relação às penas e, desse modo, o Poeta como que se oferece ao sacrifício que ele a si próprio atribui ao longo do Canto X e que, no fundo, não é mais do que uma concretização de um percurso que se adivinha ao longo da obra.
Em Dos Delitos e das Penas, Cesare Beccaria identifica três “fontes das quais derivam os princípios morais e políticos que regem os homens: a lei revelada, a lei natural, as convenções não naturais da sociedade”, considerando que se assemelham “na medida em que todas […] conduzem à felicidade desta vida mortal”[4]. Não sei se Camões segue o rasto de uma felicidade pressentida, mas, à partida, na medida em que, apesar de tudo, na última estrofe do Poema, ele se propõe a compor uma outra epopeia e a enaltecer a figura de D. Sebastião, aparentemente, aquilo em que parece centrar as suas indagações, passa a ser, mais do que uma qualquer narrativa de feitos eventualmente históricos, o seu percurso pessoal, o que não deixa de constituir uma confirmação daquilo que acontece ao longo do Poema. Sendo assim, Camões assume a sua pena como algo que subjaz a toda a sua obra, apenas interrompida no momento em que desloca a sua narrativa para o domínio da utopia.
No fundo, Camões reconhece a sua incapacidade para superar aquilo lhe é oferecido pelo mundo que o rodeia, para mais quando, nem mesmo do ponto de vista pedagógico a sua obra se consegue cumprir. O regresso a uma idade de ouro, no Canto IX, mesmo que idealizada, não deixa de constituir o cúmulo das suas façanhas pessoais, aquelas que estarão sempre para além dos limites da temporalidade e da circunstância.
Deste modo, os dois Cantos finais de Os Lusíadas, se lidos à luz das afirmações do Velho do Restelo, não deixam de constituir uma espécie de concretização das palavras, diria proféticas, do Velho quando afirma a respeito dos homens a sua “Mísera sorte” ou a sua “estranha condição”. Com efeito, depois de ter aspirado ao Olimpo, aquilo que permanece é um Camões que, embora supere Ícaro ou Dédalo, reconhece a sua impossibilidade em permanecer na idade de ouro mítica que a ilha lhe sugere e que só nela ele pode encontrar.
Habituámo-nos a identificar através do nome (“Ilha dos Amores”) uma condição para a recompensa, um lugar último da investigação, lugar onde se concretizaria a consagração dos heróis. Ao identificar o nome, a procura de soluções para o problema parece ter-se estabilizado. Isto é, ao termos encontrado o modo de nomear uma ideia a priori o problema da constituição de um sentido para o Canto IX, ter-se-ia deixado de colocar e os nossos corações descansariam em paz. Na paz das verdades apenas intuídas, no entanto. Ora aquilo que uma leitura mais atenta nos sugere é que o texto encerra muito mais do que uma interpretação susceptível de ser pacificada através de uma leitura desta natureza.
Em relação ao final do Canto X, e ao facto de, pelo menos aparentemente, o Poeta deixar em aberto um reinício para a sua obra, recordo um texto de Giorgio Agamben[5], no qual o autor estabelece a constituição de um modelo de investigação que propõe um caminho para além da ideia de eterno retorno. Considerando que, uma vez atingido o limite da nomeação, um objecto atinge a experiência da ausência de objecto último, o autor considera que, ao nomearmos, passaremos a substituir o objecto que nomeamos, pela forma através da qual o nomeamos e, assim, resolveríamos o problema da procura do conhecimento último das coisas. Contudo, segundo Giorgio Agamben, ao atingirmos este estádio, estaríamos a ocupar o terreno de uma condenação, que se reflectiria, uma vez atingida “a verdade”, numa espécie de fechamento. A solução apresentada por este autor em relação a este problema, embora possa parecer, à partida contraditória, é, no entanto, uma porta para que possamos escapar sistematicamente a este género de fechamento. Defende Agamben que Nietzsche terá encontrado na ideia do eterno retorno a solução para evitarmos o fechamento provocado pelo alcance de uma ideia de verdade. Ainda assim, Nietzsche terá ficado aquém de uma resolução consensual, na medida em que, nas palavras de Giorgio Agamben, o eterno retorno é uma última coisa, mas ao mesmo tempo também a impossibilidade de uma última coisa, visto que a eterna repetição do fechamento da verdade é, enquanto repetição, também a impossibilidade desse fechamento.
Pretendendo instaurar um recomeço, Camões, nos termos de Agamben, acabará por, de algum modo, estar a incorrer numa impossibilidade.
Embora a descrença esteja presente na obra, nomeadamente no seu final, uma descrença em relação à condição dos homens, Camões, a partir do momento em que reage, em que se propõe retomar a sua narrativa e continuar, no fundo, a escrever, parece ser movido por aquilo que Beccaria identifica como “honra”. A propósito da ideia de honra, este autor considera que “a honra é […] um dos princípios fundamentais daquelas monarquias que são uma forma moderada de despotismo e que são nelas o que são nos estados despóticos as revoluções: um momento de retorno ao estado de natureza e uma lembrança, para o senhor, da antiga igualdade”[6]. Não sei se Beccaria terá lido alguma vez Camões, no entanto, a ideia de revolução aqui referida poderá não estar longe daquilo que acontece no final de Os Lusíadas. Por outras palavras, perante tudo aquilo que o Poeta sente perder-se à sua volta, a proposta final e reactiva contida nos versos finais da obra parecem exemplificar o recurso à única instância nunca perdida: a honra. Num certo sentido, será por via dessa honra, que também em muitas outras partes da obra se manifesta, que a ideia de um possível reinício se verifica, deixando em aberto uma possibilidade de continuação da obra.
De qualquer modo, esta revolução, interior, porque insusceptível de vir a ocorrer de outro modo, parece resultar de uma necessidade de compensação perante um erro. O erro que consistiu no facto de, ao estabelecer o contacto entre homens e ninfas, o Poeta, por aquilo que acontece no Canto X, reconhecer que se terá condenado à infelicidade, na medida em que, citando Giorgio Agamben acerca de “profanações”, a “ única hipótese de felicidade [consiste em] acreditar no divino e não aspirar alcançá-lo”[7]. Por outras palavras, o encontro entre homens e ninfas assumir-se-á como a profanação que humaniza aquilo que pertence a uma outra esfera, a do sagrado. Assim sendo, Camões encontra um caminho para a superação do exílio a que se sente votado, quando manifesta o seu desajustamento em relação aos valores que predominam no mundo que o rodeia. Contudo, na sua vidência, ele é aquele que é capaz de contemplar os erros e de lhes apresentar soluções, ainda que essas soluções só possam ser encontradas e concretizadas no domínio das coisas não visíveis. Por ser conhecedor da incapacidade de reconhecimento efectivo do mérito, a que os homens (e ele próprio) estão votados, o Poeta parece viver uma espécie de agonia, pouco adequada ao género em que se inclui a sua obra. Com efeito, a agonia a que me refiro, está presente em momentos que emergem ao longo da obra como marcas de um desconcerto, de uma inadaptação às coisas da vida, e, no final da obra, parece ser reveladora de uma ideia de culpa “pelo conhecimento de uma fatal inverdade – o que roubou o fogo divino e comeu o fruto da árvore do conhecimento para constatar, ao contrário do herói antigo, que não se aquece nem sacia a fome”[8]. Camões sabe que nunca saciará a sua fome e, no entanto, esboça uma reacção. A sua reacção, contudo, será débil, na medida em que ele sabe que o mundo em que vive não é o seu. Num certo sentido, de nada vale reagir num mundo em que os valores corteses não têm lugar[9] e onde o ruído de fundo não deixa que se ouça a discrição. A reacção que Camões manifesta no final da obra revela-se, então, não exactamente como uma verdadeira vontade de continuar, ou de recomeçar a sua narrativa, mas, muito mais do que isso, um modo de o Poeta exprimir um desejo de fugir, simplesmente para um sítio que tenha como característica fundamental o facto de, simplesmente, não ser o lugar em que ele se encontra e de ser apenas um outro lugar. Mesmo que esse lugar apenas exista na imaginação.

[1] CASTIGLIONE, Baldassare, Il Cortegiano, Mondadori, Col. «Oscar Classici», nº 214, 1991, Milão, p.7.
[2] AGUIAR e SILVA, Vítor Manuel, «Imaginação e Pensamento Utópicos», in Camões: Labirintos e Fascínios, Edições Cotovia, 2ª Edição, Fevereiro de 1999.
[3] AGAMBEN, Giorgio, Profanações, Edições Cotovia, Lisboa, 2006, p. 103: “Sacrílego era qualquer acto que violasse ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (e, então, eram chamadas propriamente [coisas] “sagradas”) ou ínferos (neste caso, diziam-se [coisas] simplesmente “religiosas”). E se consagrar (sacrare) era o termo que designava a retirada das coisas da esfera do direito humano, profanar significava, por oposição, restituí-las ao livre uso dos homens”.
[4] BECCARIA, Cesare, Dos Delitos e das Penas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, p. 58.
[5] AGAMBEN, Giorgio, «Ideia da Verdade», in Ideia da Prosa, Edições Cotovia, Lisboa, 1999, pp. 46-48.
[6] BECCARIA, Cesare, op. cit., p. 81.
[7] AGAMBEN, Giorgio, Profanações, Edições Cotovia, Lisboa, 2006, p.28.
[8] GUERREIRO, Ricardina, De Luto por existir, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 188.
[9] CASTIGLIONE, Baldassare, Il Cortegiano, Mondadori, Col. «Oscar Classici», nº 214, 1991, Milão, p.34: “Ma delle diversità nostre e gradi di altezza e di bassezza credo io che siano molte altre cause, tra le quali estimo la fortuna esser precípua; perchè in tutte le cose mondane la veggiamo dominare e quasi pigliarsi a gioco d’alzar spesso fina l cielo chi par a lei, senza mérito alcuno, e sepellir nell’abisso i più degni d’esser esaltati.”; e p. 47: “Però si po dir quella esser vera arte, che non appare esser arte; né più in altro si há da poner studio che nel nasconderla: perché, se è scoperta, leva in tutto il credito e fa l’omo poço estimato.”
No Porto

Por um barco de Tenos, jovem, há vinte e oito anos nascido,
Émès a este porto sírio foi trazido
com o intuito de aprender a ser de essências vendedor.
Porém adoeceu na viagem de mar. E logo ao pôr
os pés em terra, morreu. O enterro pobre até mais não poder ser
teve lugar aqui. Algo, poucas horas antes de morrer,
«casa», «pais muito velhos», num murmúrio dizia.
Mas quem eram estes ninguém sabia,
nem qual no grande mundo heleno a terra dele terá sido.
Melhor. Pois enquanto assim
jaz neste porto falecido, hão-de esperá-lo vivo seus pais até ao fim.

Konstandinos Kavafis, Os Poemas

A minha atenção dispersa-se nas palavras de um poeta grego. Um poeta. Descreve o poeta pequenas histórias de amores furtivos e como, apesar de furtivos, esses amores permanecem. O poeta mostra-nos ocorrências sem nos sugerir interpretações, senão aquelas que, por nossa conta e por risco das nossas experiências, possamos atribuir às palavras que, secas, cortam a paisagem e lhe conferem contornos imprevisíveis, tal como a vida se vai esboçando nos rascunhos do tempo.
O poeta mostra os espaços de uma memória prospectiva. Um cheiro, uma impressão táctil, uma visão. Eis a actualização da memória tornada presente. O poeta não se lamenta e a sua tristeza reside nas sombras profundas.
O dia trouxe consigo o espaço metonímico da memória que se estende em associações, sucessivas e irrecusáveis. Por muito que possam ser dolorosas, as suas marcas instalam-se em silêncio. Um silêncio duro, cru, que remete para esse espaço onde tudo perdura. O porto é um lugar, por excelência, da memória, um lugar de passagem e de gente que não permanece lá. Nada de facto permanece ou, pelo menos, assim parece ser. Maravilhoso e assustador, o espaço da lembrança supera o tempo, ultrapassa-o e permite a aspiração à imortalidade. Numa espécie de epitáfio, o poeta recorda a figura de alguém a quem a vida foi tirada antes de tempo. Aparentemente, o fascínio daquela figura introduzida no poema resulta do simples facto de se tratar de uma figura anónima, daquelas a quem a vida não dá a notoriedade da fama. O apelo à memória resulta então como uma marca que ultrapassa a condição dos homens e transporta-os para uma dimensão universal.
O vendedor de essências Émès jaz num porto sírio. Aparentemente, nada há a registar senão uma simples certidão de óbito, igual a tantas outras. No entanto, por algum motivo, o poeta regista o óbito de um rapaz comum. O poeta traça o percurso deste rapaz e, nos interstícios das suas palavras, existe uma história. Émès, um jovem de vinte e oito anos, partiu de Tenos com o propósito de aprender a ser vendedor de essências. Chegara moribundo, depois de ter adoecido no mar. Enquanto morria, pronunciava as palavras que trazia consigo: “casa”, “pais muito velhos”. A este rapaz desconhecido foi feito um enterro muito pobre.
Assim apresentada, esta história parece concluída. Contudo, as informações breves e conclusivas tropeçam num tempo verbal que se encontra no verso 11. Na palavra “jaz” reside o nó do poema, o lugar onde tudo aquilo que aparenta simplicidade se expande. O encontro entre o tempo passado em que decorre o poema e este presente, subitamente emerso, estabelece a necessidade de um reenquadramento da situação apresentada.
Émès é o nome da figura do poema, da sua personagem. Émès é uma memória. Émès não nos fala, mas o seu silêncio impõe-se-nos. O silêncio dos mortos, que permanece e que se manifesta no modo como o poeta vivo o assume, no presente. Deste modo, o cruzamento do passado com o presente assume-se como o lugar onde a memória dos que a não têm pode encontrar a sua expressão.
Naquela terra de ninguém, a que corresponde o porto, apenas há lugar para o epitáfio. É deste modo que Émès, através da voz emprestada do poeta, permanece. Por via dessa voz, Émès continuará jazente até ao reencontro com aqueles que num último murmúrio evocou. No despojamento absoluto em que Émès se revela, primeiro moribundo, depois morto, é o túmulo [túmulo no sentido que encontramos na música barroca, uma peça que é tocada para deixar memória de alguém que morreu; tradição que Ravel, já no século XX, retoma ao compor uma peça para piano a qual relembra o compositor barroco François Couperin, «Le tombeau de Couperin»] que o poeta lhe erige que redimensiona a sua presença. Os detalhes incrustados no poema são imperceptíveis, mas é por eles que a personagem anónima se emancipa e, pelo seu passado, entretanto revisitado, vem ocupar um lugar em actualização contínua, no espírito do poeta e junto do leitor[1].
Embora imbuído de um propósito, Émès é apresentado como alguém a quem uma força superior traça o destino. Com efeito, não é a ele que é atribuída a instância da viagem. Em vez disso, diz o poema que ele foi trazido até àquele porto, sendo, desse modo assumido como alguém a quem a circunstância de um acaso poderá ter condicionado. Apenas no seu propósito de ser vendedor de essências, Émès nos surge no poema como alguém que comanda os acontecimentos da sua vida. Em tudo o resto, ele é o rosto de um destino trágico que nele se revela. Por outras palavras, Émès é o homem normal, sujeito às vicissitudes da vida e do acaso. Nele encontra o poeta o exemplo a reter de uma humanidade sujeita à contingência. É este o homem que interessa ao poeta, o homem em despojamento absoluto.
Recuperando fragmentos do passado, através do exercício da memória, o poeta traz Émès para a superfície dos dias. Ele é o exemplo, a estátua a erigir, o túmulo onde pode haver sempre o registo, a lembrança feita aos sobreviventes de que a sua transitoriedade é em si mesma uma factualidade, só que, assim sendo, é como se existisse uma continuidade nas coisas perecíveis que, tornadas permanentes, se perpetuam.
O porto, aquele porto em particular, enquanto espaço de circulação, passa a ser ocupado por um pedestal erigido em nome dos homens e de Émès. Não constitui esse pedestal um elemento de culto, mas simplesmente uma marca para recordar, para preservar a memória de uma condição de finitude. No fundo, a figura de Émès è a do homem a quem deus abandona e é deixado ao sabor do vento. É o poeta quem resgata a personagem e a dignifica. A memória do morto, referida no tempo presente do verbo “jazer”, é algo que se prolongará para além do tempo limitado das vidas dos homens.
No poema, o passado é sistematicamente actualizado. Na terra de ninguém em que aquele porto se constitui verifica-se uma pausa, detectada pelo poeta. Uma pausa que corresponde ao falecimento de uma pessoa e que se verifica durante um pequeno período de tempo, pressupondo uma espera. O falecimento é um ponto incontornável da passagem para o lugar sombrio da memória histórica. A figura de Émès, abandonado pelo destino, abandonado por Deus, é recuperada e, desse modo, ao Deus caído que abandonou o homem, sucede a imagem do homem que poderá actualizar sistematicamente essa memória de abandono. Através do seu túmulo, do modo como a ideia de morte se constrói ao longo do poema, o poeta encontra, então, uma forma para resgatar o homem e o tornar seu, em contraponto à sua marca de estrangeiro. O jovem falecido que jaz naquele porto falecido, então resgatado, recupera a existência, através do único modo como ela pode ser recuperada: a memória.
É o poeta quem leva Émès aos seus velhos pais, mantendo-o em posição jazente até ao eventual encontro familiar. Sobrevivido até esse momento, Émès perdurará na memória dos vivos e a história contida no poema perdurará. O seu túmulo, em forma versificada, disso dará testemunho.
«La travail du poète n’est pás de résoudre des problèmes philosophiques ou sociaux: il est de nous offrir la purification poétique au moyen des passions et des pensées dont il a fait l’expérience dans son for intérieur et dans le monde qui l’entoure, comme il arrive à tout homme vivant auquel un destin est échu ici-bas. La purification poétique, cavafy nous la donne, à mon sens, alors qu’il est tombe dans les filets du dieu mort.»[2]

[1] SÉFÉRIS, Georges, Cavafy et Eliot, un parallèle, essai de Georges Séféris aux éditions fata morgana, Éditions Fata Morgana, Montpellier, 1982, pág. 21: «La seule chose que je voudrais que nous retenions, c’est le procédé par lequel, en se servant de détails imperceptibles: (…) Cavafy identifie le passe avec le présent, les rend contemporains. (…) Les personages sont parmis nous, à l’instant présent.»
[2] idem, pp. 53-54.