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Oeiras, Portugal
Aluno e Professor. Sempre aluno.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Luís de Freitas Branco: Paraísos Artificiais (Symphonic Poem)

Ironia

«É na incapacidade de ironia que reside o traço mais funda do provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redacções, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, um breve escrito propondo uma solução para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Examina com grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto,  que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério.
A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment - o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele "desenvolvimento da largueza de consciência", em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser provinciano.»

Fernando Pessoa, Os Portugueses

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Mania de Você (live) Rita Lee - Milton Nascimento (Bituca) - Subtitualda español

Treta e Mentira

«A comparação pertinente não está, contudo, entre dizer uma mentira e produzir uma treta qualquer. O pai Simpson identifica a alternativa à mentira como "safar-se com uma treta qualquer". Isto não implica apenas dizer uma treta; implica todo um programa de produção de treta à medida da necessidade ditada pelas circunstâncias. Esta é, talvez, a chave para a sua preferência pela treta em detrimento da mentira. Mentir é um acto que implica uma focagem muito precisa. Está concebido para inserir uma determinada falsidade num ponto específico de um sistema de crenças e valores, de forma a evitar as consequências de ter esse ponto ocupado pela verdade. Isto requer um grau de perfeição artesanal, no qual o autor da mentira se sujeita aos limites objectivos impostos por aquilo que ele considera ser a verdade. O mentiroso está inevitavelmente preocupado com o valor-verdade. Para inventar uma mentira, ele precisa de começar por pensar que sabe o que é a verdade. E de forma a inventar uma mentira eficaz, ele tem de conceber a sua falsidade à luz dessa verdade.»

Harry G. Frankfurt, Da Treta

I Left My Heart In San Francisco (composed in 1954 by Douglass Cross & George Cory) - Tony

O longe a as imagens

«O gosto pelo mundo das imagens não se alimentará de uma obscura resistência ao saber? Olho para a paisagem lá fora: o mar parece um espelho na sua baía, as florestas sobem até ao cume do monte como as massas imóveis e mudas; mais longe, as ruínas de um castelo, desde há séculos inalteradas; o céu resplandece sem nuvens, no seu azul eterno. É isto que o sonhador deseja. Que esse mar sobe e desce em biliões e biliões de ondas, que as florestas estremecem a cada momento da raíz até às folhas, que nas pedras das ruínas do castelo estão continuamente em acção forças que as fazem desmoronar-se e esfarelar-se, que no céu os gases entram em turbilhão, em lutas invisíveis - tudo isso ele tem de esquecer para se entregar às imagens. Nelas encontra serenidade, eternidade. Cada asa de pássaro que o roça, cada golpe de vento que lhe provoca um frémito, cada coisa próxima que o toca o desmente. Mas toda a distância lhe reconstrói o sonho, que se apoia em cada parede de nuvens, que se ilumina de novo com a luz de cada janela. E revela-se-lhe na sua máxima perfeição quando consegue retirar o aguilhão ao próprio movimento e transformar o golpe de vento num sussurro e a rápida passagem dos pássaros no deslizar das aves migratórias. O prazer do sonhador é o de fixar a natureza na moldura das imagens esmaecidas. O dom do poeta é o de a conjurar a cada novo chamamento.»

Walter Benjamin, Imagens de Pensamento

domingo, 29 de maio de 2011

Tom Waits - Take me home

Castanheiro

«Em frente das colunas geminadas do arco romântico do mosteiro de Mariabronn erguia-se um castanheiro, nobre árvore de tronco poderoso, solitário filho do Sul, trazido outrora de Roma por um peregrino; exposto ao vento o largo peito, debruçava fagueiro a copa sobre a estrada e, quando na Primavera tudo em redor vicejava e já as nogueiras da cerca se revestiam de folhagem avermelhada, ainda ele demorava a folheação; só mais tarde, no tempo das noites curtas, desabrochavam por entre tufos de folhagem os jactos bizarros das suas desmaiadas flores de cor branco-esverdeada, de tão acre, pungente e nostálgico aroma; em Outubro, após as colheitas da fruta e do vinho, deixava cair da copa amarelecida pelo vento outonal os frutos eriçados de espinhos, que nem todos os anos amadureciam e por cuja posse brigavam os rapazes do convento; o vice-prior Gregório, oriundo da Itália, assava-os à lareira da sua cela. Estranha e meiga, a bela árvore baloiçava ao vento a frondosa ramagem à entrada do mosteiro; hóspede delicado e um tanto friorento, proveniente de outras paragens, secretamente aparentado com as esbeltas colunas geminadas do portal e com os ornatos dos arcos das janelas, das cornijas e dos pilares, era amado pelos italianos e outros latinos e admirado, por exótico, pelos nativos.»

Hermann Hesse, Narciso e Goldmundo

Sting-Shape of My Heart

Madame Bovary

«Qual é o terreno fértil de nescidade, o meio mais estúpido, o mais produtivo em absurdos, o mais abundante em imbecis intolerantes?
«A província.
«E, lá, quais são os actores mais insuportáveis?
«As pessoas insignificantes que se agitam em funções insignificantes cujo exercício lhes falseia as ideias.
«Qual é o facto mais gasto, o mais prostituído, o realejo mais estafado?
«O Adultério.
«Não preciso, pensou o poeta, de que a minha heroína seja uma heroína. Para que seja interessante basta que seja suficientemente bonita, que tenha nervos, ambição, uma aspiração irrefreável a um mundo superior. Aliás, a proeza será mais nobre, e a nossa pecadora terá pelo menos o mérito - comparativamente tão raro - de se distinguir das faustosas tagarelices da época que nos antecedeu.
«Não preciso de me preocupar com o estilo, com a composição pitoresca da descrição dos ambientes; possuo todas essas qualidades num grau superabundante; caminharei apoiando-me na análise e na lógica, e provarei assim que todos os assuntos são indiferentemente bons ou maus consoante o modo como são tratados, e que os mais vulgares podem vir a ser os melhores.»
E assim era criada Madame Bovary - um desafio, um verdadeiro desafio, uma aposta como todas as obras de arte.
Ao autor, para realizar a proeza por inteiro, só restava despojar-se (tanto quanto possível) do seu sexo e de tornar-se mulher. Do que resultou uma maravilha; é que, apesar de todo o seu zelo de comediante, não conseguiu deixar de infundir um sangue viril nas veias da sua criatura, e, no que tem de mais enérgico e de mais ambicioso, e também de mais sonhador, Madame Bovary ficou sendo homem. Como Pallas saindo armada do cérebro de Zeus, este estranho andrógino conservou todas as seduções de uma alma viril num atraente corpo feminino.»

Charles Baudelaire, A Invenção da Modernidade (sobre Arte, Literatura e Música)

MAHLER GUSTAW (lvp152) Symfonia V Funeral March

sexta-feira, 27 de maio de 2011

A-GRAMATICALIDADE

O problema que se coloca nestas eleições é de ordem gramatical.
O problema é votarmos neles para eles continuarem a fazer de conta que nunca foram dos nossos…
O problema destas eleições é que, esquecendo-se que alguma vez forma dos nossos, eles querem perpetuar um poder que não é deles e que só transitoriamente ocupam. Com o tempo, criaram raízes, que, com os anos, se tornaram cada vez mais fortes. Com o tempo, fizeram-nos perceber que já não somos livres e que a liberdade que tanto nos custou a alcançar é apenas formal. Com o tempo, iludiram-nos de que vivíamos num progresso sem fim, cuja curva se projectava para além das estrelas. Com o tempo percebemos que essa curva não é nossa, mas apenas deles, que fazem de conta que nunca foram dos nossos. Com o tempo percebemos que o rico se envergonha do pobre e que faz de conta que ele não existe, em vez de se envergonhar por viver ao lado da miséria dos outros, em indiferença. Disseram-nos que isso era coisa do antigamente e que agora todos éramos iguais. Com o tempo, percebemos que a natureza humana não tem arranjo possível e que apenas individualmente seremos capazes de fazer as nossas próprias revoluções. Com o tempo.
Por isso, votar no dia 5 é participar desta farsa a que temos chamado democracia constitucional. Votar, no dia 5, é respeitar os nossos mortos e os deles. Que esses também não imaginariam ao que as suas memórias estavam destinadas. Segunda morte.
Eu vou votar. Há muito tempo que deixei de votar em convicção. No meio de tudo, dou comigo a pensar com qual dos principais candidatos a primeiro-ministro eu gostaria de partilhar a mesa. Descubro que não é o candidato em quem vou votar. O candidato em quem vou votar não é o meu candidato, mas apenas o candidato que eu quero que me safe. Reconheço a incapacidade do sistema partidário para a renovação. Vejo os tentáculos que se agarram onde podem para alcançar mais um tempo de poder…
Vejo diariamente gente que deixou há muito tempo de se preocupar com a causa pública, com o amanhã, com uma visão de conjunto, perspectiva. Gente que apenas se preocupa em alcançar o sustento próprio, em vez de erguer ao nível de causa primeira o bem daqueles que diz representar. Há muito tempo que a representação parlamentar é uma brincadeira, onde, vaidosos, os representantes se pavoneiam.
Não há quem se apresente a defender uma causa que não seja em benefício próprio. A nosso estado de anestesia propicia esta gente que só quer ser como nós quando procura o voto.
Eu voto, contrafeito, mas voto. Voto para que as raízes sejam arrancadas à terra que as fortalece, mesmo sabendo que outros, em breve, as substituirão.
Voto porque voto e porque sempre votei. Voto porque não posso perder a (quase) única oportunidade que me dão para manifestar a minha desilusão. Voto em quem se constitui para mim como o mal menor.
Gostava que um político um dia se apresentasse e fosse capaz de desenhar um mapa-mundo, onde se pudesse observar o conjunto em que as partes se irão desenvolver.  
Voto, apesar da agramaticalidade democrática em que vivemos. Voto para mostrar a eles que nós ainda existimos.
Voto. Apenas isso. 

Paolo Conte - vieni via con me

47

E no entanto chega luz,
uma estranha, inesperada luz,
à catacumba onde estou vivo
por força destas mãos.
Da matéria que afago à minha frente
irrompe ou brota uma solar,
uma ardente e sereníssima claridade,
de que me valho ao ver o universo,
vendo e vivendo os dias que passaram
e os que em nascer persistem.

Pedro Tamen, O Livro do sapateiro

Michel Petrucciani - In a sentimental mood

Novo Génesis

«Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices.
O homem - não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito, apertando e forçando em seus moldes de ferro aquela pasta de limo que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade -, o homem, assim aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita na Terra.
Rei nascido de todo o criado, perdeu a realeza; príncipe deserdado e proscrito, hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados; altivo ainda e soberbo com as recordações do passado, baixo, vil e miserável pela desgraça do presente.
Destas duas tão opostas actuações constantes, que já per si sós o tornariam ridículo, formou a sociedade, em sua vã sabedoria, um sistema quimérico, desarrazoado e impossível, complicado das regras, a qual mais desvairada, encontrado de repugnâncias, a qual mais oposta. E, vazado este perfeito modelo de sua arte pretensiosa, meteu dentro dele o homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e disparatado, doente, fraco, raquítico; colocou-o no meio do Éden fantástico de sua criação - verdadeiro inferno de tolices - e disse-lhe, invertendo com blasfemo arremedo as palavras de Deus criador:
«De nenhuma árvore da horta, comendo, comerás.
«Porém da árvore da ciência do bem e do mal, dela só comerás se quiseres viver.»
Indigestão de ciência que não comutou seu mau estômago, presunção e vaidade que dela se originaram - tal foi o resultado daquele preceito a que o homem não desobedeceu como ao outro: tal é o seu estado habitual.
E quando as memórias da primeira existência lhe fazem nascer o desejo de sair desta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar à natureza e a Deus, a sociedade, armada de suas barras de ferro, vem sobre ele, e o prende, e o esmaga, e o contorce de novo, e o aperta no ecúleo doloroso de suas formas.
Ou há-de morrer ou ficar monstruoso e aleijão.»

Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Georg Philipp Telemann - Quartet in G major, TWV43:G2

Ciência

«Mas o que é que significa a ciência para Nietzsche? Certamente não a ciência no sentido da Antiguidade, isto é,  um sistema de proposições fundadas sobre princípios universais, ligadas numa concatenação férrea, deduzidas e demonstradas umas mediante as outras. Mas também não no sentido moderno, ou seja, como conhecimentos obtidos através da recolha,, da indução, do experimento, e introduzidos depois, também eles, no mecanismo dedutivo, se, como parece, as teses e as discussões de Humano são apresentadas por Nietzsche como exemplos de actividade científica. Ele desenvolve já nesta obra, e de modo aprofundado nos escritos que se hão-de seguir, uma crítica cerrada contra o pensamento lógico e dedutivo, e a própria forma aforística que introduz em Humano aponta para a desconfiança para com o carácter produtivo das cadeias demonstrativas. Pode-se mesmo observar um contraste paradoxal entre a prosa de Richard Wagner em Bayreuth, onde, para exaltar a arte e a paixão, ele procura de modo elaborado, quase penoso, explicar, deduzir, demonstrar, e a de Humano, na qual a preeminência da ciência, ou em geral da razão, se exprime em lampejos, no máximo em discussões onde os pensamentos se mostram bastante mais coordenados do que subordinados. Por capacidade científica entende Nietzsche, na verdade, sobretudo a do juízo, de um juízo, além disso, no qual os termos se ligam não por uma necessidade inerente à razão de todos os homens, mas por um vínculo que nem a todos é dado entender. Ele alcança assim o essencial no que está contido dentro de certos limites. Aquilo que caracterizaria este juízo é o seu carácter concreto: sujeito e predicado são tirados directamente da esfera intuitiva, sensível, ou são determinações interiores de natureza ética, que se relacionam com as raízes do aprazível e do doloroso, do desejável e do evitável, e, na medida em que precisam de ser abstraídos, são universais já não lógicos mas sim éticos, ou pelo menos extraídos do mundo do devir.»

Giorgio Colli, Escritos sobre Nietzsche

terça-feira, 24 de maio de 2011

David Byrne - City Of Dreams - Live in Zagreb (1994)

La Famille du Sage

   Au bruit d'une source de nuit, sous une cloche de feuilles,
d'un même arbre contre le tronc, calme et froid - Père - ainsi,
dans une chambre fraîche, un jour te présence nous fut.


   Tu étais froid, sous un seul drap, voilé, une fenêtre ouverte.


   Quel équilibre nous quatre ensemble, sans heure tous assis,
toi-même mieux encore reposé, étendu, mort.


   Quelle pure santé du vert-feillu, du sol, et du liquide.


   Égale en nous coulait une eau en silence du cou sans cesse
dans le dos jusqu'aux membres sous l'herbe. Par la fenêtre
sourde, un souffle, versé du fond obscur du ciel, essuyait sur les
tempes des femmes la sueur du soir.


   Et qu'une étoile aussi, pareille à l'oeil du fils, s'avive,
   Sans le dire, tu en jouissais, Père!


Francis Ponge, Alguns Poemas

Etienne Daho - 6. Quelqu'un qui m'ressemble (HD) Live

Pai

«O meu pai tem uma colecção de discos metidos em caixas de papelão, arrumadas contra a parede do quarto, que se vai enchendo da poeira do Novo México. Nesta colecção, o campeão é um Al Jolson original, em 78 rotações, com a capa colada com fita adesiva e até a fita está meio rasgada. Da última vez que o vi, tentou convencer-me a levar o disco para L.A. e a vendê-lo por uma boa maquia. Está convencido de que vale, pelo menos, mil dólares. Talvez mais, consoante o mercado. Diz que, nos últimos tempos, tem perdido o contacto com os negócios.
O meu pai tem um quadro, na parede da cozinha, por cima do lava-loiças, que mostra uma señorita espanhola toda empoada. Tem mesmo. Leva-me a ver o quadro e ficamos ambos a apreciá-lo. «As pessoas pensam que ela deve estar nua, debaixo daquilo, mas aposto que tem alguma coisa vestida», diz ele.
Uma vez, guiou-me numa visita a todas as suas paredes. Todas as suas paredes estão cobertas por quadros e gravuras. Recortes de revistas de uma ponta a outra das paredes. Cada quadro ou recorte é um ponto de vista. Como se nos debruçássemos de várias janelas sobre paisagens emaranhadas. Observo os quadros. Uma queda de água com rochas verdadeiras coladas em primeiro plano. Rochas que achou que ficavam bem no quadro. Um cão branco com um peixe verde na boca. Cactus Saguaro ao pôr do sol, recortados de uma Arizona Highways de 1954. Um orangotango cor de laranja brincando com os órgãos genitais. Uma esquadrilha de bombardeiros B-52 em pleno voo. Uma colagem de rostos salpicada de manchas de gordura.
O meu pai tem uma colecção de beatas numa lata de café Yutan. Compro-lhe um maço de Old Golds mas nem lhe toca. Continua a vasculhar tabaco nas beatas e enrola tudo o que encontra, em cima de um saco de mercearia, de forma a não perder o mais ínfimo bocadinho. Olha desdenhosamente para o meu maço de cigarros, vermelhos e brancos e enrolados na fábrica.
Gastou em Bourbon  todo o dinheiro que eu lhe tinha dado para comida. Encheu o frigorífico de garrafas. Tinha o cabelo cortado rente, tal qual um piloto da segunda guerra mundial. Brilhavam-lhe os olhos de contentamento sempre que passava a mão pelo cabelo rente e duro que nem cerda. Dizia que costumavam cortá-lo assim rente para que os capacetes pudessem encaixar bem nas cabeças. Mostrava-me as cicatrizes dos estilhaços ainda nítidas na nuca.
O meu pai vive sozinho no deserto. Não se dá com gente, diz.»

4/79
Santa Fé, Novo México

Sam  Shepard, Crónicas americanas 

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Sakamoto/Sylvian-Heartbeat

Imparare

«Imparare significa: far corrispondere il nostro fare e non fare con ciò che di volta in volta si rivolge a noi in un ambito essenziale. Per esserci capaci di trovare tale corrispondenza, dobbiamo metterci in cammino. Quando impariamo a pensare, durante il cammino che abbiamo deciso di seguire non dobbiamo innanzi tutto concentrarci precipitosamente sulle questioni più urgenti, ma dobbiamo abbandonarci a quelle questioni che cercano quello che nessuna invenzione può trovare. Tanto più che noi moderni possiamo soltanto imparare, se al tempo stesso anche disimpariamo. E detto con riferimento al caso che ci riguarda: noi possiamo soltanto imparare a pensare, se disimpariamo radicalmente l'essenza del pensiero che è durata fino ad oggi. Ma per far questo è necessario che noi al tempo stesso ne facciamo la conoscenza.»

Martin Heidegger, Che cosa significa pensare?

domingo, 22 de maio de 2011

Sónia Alcobaça - Götterdämmerung (Gutrune)

Humanidade

«A tese que pretendo propor é que na sociedade dos media, em vez de um ideal de emancipação modelado pela autoconsciência completamente definida, conforme o perfeito conhecimento de quem sabe como estão as coisas (seja ele o Espírito Absoluto de Hegel ou o homem não mais escravo da ideologia como o pensa Marx), abre caminho a um ideal de emancipação que tem antes na sua base a oscilação, a pluralidade, e por fim o desgaste do próprio «princípio de realidade». O homem, hoje, pode finalmente tornar-se consciente de que a perfeita liberdade não é a de Espinosa, não é - como sempre sonhou a metafísica - conhecer a estrutura necessária do real e adaptar-se a ela. A importância do ensino filosófico de autores como Nietzsche e Heidegger está toda aqui, no facto de que eles nos oferecem os instrumentos para compreender o sentido de emancipação do fim da modernidade e da sua ideia de história. De facto, Nietzsche mostrou que a imagem de uma realidade ordenada racionalmente com base num fundamento (a imagem que a metafísica teve sempre do mundo) é apenas um mito «tranquilizador» próprio de uma humanidade ainda primitiva e bárbara: a metafísica é ainda uma forma violenta de reagir a uma situação de perigo e de violência; procura, de facto, apoderar-se da realidade com um «golpe de mão», alcançando (ou imaginando alcançar) o princípio primeiro de que tudo depende (e assegurando-se assim ilusoriamente o domínio dos acontecimentos). Heidegger, prosseguindo nesta linha de Nietzsche, mostrou que pensar o ser como fundamento, e a realidade como sistema racional de causa e efeitos, é apenas uma forma de alargar a todo o ser o modelo da objectividade «científica», da mentalidade que, para poder dominar e organizar rigorosamente todas as coisas, as deve reduzir ao nível de puras presenças mensuráveis, manipuláveis, substituíveis - reduzindo por fim a este nível também o próprio homem, a sua interioridade, a sua historicidade.»

Gianni Vattimo, A Sociedade transparente

sábado, 21 de maio de 2011

Peter Gabriel - Here Comes The Flood

O eu si-próprio

«Pessoa, fazedor de outras pessoas, objectos descartados, feitos duplos e opositores, torna-se espaço relacional: Sou a cena nua onde passam vários actores representando várias peças. E no entanto Pessoa [o que supera o Pessoa ortónimo E todo este mundo meu de gente entre si alheia só é tal, pelo outro, que nele, e, para ele, se vai desenvolvendo.
Daí, por outro lado, que o esgotante devir-outro seja o devir-si-próprio. Quanto mais se é outro mais se é - Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos.
O eu si-próprio que preside à alteridade e à heteronímia, sendo pura relação é, nesta diferença de si a si, que encontra a sua identidade. A identidade torna-se, portanto, em Pessoa (e em termos próximos de Heidegger), relação pura. Ser eu é ser diferente de mim, é ser distância ao ser. Ora esta diferença de si a si, primeira na ordem da fundamentação do ser-ente (Dasein) é a essencialidade de toda a forma de o eu se sentir. O ser outro passa por este corredor tensional [o incómodo (...) corredor / Do pensamento para as palavras de Caeiro, o negro Intervalo de Bernardo Soares], na tentativa de reduzir a fissura entre a sensação e a consciência, pela substancialização da consciência dessa relação.
A apropriação de si implica esse «duplo movimento do deslizar para fora de si e de reapropriação (aberta, não-totalizada) de si, de todas as coisas e de toda a existência»
É o desejo, a força desse poder ser, que fazem da personalidade pessoana que é Bernardo Soares um caso assumido, in-extremis, desta natural alteridade que todos temos. Ele quis viver essa diferença ontológica, preencher o vazio pelo sonho e pelo olhar.
«O olho do pensamento», essa visão interior, visão vidente (um outro filão melancólico), controla e dinamiza o processo, por um lado, em profundidade temporal e valorativa, por outro, em extensão espacial e diversificante.»

Ricardina Guerreiro, De Luto por existir, a melancolia de Bernardo Soares à luz de Walter Benjamin 

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Sumi Jo & Ah-Kyung Lee - Delibes - Lakme - Flower Duet

Fogo de Artifício

















James Ensor, «Fireworks»

«Consigo ver um vulcão nessa imagem, que é um pormenor de uma pintura de Ensor, cuja obra tinha acabado de rever em Paris e que admiro imenso. Pergunto-me se fiz bem em cortá-la. É um fogo-de-artifício na cidade. A parte de baixo tem a escuridão e as pessoas minúsculas que estão a assistir ao fogo. Assim ficou mais misterioso. Essa imagem sustenta a passagem do químico ao alquimista. É a chama que quero pôr em relevo.


Também é verdade que me ocorreu um vulcão, sugestionada por Goethe, que está muito presente nestes textos, e pela sua viagem a Itália, no final do século XVIII.


Goethe subiu ao Vesúvio três vezes, e com perigo uma das vezes. No quadro de Ensor não se vêem as cinzas. É uma imagem invertida daquilo que Benjamin diz que a passagem do químico ao alquimista é a passagem do comentário à crítica. Essa passagem não está assegurada, pode dar-se ou não. Quando se dá, ela consiste em ver nas cinzas uma chama. A imagem proclama a chama, mas omite as cinzas. Em Goethe, o tema das cinzas não é decisivo. Não é que Goethe não conheça bem a indigência, a aflição, a perda, a angústia da vida. Mas o tema das cinzas não é muito goethiano. Nem baudelairiano. Baudelaire fala mais dos restos, dos despojos. Benjamin utiliza muito a imagem das cinzas.»

Entrevista a Maria Filomena Molder, «Público», 20 de Maio de 2011

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Giorgia & Mina - Poche Parole

Pereira

«Pereira si riscosse quando passò davanti a Santo Amaro. Era una bella spiaggia arcuata e si vedevano le baracche di tela a trisce bianche e azzurre. Il treno si fermò e Pereira pensò di scendere e di andare a fare un bagno, tanto poteva prendere il treno successivo. Fu più forte di lui. Pereira non saprebbe dire perché sentì quell'impulso, forse perché aveva pensato ai suoi tempi di Coimbra e ai bagni alla Granja. Scese con la sua piccola valigia e attraversò il sottopassaggio che portava alla spiaggia. Quando arrivò sulla sabbia si tolse le scarpe e i calzini e avanzò così, tenendo in una mano la valigia e nell'altra le scarpe. Vide subito il bagnino, un giovanottone abbronzato che sorvegliava i bagnanti stando disteso su una sdraio. Pereira gli si avvicinò e disse che voleva affittare un costume da bagno e uno spogliatoio. Il bagnino lo squadrò da capo a piedi con aria sorniona e mormorò: non so se abbiamo un costume della sua taglia, comunque le do la chiave del magazzino, è la cabina più grande, la numero uno. E poi chiese con un'aria che a Pereira sembrò ironica: ha bisogno anche di un salvagente? So nuotare molto bene, rispose Pereira, forse molto meglio di lei, non si preoccupi. Prese la chiave del magazzino e la chiave dello spogliatoio e si avviò. Nel magazzino c'era un po' di tutto: boe, salvagenti gonfiabili, una rete da pesca coperta di sugheri, costumi da bagno. Frugò fra i costumi da bagno per vedere se ne trovava uno all'antica, di quelli completi, che gli coprisse anche la pancia. Riuscì a trovarlo e lo indossò.»

Antonio Tabucchi, Sostiene Pereira

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Monteverdi: Il Ritorno d'Ulisse in Patria - Prologue; Les Arts Florissants/William Christie

Ode I, 3

   Assim a diva rainha do Chipre,
assim os irmãos de Helena, luzentes estrelas,
   assim o pai dos ventos,
apresando todos excepto o Iápix,

   te conduzam, navio, tu que a ti próprio
Vergílio deves em empréstimo, suplico,
   que o devolvas, incólume, às fronteiras da Ática,
e que preserves a minha alma metade.

   Carvalho e triplo bronze tinha
em seu peito aquele que primeiro arremeteu
   frágil seu barco ao cruel pélago,
não receando nem o impetuoso Áfrico,

   que com os ventos de Áquilo peleja,
nem as tristes Híades, nem a fúria de Noto:
   maior juiz não há no Adriático,
a seu bel-prazer as ondas elevando ou amainando.

   Temeu os inexoráveis passos da morte
aquele que de olhos enxutos monstros viu a nadar,
   e o mar encapelado,
e os mal afamados rochedos de Acroceráunios?

   Em vão o previdente deus
a terra do incompossível oceano separou,
   se ainda assim ímpios os navios
sulcam os mares que jamais deveriam ser cruzados!

   A humanidade, temerária
até no sofrimento, precipita-se no erro proibido.
   Temerário o filho de Jápeto
o fogo aos homens, com funesta perfídia, trouxe,

   e depois de o ter furtado
de sua celeste morada, sobre a terra se estendeu
   a fome e um exército novo de febres,
e a necessidade da morte, outrora tão vagarosa

   e remota, o seu passo aligeirou.
Aventurou-se pelo ar vazio Dédalo
   com asas ao homem não concedidas:
foi empresa de Hércules no Aqueronte irromper.

   Para os mortais nada há de difícil:
estultos o próprio céu reclamamos,
   nem permitimos, por nosso crime,
Júpiter iracundos depor seus raios.

Horácio, Odes, I, 3

terça-feira, 17 de maio de 2011

Rodrigo Leão & Cinema Ensemble - Casino Estoril ( A Mãe)

Johannes Climacus

«Climacus tornou-se estudante; foi aprovado no segundo exame da universidade, fez vinte anos e, contudo, nenhuma mudança operou-se nele, ele era e permaneceu estranho ao mundo. Não que fugisse das pessoas; ao contrário, procurava encontrar a companhia de espíritos semelhantes ao seu. Mas não fazia confidências e jamais deixava transparecer o que se passava em seu íntimo; seu erotismo era muito profundo para isso; parecia-lhe que teria corado se falasse, temia saber muito ou muito pouco. Por outro lado, estava sempre atento ao que os outros diziam. Como uma jovem profundamente enamorada não fala de bom grado do seu amor, mas escuta com um fervor quase doloroso as outras jovens falarem dos seus, para em silêncio descobrir se está tão feliz quanto elas ou mais ainda, para captar o menor indício que pudesse guiá-la, Johannes, em silêncio, escutava tudo atentamente. Ao voltar para casa, examinava o que haviam dito os filosofantes, pois, sem dúvida, era a companhia deles que buscava.»

Soren Kierkegaard, Johannes Climacus ou É preciso duvidar de tudo

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Propaganda - Dr Mabuse (live at Wembley)

Ciência Nova

«Nas relações quase sempre tempestuosas entre a filosofia e a poesia, o filósofo napolitano Giambattista Vico (1669-1744) assume uma posição tão idiossincrática quanto a obra que lhe dá expressão. O seu livro mais importante, a Ciência Nova, fornece um dos primeiros e mais fortes contributos para definir a especificidade daquilo a que hoje chamamos as ciências humanas por oposição às ciências naturais. O que distingue as humanidades destas últimas assenta no facto de o seu objecto de estudo ter sido criado pelo próprio homem, ao passo que o filósofo natural encontra o material para as suas cogitações no mundo que antecede a criação das isntituições sociais, das leis e da própria linguagem. Isso implica o desenvolvimento de um método distinto e específico para estudar tudo o que diz respeito às ciências humanas, chegando Vico à conclusão de que, nestas, o método coincide com o objecto de estudo. Esse objecto é, para todos os efeitos, indiscernível da própria história da disciplina.»

João R. Figueiredo, «Prefácio» a Poesia e Ciência Nova, o conhecimento segundo Giambattista Vico, de Ana Cláudia Santos 

domingo, 15 de maio de 2011

Luigi Dallapiccola - Canti di prigionia - I. Preghiera di Maria Stuarda

Kitsch

«Estético não coincide, por conseguinte, com o sistema de valores da arte, mas exclusivamente com a realização de uma forma, qualquer que ela seja: este pão, um tecido, uma lei, uma escultura, um axioma. Se o aspecto estético isolado do ético conduz à degradação, o aspecto ético sem realização estética atrai o desespero, tocado de impotência, de esterilidade. Em rigor, o movimento de dar forma não vale mais do que a forma realizada, mas é posto em perigo quando as formas realizadas se tomam como cânones sufocantes, aniquilando qualquer experiência da "primeira vez", pervertendo qualquer esforço futuro de dar forma, satisfazendo pela reprodução mimética o tédio de matar o tempo, que retorna cada vez mais exigente. A arte kitsch é uma das suas expressões. Brich toma-a como o mal, o mal radicar no sistema de valores da arte. Em oposição ao mal dogmático, que consiste na destruição de um sistema de valores por outro (por exemplo, o sistema político que tenta reduzir à submissão o sistema artístico ou religioso), o mal radica é a destruição que um sistema pratica contra si próprio, como um ladrão que roubasse a sua própria casa (todos estes conceitos são desenvolvidos em "O mal no sistema de valores da arte").»

Maria Filomena Molder, O Absoluto que pertence à terra

sábado, 14 de maio de 2011

Pink Floyd - Comfortably Numb - Live 8

A Terceira Coisa

Ela vinha.
tu falavas-lhe
até que a podias já tocar
E agora é a tua fala
quem lhe toca
de tão perto
que mais que ouvi-la
ela a sente.
Ela vem e chega.
Tu a descobres ou inventas,
mas decide-te.
Eu descubro-te e invento-te
e então eu oiço-a dizer-nos:


Eu sou a terceira coisa;

A personagem: o herói -
- a terceira pessoa.

Manuel Gusmão, A Terceira mão

La Reverdie - Alleluya Cantabant Sancti & Laus Trinitati

Livros e leitura(s)

Fui convidado amavelmente pelo Tomás Castro e pelo meu colega Carlos Lopes para participar num encontro que eles próprios pretendiam organizar, tendo como motivo central o livro e a leitura. Por dever, de profissional e de estudante, bem como por consideração às pessoas que tão amavelmente se dispuseram a ser pacientes para comigo, aceitei a proposta, agradecido, e espero não defraudar as suas expectativas.
Confesso que, apesar de a minha vida ter conhecido desde sempre e em permanência essa coisa a que chamamos livro, sempre que me pedem que exponha uma ideia que seja sobre a leitura, é sempre com algum cuidado que me refiro a este objecto, como se se tratasse de lidar com uma pessoa muito querida, por quem tenho estima e consideração e, por esse motivo, não ser capaz de a ele me dirigir sem a reverência e o respeito que considero serem-lhe devidos.
A leitura democratizou-se nos últimos anos. É um facto. O número de livros vendidos, bem como os resultados dos inquéritos sobre a leitura que têm sido divulgados, são uma prova irrefutável disso mesmo. Quero deixar desde já claro que me congratulo vivamente com este facto. No entanto, dou comigo por vezes a pensar se o simples facto de se ler mais, e, por conseguinte, de os livros se terem tornado mais acessíveis aos cidadãos, pode ser, em si mesmo, um factor que serve para aliviar os espíritos mais inquietos daqueles que, do livro e da leitura, não são capazes de dissociar uma vertente diacrónica na sua abordagem.
Por outras palavras, lê-se de facto muito mais, mas será que se lê e que as pessoas são incentivadas a ler aquilo que interessa? Ou seja, aquilo que se repercute mais vivamente nas nossas vidas, como sejam, por exemplo, estratégias para se pensar, para se exercer um espírito crítico vivo e susceptível de formar cidadãos que sejam capazes de estruturar raciocínios e apresentar argumentos complexos, que sejam capazes de desenvolver o espírito imaginativo nos leitores. Um espírito imaginativo de onde mane uma capacidade que permita a quem lê aceder a novos lugares, a novos pontos de observação de uma mesma paisagem. Ou seja, que permita a quem lê a possibilidade de, perante uma dada realidade, que pode ser apresentada como coisa acabada, encontrar outros focos de interesse e, a partir daí, reconstruir a paisagem, porque, tendo passado a ser observada a partir de outro ângulo, se torna, entretanto, outra. Será que as nossas maneiras de ler envolvem a noção de tempo, e, por conseguinte, que lemos um livro adivinhando nele, por exemplo, um determinado espírito de época? Será que somos capazes de ler o nosso tempo devidamente, no pressuposto de que um conhecimento que envolva uma dimensão histórica permitirá alargar a nossa capacidade de apropriação daquilo que é actual, através das lições que o tempo nos pode ser capaz de oferecer?
Não estou certo que assim aconteça. E receio que não aconteça mesmo, até porque nos últimos anos se tem vindo a fomentar a ideia, em meu entender perversa, de que ler é uma actividade “fácil”. Não deixa de ser contraditório o facto de, sob o pretexto da “empregabilidade” se insistir, por um lado, na ideia de que ler é uma coisa boa, mas, no momento em que, por exemplo, os alunos devem escolher uma área de estudos para a frequência do ensino secundário, quem lê passe a ser entendido como alguém que, não tendo jeito para outras coisas, se refugia na área do saber que sempre lhe terá sido apresentada como a mais fácil. Estranho mundo este em que, debaixo do guarda-chuva de uma coisa a que chamam empregabilidade se cria a ilusão de que ainda existem empregos e trabalhos à espera de alguém num qualquer lugar, apenas por não ser na área de letras. Estranho mundo este onde emerge o totalitarismo utilitário a mostrar aos homens de boa vontade que, afinal de contas, a sua liberdade individual não se encontra naquilo que eles são em si mesmo, mas no modo como se relacionam com os outros e se inserem na sociedade. Pensamento perverso…  
Relembro agora aquilo que nunca deixo de dizer aos meus alunos: a leitura é um trabalho, só que é um trabalho com características específicas. Com efeito, a leitura é uma actividade que leveda, que, por mais que pensemos que a teremos abandonado, ela volta sempre, mostrando-nos o quanto nos podemos ir construindo a partir das sempre renovadas lembranças de um livro que tenhamos lido há muito tempo.
Nós não precisamos de estar num escritório para trabalhar quando trabalhamos com livros. Apenas precisamos de os pensar, nesse modo ocioso e simultaneamente produtivo de o fazer. Para que isto aconteça é necessário que sejamos capazes de lidar com a instância temporal e de compreender a importância de coisas aparentemente tão simples, como a paciência ou a capacidade de concentração, que dela advém.
Durante este ano lectivo, depois de apresentar a uma turma a proposta de leitura de um livro, fui interrompido por um aluno que afirmou: “eu não consigo ler um livro inteiro porque não me consigo concentrar, porque, ao mesmo tempo que os meus olhos passam pelas linhas da página, eu não estou a pensar nas palavras que leio mas sim noutra coisa qualquer, simplesmente outra coisa, não interessa que coisa seja.” Acontece que felizmente me apareceu uma resposta pronta para lhe dar. Comecei por lhe perguntar se ele gostava de jogar na PS3. De seguida, fi-lo compreender que, na medida em que era capaz de obter períodos alargados de concentração enquanto joga, ele poderia servir-se dessa sua experiência pessoal para a estender a outras actividades que pratique, nomeadamente à leitura. De facto, eu não acredito que os alunos não sejam capazes de se concentrarem na leitura, apenas não estão afinados para se concentrarem diante de um livro, apesar de o serem capazes de fazer em relação a outras coisas.
Afinal de contas, por mais Planos Nacionais de Leitura que se façam, haverá sempre quem não tenha essa paciência particular que envolve um leitor no acto de ler. Sendo a leitura o resultado de uma motivação interior, de uma espécie de chamamento, não estou certo que o facto de se elaborarem Planos Nacionais de Leitura venha a ser razão incontornável para se dizer que se lê mais. Até porque, segundo me parece (e se estiver enganado gostaria de ser corrigido), a forma de se medir a leitura (se isso é possível) numa biblioteca, por exemplo, resulta do somatório de visitas, ou do número de requisições de livros efectuadas por um leitor. Que ideia é esta de se medir a leitura? Como posso garantir que alguém que requisitou 10 livros os tenha lido todos? E o que importa isso?
Às vezes fico com a impressão de que o tratamento dos dados assim efectuado é suficiente para se acreditar que temos leitores. Contudo, nenhum destes dados me satisfaz. Por isso suspeito. Suspeito que o modo como o mundo está organizado ou então o modo como nos pretendem fazer crer que se organiza, sem a apropriação devida e necessária de aspectos relacionados com a busca de visões de conjunto, em vez de visões parcelares do mundo, resulta de um sinal dos tempos em que vivemos, em que, apesar de se pretender iludir os homens para a sua dimensão de liberdade, apenas se releva aquilo que neles se considera ser susceptível de os tornar menos autónomos, porque cada vez mais expostos e dirigidos, na sua formação individual, não para aquilo que a sua natureza lhes pede, mas para aquilo que a sociedade pode vir a pretender deles, na perspectiva de que ao fazer certas escolhas em detrimento de outras eles terão mais possibilidades de garantir o seu sustento. Tudo isto acontece, hoje em dia, perante um cenário em que a chamada empregabilidade se tornou um conceito quase exotérico, na medida em que, mesmo que sigamos por aí, em quase nenhuma área profissional é garantido que se obtenha lugar imediato.
Pediram-me que falasse de livros e de leitura. Começo pelo princípio. Existem pessoas em relação às quais ficamos devedores para o resto da vida. Eu sou devedor em relação a muitas pessoas, mas em relação à leitura, a minha primeira e definitiva dívida é para com o meu irmão mais velho, que, tendo entrado na primeira classe, ao mesmo tempo que aprendia as primeiras letras, vinha para casa mostrar-me as coisas novas que lhe eram mostradas. Sem dar por isso, e como se se tratasse de um jogo, foi ele que me ensinou a ler e a escrever. O certo é que a leitura colou-se-me à pele e não mais me largou. Lembro-me de ter começado a ler desde muito novo os Evangelhos e a entendê-los para além daquilo que deles se dizia nas eucaristias em que participava ao domingo.
Mais tarde passei por aquilo a que poderei chamar um momento decisivo da minha vida. Acontece que, na passagem para o 1º ano do ciclo preparatório, actual 5º ano de escolaridade, foi-me diagnosticada uma hepatite, que me obrigou a permanecer em casa durante três meses. Aproveitei essa altura para percorrer as filas de livros que havia em casa. Foi então que li Carles Dickens, adaptações da Ilíada, da Odisseia, da Eneida, romances de Walter Scott, bem como os meus primeiros livros de Camilo Castelo-Branco. Pelo meio havia mais, até porque a leitura era a minha maneira de ocupar o tempo de uma forma muito agradável.
Pediram-me que escolhesse alguns livros para deles vir aqui falar. Aproveitei para trazer alguns dos meus amigos: Cesare Pavese, Hermann Broch, Baldassare Castiglione, Maria Filomena Molder, Camilo Castelo-Branco, Horácio e o meu autor de referência, Benedetto Croce. A todos eles associo fases importantes da minha vida.
Pavese que apresenta a sua vida e a sua obra como elementos constitutivos um do outro, de tal modo que as páginas finais do seu diário, quando lidas à luz dos factos históricos da sua vida pessoal, nos interpelam directamente para o facto de, enquanto “seres do meio”, nas palavras de Maria Filomena Molder, não podermos aceder ao controlo das nossas existências.
Broch, que, a partir da biografia de Virgílio, apresenta uma reflexão acerca dos problemas do homem contemporâneo e da sua posição perante a incomensurabilidade do mundo.
Castiglione, porque, ainda hoje nos ensina que o bom cortesão é aquele que possui um espírito nobre assente em critério de equilíbrio, gentileza, harmonia com os outros e com o mundo.
Maria Filomena Molder, enquanto autora de uma sensibilidade profunda no modo como lê os outros, bem como pela maneira como nos mostra os percursos de autores que foram capazes de, com paciência e tenacidade, perseguirem os seus objectivos mesmo quando envolvidos em ambientes extraordinariamente adversos.
Horácio, porque tem um dos meus poemas preferidos, o terceiro poema da terceira Ode, em que destaca a atitude do homem determinado que, quando firme nos seus propósitos, não se perturba com o furor dos outros cidadãos.
O meu Camilo é o das Memórias do Cárcere. O homem que, mesmo entregue à sua sorte e ao abandono, não deixa de estudar os recantos mais escondidos da alma humana.
Por fim, o meu autor, aquele que me acompanha há quase vinte anos: Benedetto Croce, de um livro aparentemente muito simples, mas extraordinariamente amplificado através das ramificações que em cada página, escondidas, vão sendo reveladoras de um espírito que, por via de um conceito de bem e de bondade, é capaz de superar o acantonamento a que é votado por questões políticas, e, ainda assim, num momento em que volta a fazer parte do círculo do poder no estado italiano, não deixa de exercer a sua magnanimidade, procedendo olimpicamente em relação àqueles que o isolaram durante quase vinte anos.
Em todos estes autores preside aquilo que é para mim, o objecto mais louvável de uma vida ética, e, por conseguinte, da literatura: a bondade. Quando escolhi estes livros foi segundo o critério da bondade que o fiz. 


quarta-feira, 11 de maio de 2011

VOI CH'AMATE LO CRIATORE - Coro Dulcis Memoria

Studio

«Neppure chiusi del tutto l'orecchio, in Italia e tra gli esuli dall'Italia, a coloro che vagheggiavano azioni più prontamente risolutive e cospiravano; ma ciò feci, a dir vero, piuttosto per condiscendenza e per non dare impressione di scoraggiante timidezza. che per fede che io avessi in quei metodi o per capacità che sentissi in me di praticarli, perché tutta la mia vita ho giocato a carte scoperte e non so giocare altrimenti, anche quando forse sarebbe necessario. Ma poiché, come ho detto, quello che io sentivom scosso, sconvolto e traballante era il fondamento di ogni serio concetto e di ogni elevata azione politica, la mia migliore opposizione, ossia quella a me più confacente e nella quale potevo dare maggiore rendimento, doveva consistere nella difesa e restaurazione delle necessarie premesse intellettali e morali e nella continuazione resa più intensa della mia opera personale di pensatore e di scrittore. Gli studi per sé stessi, anche quelli che paiono distaccati dalla pratica, como il gusto per la poesia o la diligenza nell'indagine filologica, hanno sempre il potere di introdurre negli animi qualcosa di universale, che contrasta e tempera l'esclusiva caccia delle utilità immediate.»

Benedetto Croce, Contributo alla critica di me stesso

Saviano e Benedetto Croce, attacco del tg1 e difesa di Saviano da Mentana

terça-feira, 10 de maio de 2011

Grand Corps Malade - Les voyages en train

Alma

«Da mesma maneira se demonstra que não existe na Alma nenhuma faculdade absoluta de entender, de desejar, de amar, etc. De onde se segue que essas faculdades e outras semelhantes ou são puras ficções ou então não são senão entes metafísicos, isto é, universais, que costumamos formar a partir dos singulares; de tal maneira que a inteligência e a vontade estão para esta ou aquela ideia, ou para esta ou aquela volição na mesma relação que a pedreidade («lapideitas») está para esta ou aquela pedra, ou como homem está para Pedro para Paulo. Expliquei, por outro lado, no Apêndice da Parte I, a causa por que os homens julgam ser livres. Mas, antes de prosseguir, convém notar aqui que, por vontade, entendo, repito, a faculdade pela qual a Alma afirma ou nega, o que é verdadeiro e o que é falso, e não o desejo pelo qual a Alma apetece as coisas ou as tem em aversão. Ora, depois de ter já demonstrado que essas faculdades são noções universais, que se não distinguem das coisas singulares das quais as formamos, é necessário investigar agora se as próprias volições são algo mais que as ideias que temos das próprias coisas. É necessário investigar, repito, se existe, na Alma, outra afirmação ou outra negação além daquela que envolve a ideia, enquanto ela é uma ideia. Sobre esse assunto, veja-se a proposição seguinte, assim como a definição 3 desta parte, para que o pensamento não degenere em pinturas. Com efeito, por ideias não entendo imagens, como as que se produzem no fundo dos olhos ou, se se quiser, no meio do cérebro, mas concepções do Pensamento.»

Bento Espinosa, Ética

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Val Abraham (Vale Abraão) - Manoel de Oliveira (1993)

Métamorphose

«Dans un ouvrage sur le Folklore des Boschimans, que je tiens pour le document le plus précieux sur l'humanité primitive, et qui est loin d'être encore épuisé - bien qu'il ait été rédigé par Bleek il y a cent ans, et imprimé voià bientôt cinquante ans -, se trouve un chapitre sur les pressentiments des Boschimansm qui contient d'importants éclaircissements. Comme on le verra, ces pressentiments sont des amorces de métamorphoses de forme on ne peut plus simple. Les Boschimans flairent de loin l'arrivée de personnes qu'ils ne peuvent ni voir ni entendre. Ils ont aussi un sentiment qui leur dit l'approche du gibier, et ils décrivent par quels signes leur propre corps leur fait reconnaître cette approche. En voici quelques exemples, reproduits littéralement.
«Un homme dit à ses enfants de surveiller l'arrivée de leur grand-père. «Faites le guet, il me semble que Grand-Père approche. Car je sens la place de son corps où est sa vieille blessure.» Les enfants font le guet. Ils voient un homme au loin. Ils disent à leur père: Voici un homme qui arrive.» Leur père lui dit: "C'est votre grand-père qui arrive. Je savais qu'il viendrait. J'ai senti son arrivée à la place de sa vieille blessure. Je voulais que vous le voyiez vous-mêmes: il arrive réellement. Vous n'en croyez pas mon pressentiment. Mais il dit la vérité".»
Cette scène est d'une simplicité grandiose. Le vieil homme qui est le grand-père de ces enfants était manifestement parti bien loin. Il a une vieille blessure à certain endroit de son corps. Son fils adulte, père des enfants, connaît exactement cet endroit. C'est une de ces blessures qui se réveillent toujours. On a souvent entendu le vieillard en parler. Elle est, dirions-nous, sa «caractéristique». Quand le fils pense à son père, il pense à sa blessure. Mais c'est plus qu'une simple pensée. Il ne se contente pas de se représenter la blessure, son emplacement précis, il la sent  à l'endroit correspondant de son corps à lui. Dès qu'il la sent, il suppose  que son père, qu'il ná pas vu depuis un certain temps, s'approche. Il sent qu'il s'approche parce qu'il sent sa blessure. Il le dit à ses enfants, et il semble qu'ils ne le croient guère. Ils n'ont peut-être pas encore appris à croire à la justesse de pareils pressentiments. Il leur fait faire le guet, et en effet, un homme s'approche. Ce ne peut être que le grand-père, c'est lui. Le père avait raison. Le sentiment de son corps ne l'a pas trompé.»

Elias Canetti, Masse et puissance

Boccherini - Cello Concerto in D Major G483 - Mov. 1/3

O regresso

No fim dos anos do desterro
voltei à casa da minha infância
e contudo é-me estranho o seu espaço.
As minhas mãos tocaram nas árvores
como quem acarinha alguém que dorme
e repeti velhos caminhos
como se recuperasse um verso esquecido
e vi na tarde cada vez mais límpida
a frágil lua nova
abandonada ao amparo sombrio
da palmeira e das suas altas folhas,
como o pássaro ao ninho.
Que multidão de céus
abarcará o pátio entre os seus muros,
que poentes heróicos
militarão no abismo da rua
e quantas quebradiças luas novas
infundirão ternura a este jardim
antes que a casa volte a conhecer-me
e seja outra vez um hábito!

Jorge Luís Borges, Fervor de Buenos Aires

O. Respighi - (3/4) Pini di Roma - III. I pini del Gianicolo (Stuttgart RSO, Prêtre)

A Cidade de Pedro

Roma revê-se nos seus mártires cristãos, da mesma forma que se olha ao espelho da glória pagã do Império. Nenhuma outra cidade é tão ostensivamente narcísica em relação ao seu passado; mas nenhuma outra, é verdade, se construiu em tão íntima sobreposição de heranças e testemunhos, pedras e memórias, mitos e crenças. A organicidade de Roma faz com que haja igrejas barrocas construídas sobre ruínas de basílicas paleocristãs, estas, por sua vez, erguidas sobre o que restava de templos pagãos de culto romano. E o apogeu papal, nos séculos XVI e XVII, reforçado pela reacção anti-luterana, fez todo o possível (e, até, os impossíveis, que só a arte ou a lenda tornam verosímeis) para vincar esta dupla legitimidade, a de um poder temporal que não conheceu rivais, a de um poder espiritual que se estendeu por todo o mundo.
Mártires, há-os em Roma para todos os gostos e de todas as proveniências. Mas os mártires romanos são os das origens, os que morreram em defesa da sua fé, às mãos das tropas de Nero, Vespasiano e Diocleciano, durante os três séculos que a fé cristã levou a afirmar-se na sede do império. Rasto singular este, só começado a descobrir em finais do século XVI, muito convenientemente, quando se expandia o movimento de contra-reforma desencadeado pelo concílio de Trento: em 1578, quase por acaso, encontra-se um cemitério subterrâneo na Via Salaria, com inscrições dedicadas à memória da mártir Priscila, que teria sido uma diaconisa martirizada em Roma no ano de 228.»

António Mega Ferreira, Roma, exercícios de reconhecimento

The Smiths - Asleep video

My Pretty ROSE TREE

A flower was offer'd to me,
Such a flower as May never bore:
But I said "I've a Pretty Rose-tree,"
And I passed the sweet flower o'er.

Then I went to my Pretty Rose-tree,
To tend her by day and by night;
But my Rose turn'd away with jealousy,
And her thorns were my only delight.

William Blake, Sons of Innocence and Songs of Experience

sábado, 7 de maio de 2011

O. Respighi - (2/4) Pini di Roma - II. Pini presso una catacomba (Stuttgart RSO, Prêtre)

A louçã agulha da avó.

A louçã agulha da avó.
A melopeia libélula do trevo.
O gasómetro, um tamanco,
a serpentina enrolada,
tralha, vassoura.
Um trino o alinhavo e o dedal.
Sótão, traje de cassa.

Insanável tesouro. Uma pomada.
Apronto-lhe a tisana e a botija.
Remendo o penteado ralo.

A eito uma cancela.
o afinco do rebanho rumina.
Um atavio cingiu-a.
Cera na lápara nogueira.
Assoma a brandura e afugenta.
Fareja na alvenaria.
Aproxima e empurra-te,
vaivém, candil, ataúde.

Bolo da sertã em banha
e o perfeito, de farinha cártama.
O arcaico miolo,
a indolente claraboia,
o porte do ganso na capoeira.

Almofariz envernizado,
a mó plana de rebolo
rala a cevada e o milho,
a broa meada na camilha.
A sorça a vinho e alho,
a pimenta, o louro, o colorau,
uma tira de pimento queimão
amainam no fumeiro.

Almenar de folhelho,
bulício soalheiro do curral.
A alpedrada precede o louceiro.
Toucinho na salmoura,
salpicão, paio, farinheira.
Tulha e grinalda.
A perruma de farelo.
Na seara do centeio
a relha dentada de falquejo.

A monda da nabiça na açorda,
o móvel da copa delimita a cozinha
e o perdão.

Joaquim Manuel Magalhães, Um Toldo Vermelho

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Luca Carboni - Persone Silenziose

20 novembre

«La verità del motto «Rinunciate alla terra e la terra vi sará data per soprammercato» consite in ciò: che avendo rinunciato a tutto, giganteggiano le picole cose che ancora ci restano. È un modo, insomma, di estrarre il sugo dalle minime cose solitamente trascurate.
E poi c'è questo, per gli altri il valore delle cose che esse stessi ci negano, è segnato in gran parte dalla nostra avidità di possederle. Che noi guardiamo da un'altra parte, e subito i proprietari delle cose se le vedranno invilire tra le mani, e ce le tireranno dietro.
Questo per la sapienza mondana. Ma siccome la sentenza vuole avere un riferimento mistico, ne consegue molto male per il misticismo. Che anche Dio faccia il valore delle sue creazioni secondo che noi le desideriamo o meno? Un Dio col complesso d'inferiorità: chi l'avrebbe mai detto?»

Cesare Pavese, Il Mestiere di vivere

V. Russia e Comunismo

«Il contrasto di individualismo economico ed economia regolata, di capitalismo e socialismo, e l'altro politico di liberalismo e comunismo hanno preso, or, la forma di un dibattito intorno alle condizioni della nuova vita russa, se siano paradisiache o infernali, tollerabili o intollerabili, se indirizzate a un sicuro avvenire o andanti incontro a un necessario rivolgimento, e, per conseguenza, se da prendere a modello o da scansare. Dai libri il dibattito si versa nella quotidiana conversazione, e in quasi tutti i cervelli si agitano fantasmi di diverse sembianze, ammirati e aborriti, invocati o deprecati; il sì e il no si oppongono recisi e tenzonano, ma poco fruttuosamente. In effetto, la nuova forma del problema non è una nova forma, ma una difformazione, un miscuglio di questioni eterogenee, l'immaginazione che prende il luogo del concetto, e la coda messa al posto del capo. Quali siano le condizioni della Russia odierna è una questione storica; quale sia il carattere dell'ideale liberale e qual del comunistico è una questione teorica, di etica e filosofia dello spirito; e dalla prima non v'ha modo di passaggio alla seconda, non si può dedurre niente per la seconda: la prima riguarda una materia da interpretare, la seconda una ricerca di criteri interpretativi, ed è chiaro che quel che dev'essere interpretato, non può diventare, esso, criterio d'interpretazione. Le buone o cattive condizioni della Russia non dimostreranno né la bontà né la malvagità del comunismo come ideale, ma mostreranno soltanto quello che il popolo russo è in uno stadio del suo svolgimento. Quanto all'utilità dell'economia individualistica e di quella regolata, del capitalismo e del socialismo o come altro si chiamino, non tratta neppure di una questione storica, ma di una questione tecnica, la cui soluzione varia secondo luoghi e tempi, e secondo luoghi e tempi è più o meno parziale. Distinguiamo, dunque, i tre problemi, e risparmieremo voce e fiato, il che sará meglio per tutti. Sulla interpretazione storica degli avvenimenti russi dal 1917 in poi cominciamo ad abbondare libri di indagatori ed osservatori seri e onesti, solleciti d'intendere il processo obiettivo e le forze che lo hanno mosso e lo muovono. I tentativi di economia regolata non mancano quasi in nessun paese e in taluno sono molteplici ed estesi, come non mancano le richieste opposte di una ripresa liberistica; e tutto ciò è politica, e politica in atto. Ma, circa il carattere dell'ideale comunistico e di quello liberale, quando lo si riporta alla meditazione del filosofo e dello storico, si scorge il grosso errore nel quale di solito ci si lascia impigliare, e non solo dai sostenitori di una parte, ma anche da quelli dell'altra. L'errore consiste in ciò che si prendono i due princìpi, che animano i due diversi ideali e reggono i due diversi sistemi, quello della libertà e quello della eguaglianza, e, mettendoli sullo stesso piano, si cerca di battere l'uno con l'altro, di scacciare l'uno per l'altro. Ora, né i due princìpi stanno sullo stesso piano, né l'uno potrà mai soppiantare l'altro. L'umanità ha sete di eguaglianza, che è ciò che si chiama giustizia; e il lavoro dell'eguagliare e di assidere sempre più largamente la giustizia è il lavoro incessante della legislazione e della civiltà. Ma non meno l'umanità ha bisogno della disuguaglianza, di diversità nelle attitudini, di differenziazione sociale, dell'individuo che accette e difende l'esistente e di quello che non lo accetta e che lo sovverte, del contrasto tra conservatori e rivoluzionari in tutti i campi, dal campo del pensiero al campo della politica; ha bisogno, insomma, di tutte le cose, che formano la storia, e che si rispecchiano nella concezione liberale, sommamente storica. La quale storia, senza dubbio, non sta sullo stesso piano, ma sta più in su del bisogno di eguaglianza, e lo soddisfa volta per volta, come può, come le conviene pei suoi stessi fini di innalzamento dell'umanità, e sempre più largamente ma sempre limitatamente, perché non si può pensare che quello venga in modo pieno e assoluto attuato, senza pensare, per assurdo, che con ciò la vita si arresterebbe, né varrebbe a sostituirla il vagheggiato meccanismo degli eguali, che è un'astrazione e non è una possibilità.
Perché rinnovo questi schiarimenti e queste distinzioni? Per la vana speranza di ottenere che «eguaglianza» e «libertà» non siano, come si usa, né parallelizzate né contraposte, ma concepite nella necessaria loro relazione funzionale, e che gli uni smettano dal negare l'idea  di libertà, gli altri quella di eguaglianza. Dico vana speranza, perché i ragionatori ad orecchio, dominati dalle passioni e dell'immaginazione, sono legione; e gli spiriti avveduti, gl'intelletti critici, le menti comprensive sono pochi. Ma, in ogni caso, è bene che questi pochi tengano ben chiaro e presente in che consiste l'errore, tra ingenuo e sofistico, che ha avuto corso nei secoli e ora sembra riasceso ai sommi onori.»


Benedetto Croce, Dal libro dei pensieri

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Debussy - Le Martyre de Saint Sébastien (I)

The Base of All Metaphysics

And now gentlemen,
A word I give to remain in your memories and minds,
As base and finale too for all metaphysics.

(So to the students the old professor,
At the close of his crowded course.)

Having studied the new and antique, the Greek and Germanic
         systems,
Kant having studied and stated, Fichte and Schelling and Hegel,
Stated the lore of Plato, and Socrates greater than Plato,
And greater than Socrates sought and stated, Christ divine having
         studied long,
I see reminiscent to-day those Greek and Germanic systems,
See the philosophies all, Christian churches and tenets see,
Yet underneath Socrates clearly see, and underneath Christ the
         divine I see,
The dear love of man for his comrade, the attraction of friend to
         friend,
Of the well-married husband and wife, of children and parents,
Of city for city and land for land.

Walt Whitman, Calamus

Anna Stephany - L'heure espagnole - Ravel

Portugal

«Mais do que nunca, a Europa tem agora essa vocação de universalidade, e podemos pensar a nossa cultura, a cultura portuguesa, contrariamente àquilo que a Geração de 70 pensava, ao considerar a cultura apenas a mais alta, a cultura-conceito, a cultura científica, e que nos separava dos outros porque nós não estávamos à altura das criações. Tudo isso desapareceu. Um coisa curiosa foi que quando os povos mais adiantados da Europa entraram em contacto com o Novo Mundo - como nós, que fomos os primeiros - a maioria deles tinha uma consciência extrema da superioridade humanística cultural. Tal como a própria Grécia considerava aqueles que não falavam grego, os outros foram vistos primeiro como bárbaros, selvagens, como se dizia. Ora, quando lemos a carta de Pero Vaz de Caminha ficamos muito admirados porque os portugueses não se espantaram com coisa nenhuma. Contrariamente àquilo que aconteceu com os conquistadores espanhóis, os portugueses nunca duvidaram que aqueles sujeitos - sobretudo as sujeitas - que eles encontraram fossem seres humanos: não só eram seres humanos, como eram seres humanos maravilhosos. Começou aí uma espécie de leitura que vai criar muitas desilusões a uns e a outros, mas na verdade podemos considerar uma benção o facto de essa nossa espécie de inocência - nossa, dos portugueses, menos hipercultivados e sofisticados em relação ao que já era a grande cultura europeia -, o facto de essa nossa ignorância divina não ter excluído da humanidade aqueles primeiros sujeitos com que nos encontrámos. (...)
Por isso eu acho que nós não temos de nos espantar de nos termos oferecido para colaborar nesta celebração da cultura europeia, que já não é a cultura europeia mitificada, hegemónica e hiperbólica, na sua pretensão de de ser o paradigma universal, da Geração de 70, que eu tanto admiro, mas que é qualquer coisa de mais modesto e ao mesmo tempo mais sábio. Eu penso que a nossa própria modéstia é uma riqueza em relação àquilo que outros países da Europa vivem, egocentricamente, pensando que a sua cultura é a cultura do paradigma universal.»

Eduardo Lourenço,Pequena meditação europeia

terça-feira, 3 de maio de 2011

Va' pensiero... Riccardo Muti speaking about Italian culture, Opera di Roma, 12.03.2011

Ella Fitzgerald - All the Things You Are

242

«Educação milagrosa. O interesse pela educação só adquirirá grande força a partir do momento em que se renunciar à fé num deus e nao sua solicitude: tal como a terapêutica só pôde florescer quando cessou a crença em curas milagrosas. Até agora, porém, toda a gente acredita ainda na educação milagrosa: é que foi da maior desordem, da confusão dos fins, do desfavor das circunstâncias, que se viu surgir os homens mais fecundos, mais poderosos; pois como seria isso natural? Ora, em breve,também nesses casos se olhará mais de perto, se examinará mais cautelosamente: e nunca aí se descobrirá milagres. Em condições idênticas, numerosas pessoas perecem continuamente; o único indivíduo salvo, em compensação, tornou-se em geral mais forte, porque suportou essas más circunstâncias, graças a uma inquebrantável energia inata, e ainda exercitou e aumentou essa energia: assim se explica o milagre. Uma educação, que já não creia em milagres, terá de tomar em conta três coisas: primeiro, quanta energia se herda?; segundo, por que meio ainda pode ser despertada nova energia?; terceiro, como pode o indivíduo ser adaptado àquelas exigências tão excessivamente variadas da civilização, sem que estas o perturbem e despedacem a sua unidade - em suma, como pode o indivíduo ser incluído no contraponto da cultura privada e pública, como pode ele, ao mesmo tempo, dirigir a melodia e acompanhar como melodia?»

Nietzsche, Humano, demasiado humano

segunda-feira, 2 de maio de 2011

No Longer Very Clear




No longer that I can no longer remember very well
the time when we first began to know each other.
However, I do remember very well
the first time we met. You walked in sunlight,
holding a daisy. You said, "Children make unreliable witnesses."

Now, so long after that time,
I keep the spirit of the throbbing still.
The ideas are still the same, and they expand
to fill vast, antique cubes.

My daughter was reading one just the other day.
She said, "How like pellucid statues, Daddy. Or like a...
an engine."

In this house of blues the cold creeps stealthily upon us.
I do not dare to do what I fantasize doing.
With time the blues congeals into roomlike purple
that takes the shape of alcoves, landings...
Everything is like something else.
I should have waited before I learned this.


John Ashbery, Notes form the air, selected later poems

Sofrimento

«- O sofrimento faz vir ao de cima o que há de mais baixo, de mais covarde no homem. No sofrimento há uma etapa a ultrapassar, para lá da qual nos tornamos uma besta: sacrificaríamos a nossa alma e, sobretudo, a do próximo, por um naco de pão, por um minuto de calor, por um segundo de esquecimento e de sono. Os santos são aqueles que morrem antes do fim da história. Os outros, os que vão até ao fim do seu destino, já não ousam olharem-se no espelho, com medo que ele reflicta a sua imagem interior: a de um monstro que ri das mulheres infelizes e dos santos que estão mortos...»

Elie Wiesel, Dia

domingo, 1 de maio de 2011

STABAT MATER ROSSINI CUIUS ANIMAM

Ornamento e Delitto

«L'embrione umano attraversa nel corpo materno tutte le fasi di svilupo deli regno animale. Quando l'uomo nasce, le sue impressioni sensoriali sono uguali a quelle di un cucciolo. La sua infanzia passa attraverso tutte le trasformazioniche seguono la storia dell'umanità. A due anni egli vede le cose come un Papua, a quattro come un antico Germano, a sei come Socrate, a otto come Voltaire. Quando ha otto anni acquista coscienza del colore violetto, il colore che fu scoperto nel secolo diciottesimo, poiché prima la viola era azzurra e la murice era rossa. Il fisico ci indica oggi certi colori dello spettro che già possiedono un nome, ma la cui conoscenza è riservata alle generazioni future.
Il bambino à amorale. Anche il Papua lo è, per noi. Il Papua uccide i suoi nemici e se li mangia. Non è un delinquente. Se però l'uomo moderno uccide e divora qualcuno,è un deliquente o un degenerato. Il Papua copre di tatuaggi la propria pelle, la sua barca, il suo remo, in breve ogni cosa che trovi a portata di mano. Non è un delinquente. Ma l'uomo moderno che si tatua è un delinquente o un degenerato. Vi sono prigioni dove l'otanta per cento dei detenuti à tatuato. Gli individui tatuati che non sono in prigione sono delinquenti latenti o aristocratici degenerati. Se avviene che un uomo tatuato muoia in libertà, significa semplicemente che è morto qualche anno prima di aver potuto compiere il proprio delitto.
L'impulso a decorare il proprio volto e tutto quanto sia a portata di mano è la prima origine dell'arte figurativa. È il balbettio della pittura. Ogni arte è erotica.
Il primo ornamento che sia stato ideato, la croce, era di origine erotica. Esso fu la prima opera d'arte, la prima manifestazione d'arte che il primo artista scarabocchiò su una parete, per liberarsi di una sua esuberanza. Un tratto orizzontale: la donna che giace. Un trato verticale: il maschio che la penetra. L'uomo che creò questo segno provava lo stesso impulso di Beethoven, era nello stesso cielo nel quale Beethoven creò la Nona.»

Adolf Loos, «Ornamento e Delitto», in Parole nel vuoto