Lugares-comuns, frases feitas, são pedras da linguagem «que nos transportam à época pouco conhecida que antecede imediatamente a catástrofe. "Naquele tempo," diz o Génesis, "a terra tinha uma única língua"». O objectivo supremo da escrita sempre foi, e cito mais uma vez Mallarmé, sair das línguas «imparfeites en cela que plusieurs» e, paralelamente, descobrir nas coisas uma língua escrita e falante no silêncio, como testemunham séculos de especulações sobre os hieroglifos. Mas se, com o passar do tempo, tudo se converte em paródia, também esta doutrina, que nenhuma tradição desenvolveu como a judaica, terá de deparar com a presença actual da sua imitação. Será o nazismo a pô-la em acção. O seu modo de agir implica «o aniquilamento da metáfora»: na imagem, retraduzida numa linguagem de factos, ecoa agora o som da tortura. Foi esse o acontecimento que fez emudecer Kraus quando Hitler tomou o poder. Brecht anotou o sucedido: «Quando o Terceiro Reich foi criado / do eloquente chegou apenas uma pequena mensagem. / Num poema de dez linhas / ergueu-se a sua voz, só para lamentar / que não lhe bastava». Mas Kraus não emudeceu simplesmente, como anunciara no seu último poema, aquele a que Brecht se refere. O eloquente dedicou então o seu mais severo discurso à perda da palavra em consequência da afirmação do nazismo: escreveu Dritte Walpurgisnacht, enorme carvalho crescido na vala comum do século, divisória maciça, obra catafractária de que só se conhece o incipit, e dir-se-ia quase com razão, porque, segundo a regra do «construtor de frases», a primeira frase do livro corresponde ao seu conjunto: «A propósito de Hitler, nada me vem ao espírito». E o texto prossegue: «Bem sei que, com este fruto de prolongadas reflexões e de múltiplas tentativas de captar o acontecimento e a força que o move, fico muito aquém da expectativa, que talvez tendesse mais do que nunca para o polemista a quem o popular mal-entendido exige o que se designa por tomada de posição, já que, sempre que um mal atingia de qualquer forma a sua susceptibilidade, ele fez o que se chama «fazer testa». Mas há males perante os quais isso deixa de ser uma metáfora, e que tornam o cérebro que lhe está por detrás, e que participa de qualquer forma nessas acções, incapaz de ter um pensamento qualquer. Eu sinto-me como atingido na cabeça, e se, antes de o ser de facto, não quero considerar-me satisfeito por parecer tão emudecido como de facto estou, é porque obedeço a algo que me obriga também a prestar contas de um fracasso, a explicar a situação em que me colocou uma derrota tão completa no domínio da língua alemã, e o meu enfraquecimento pessoal por ocasião do despertar de uma nação e da instauração de uma ditadura, que hoje tudo comanda e não apenas a linguagem». Se a escrita sempre ambicionou reconduzir as metáforas à sua origem, que depois se descobre ser mais uma vez algo de impróprio, os nazis fizeram de repente algo de demasiado semelhante, com «a irrupção da frase-feita em acção». Foi este o acontecimento que, depois de ter imposto o silêncio a Kraus, o fez escrever o grandioso comentário ao seu silêncio. Quando «espalhar sal nas chagas abertas» é um facto presente e não a origem remota e não memorável de uma metáfora, quando as metáforas mortas despertam para ser aplicadas directamente sobre o corpo das vítimas, a própria metáfora desaparece e o seu fim é o espelho infernal da origem: «como o facto ocorreu, a palavra deixa de ser utilizável». Finalmente, «o sangue escorre da crosta das frases feitas» e a palavra cala-se. «É esse - na nova fé, que porém não se apercebe disso - o milagre da transubstanciação».
Roberto Galasso, Os Quarenta e nove degraus
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