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sábado, 17 de dezembro de 2011

Conhecimento

«Mas talvez nada embote mais veloz e profundamente um espírito nobre e valoroso do que o charme amargo e afiado do conhecimento; e certo é que a intransigência melancólica e escrupulosa da adolescência se revela superficial quando comparada com a resolução profunda do homem tornado mestre em regenerar a abdicar da erudição, cabeça erguida que dela desvia o olhar, impedindo-a assim de paralisar a vontade, desanimar a acção, aviltar a sensibilidade e mesmo a paixão. De que outro modo se poderia entender o célebre conto «O Miserável», a não ser vendo nele uma manifestação da sua repugnância face ao indecente psicologismo da época, a que deu corpo na figura de um crápula mole e estúpido que usurpa um destino ao lançar a mulher, por impotência, perversão ou veleidade ética, para os braços de um adolescente, julgando-se autorizado a cometer as maiores vilezas sob pretexto da profundidade. A ira com que, pela palavra, condenava aqui o que era condenável anunciava a renúncia à ambiguidade moral, à simpatia pelo abismo, a recusa do axioma frouxo da compaixão, segundo o qual tudo compreender é tudo perdoar, e o que aqui se antecipava, se desvendava por inteiro, mais não era do que aquele «milagre da ingenuidade renascida», sobre o qual, em diálogo posterior, o autor se exprimira intencionalmente e não sem misteriosa entoação. Singulares ligações! Seriam este «renascimento», esta nova dignidade e rigor, a causa espiritual do apuramento quase excessivo do seu sentido estético que nesta mesma altura se fazia observar, da pureza aristocrática, da simplicidade e proporção da forma, que desde então conferiam às suas produções um cunho tão palpável e voluntário de mestria e classicismo? Mas esta resolução moral que transcende o conhecimento, a erudição dissolvente e paralisante - não comportará ela também uma simplificação, um empobrecimento ético do mundo e da alma, e logo também um reforço do mal, do proibido, do que é moralmente inadmissível? E não terá a forma duas faces? Não será ela a um tempo moral e imoral - moral enquanto fruto e expressão da disciplina, mas imoral, e mesmo contra a moral, por naturalmente conter a indiferença, ou melhor, por virtualmente tender a vergar a moral sob o seu ceptro orgulhoso e absoluto?»

Thomas Mann, A Morte em Veneza

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