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Oeiras, Portugal
Aluno e Professor. Sempre aluno.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Killing Joke - Love Like Blood

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

17.

Referes-te à humildade. Rostos apaziguados
em silencioso teu entendimento inclinados.
Assim andam jovens poetas ao entardecer
nas áleas dos jardins mais afastados.
Assim ficam os camponeses à volta do corpo em prece
quando na morte uma criança se perdeu,
e é ainda a mesma realidade que acontece:
algo desmedido sucedeu.

Quem de ti pela primeira vez se apercebe
pelo vizinho e pela hora é incomodado,
anda sobre o teu rasto inclinado
e como carregado dos anos que recebe.
Só mais tarde se aproxima da natureza
e pelos ventos e as distâncias é tocado
ouve-te, sussurrado pelo campo com beleza,
vê-te, pelas estradas cantado,
e não mais te pode esquecer,
e tudo é apenas o teu manto a se estender.

Para ele és novo e próximo e bom rapaz
e como uma viagem maravilhoso,
que ele em silenciosos barcos ditoso
num grande rio faz.
O país é amplo, envolto em ventos, aplanado,
a grandes céus abandonado
e a antigas florestas submetido.
As pequenas aldeias que se vão aproximando,
de novo como repicar de sinos desaparecendo
e como um ontem e um hoje vivido
e como tudo o que fomos vendo.
Mas junto ao curso deste rio enorme
sempre cidades es estão a levantar
e vêm como em bater de asas conforme
à viagem festiva se juntar.

E por vezes o barco a sítios vem,
que solitariamente, sem aldeia nem cidade,
algo esperam junto às ondas, com serenidade,
aquele que pátria não tem...
Para esses aí pequenos carros há
(cada um com três cavalos à frente já),
que sem fôlego correm para o entardecer
num caminho que acabou por se perder.

Rainer Maria Rilke, O Livro de Horas

sábado, 26 de outubro de 2013

REMEMBERING JULIA - Ingrid Chavez & David Sylvian

Amor e 'l cor gentil sono una cosa,

Amor e 'l cor gentil sono una cosa,
sì come il saggio in suo dittare pone,
e così esser l'un sanza l'altro osa
com'alma razional sanza ragione.

Falli natura quand'è amorosa,
Amor per sire e 'l cor per sua magione,
dentro la qual dormendo si riposa
tal volta poca e tel lunga stagione.

Bieltate appare in saggia donna pui,
che piace a gli occhi sì, che dentro al core
nasce un disio de la cosa piacente;

e tanto dura talora in costui,
che fa svegliar lo spirito d'Amore.
E simil face in donna omo valente.

Dante Alighieri, Vita Nuova

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Diana Ross & the Supremes - TCB - STOP! in the name of love-Kee

É por Ti que Escrevo

É por ti que escrevo que não és musa nem deusa
mas a mulher do meu horizonte
na imperfeição e na incoincidência do dia-a-dia
Por ti desejo o sossego oval
em que possas identificar-te na limpidez de um centro
em que a felicidade se revele como um jardim branco
onde reconheças a dália da tua identidade azul
É porque amo a cálida formosura do teu torso
a latitude pura da tua fronte
o teu olhar de água iluminada
o teus sorriso solar
é porque sem ti não conheceria o girassol do horizonte
nem a túmida integridade do trigo
que eu procuro as palavras fragrantes de um oásis
para a oferenda do meus sangue inquieto
onde pressinto a vermelha trajectória de um sol
que quer resplandecer em largas planícies
sulcado por um tranquilo rio sumptuoso

António Ramos Rosa, in O Teu Rosto

sábado, 19 de outubro de 2013

Cecilia Bartoli ~ "Lascia ch'io pianga"

Morrer

Quando morrer, quero que seja de repente, sem ninguém a assistir. Quero que o meu corpo se deixe levar pela terra húmida e que rapidamente se dê em alimento aos bichos de terra. Não quero que o meu corpo apodreça em vida nem que o meu cérebro me traia. Chegado o momento, quererei morrer, porque não sou bíblico nem o quero ser. Por isso terei uma duração normal.

BEACH HOUSE - "MYTH" (OFFICIAL TRACK)

Distância

«Dois dias de viagem apartam um homem - e especialmente um jovem que ainda não criou raízes firmes na vida - do seu mundo quotidiano, de tudo quanto costuma considerar os seus interesses, cuidados e projectos; apartam-no muito mais do que  esse jovem imaginava no fiacre que o levava à estação. O espaço que, girando e fugindo, se punha de permeio entre ele e a estação de origem, desenrolou forças que geralmente se julgam privilégio do tempo; de hora em hora o espaço determina  transformações íntimas, muito parecidas com aquelas que o tempo origina,  mas que,  de certo modo, as ultrapassam.
Tal qual o tempo, o espaço gera o olvido; fá-lo porém, desligando a pessoa humana das suas contingências e pondo-a num estado livre, primitivo; chega até mesmo a transformar, num só golpe, um pedante ou um burguesote numa espécie de vagabundo. Dizem que o tempo é como o rio Lete; mas também o ar de paragens longínquas representa uma poção semelhante, e o seu efeito, posto que menos radical, não deixa de ser mais rápido.»

Thomas Mann, A Montanha Mágica

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Chromeo - Over Your Shoulder

Ver

«E ver é ter a sensação dum objecto, pois, entre ele e a nossa sensibilidade, estabeleceu-se um determinado parentesco. O vibrar dos nossos nervos corresponde à causa que os põe em vibração. O peso de uma pedra e o nosso esforço para a mover fundem-se, por assim dizer, num só fenómeno. Se a sensação luminosa é a própria luz, a imagem de uam rosa que se nos pinta, na memória, é como se fosse ela mesma, desabrochada, na haste, à luz do sol. E se, porventura, dofre qualquer mudança, é para, mostrando-nos a rosa que é, nos mostrar ainda a Flor, a Deusa escondida neste nome: Primavera. E entre a imagem da rosa e a sua ideia, há intimidade que existe entre a rosa carnal e o seu retrato na memória. A ideia duma cousa é uma espécie de fotografia da mesma, desmaterializada ou reduzida à sua última abstracção. Pensar é ver em abstracto; mas esta visão nunca se liberta duma certa substância plástica. No conceito de grandeza, por exemplo, avulta o Himalaia; no de pequenez, gravita um átomo de pó; e no de distância brilham as últimas estrelas.»

Teixeira de Pascoaes, Santo Agostinho

terça-feira, 24 de setembro de 2013

PJ Harvey - A Place Called Home

Este foi o nosso último abraço. E quando,

Este foi o nosso último abraço. E quando,
daqui a nada, deixares o chão desta casa
encostarei amorosamente os lábios ao teu corpo
para sentir o sabor desse beijo que hoje não
daremos. E entã, sim, poderei também eu
partir, sabendo que, afinal, o que tive da vida
foi mais, muito mais, do que mereci.

Maria do Rosário Pedreira

Anna Calvi - "Eliza" (Official Music Video)

Estar Só é Estar no Íntimo do Mundo

Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo

António Ramos Rosa, in Poemas Inéditos 

Blood Orange - Chamakay

My Erotic Double

He says he doesn't feel like working today.
It's just as well. Here in the shade
Behind the house, protected froma street noises,
One can go over all kinds of the old feeling,
Throw some away, keep others.
                                               The wordplay
Between us gets very intense when there are
Fewer feelings around to confuse things.
Another go-round? No, but the last things
You always find to say are charming, and rescue me
Before the night does. We are afloat
On our dreams as on a barge made of ice,
Shot through with questions and fissures of starlight
That keep us awake, thinking about the dreams
As they are happening, Some occurrence, You said it.

I said it but I can hide it. But I choose not to.
Thank you. You are a very pleasant person.
Thank you. You are too.

John Ashbery 

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Pino Daniele - Dubbi Non Ho (Video clip)

Renascimento

O bárbaro pintor borrou,
Com seu pincel sonolento,
A tela dum génio, sua marca
Gravou nela torpemente.

Mas a tinta intrusa, cos anos,
Em escamas velhas se esboroa;
E surge a obra à nossa vista
Na sua beleza de outrora.

Assim se apagam as ilusões
Da minh'alma martirizada,
E nela surgem as visões
Da manhã primeva e clara.

Aleksandr Púchkin

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Salmo

Não foi por mim que deixaste que te pendurassem na cruz
não foi por mim
que te deixaste matar
Não foi por mim que deixaste que te insultassem e cuspissem
não foi por mim
que morreste
Ninguém se deixa matar assim
para cumprir a vontade do pai
- Pai Pai faça-te a tua vontade! -
Ninguém se deixa matar assim
porque um dia alguém se lembrou de oferecer uma maçã...
Não sei quantas maçãs já me ofereceste
sem que um anjo com uma espada de fogo viesse para nos expulsar
do nosso apartamento de três assoalhadas
Não foi por mim que tu morreste
e ressuscitaste ao terceiro dia
É uma herança demasiado pesada
para se deixar a alguém
que só viria a nascer dois mil anos depois
e cujo único pecado foi nascer
Não foi por mim nem por ti nem por ninguém
que tu morreste
e continuas a morrer todos os dias
Há quem não saiba fazer outra coisa senão morrer
e voltar a morrer
Nem a vontade do Pai te serve de alibi
Não foi por mim que tu morreste
embora eu seja capaz de morrer por ti

Jorge Sousa Braga, O Novíssimo Testamento e outros poemas

terça-feira, 30 de julho de 2013

stereo total - l amour a trois

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Fim

«Bato à porta de um homem que sabe que vai morrer. Espero que o homem me diga como se sente um homem que sabe que vai morrer. Preparou a família para que o luto deles resultasse menos difícil. Despediu-se de quem queria despedir-se.
O enfermeiro faz-lhe a barba para que se mantenha digno apesar do pijama, das fraldas, da barba. O  homem olha-me, a estranha, com os olhos esbugalhados durante uns segundos, e a seguir revira-os. Não cheguei a tempo. O homem já não pode falar. Está apenas concentrado em morrer, e parece ser uma tarefa que exige um tremendo esforço.
Manual de sobrevivência:
2 - Pensar na morte com detalhe. Não pensar no todo.»

Susana Moreira Marques, Agora e na hora da nossa morte

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Riceboy Sleeps - Happiness - (26 of 31)

La voce

Ogni giorno il silenzio della camera sola
si richiude sul lieve sciacquío d'ogni gesto
come l'aria. Ogni giorno la breve finestra
s'apre immobile all'aria che tace. La voce
rauca e dolce non torna nel fresco silenzio.

S'apre come il respiro di chi sia per parlare
l'aria immobile, e tace. Ogni giorno è la stessa.
E la voce è la stessa, che non rompe il silenzio,
rauca e uguale per sempre nell'immobilità
del ricordo. La chiara finestra accompagna
col suo palpito breve la calma d'allora.

Ogni gesto percuote la calma d'allora.
Se suonasse la voce, tornerebbe il dolore.
Tornerebbero i gesti nell'aria stupita
e parole parole alla voce  sommessa.
Se suonasse la voce anche il palpito breve
del silenzio che dura, si farebbe dolore.

Tornerebbero i gesti del vano dolore,
percuotendo le cose nel rombo del tempo.
Ma la voce non torna, e il susurro remoto
non increspa il ricordo. L'immobile luce
dà il suo palpito fresco. Per sempre il silenzio
tace rauco e sommesso nel ricordo d'allora.

Cesare Pavese, Lavorare stanca

domingo, 14 de julho de 2013

Take Me To The River - Talking Heads

Reverso

Eu sei que me vais encontrar, morte,
em cada senda de atormentadas almas,
em cada falésia onde contive o suicídio e as
lágrimas,
eu sei que em cada recanto, em cada ferida
aberta e luminosa,
há um labirinto sem fim,
um jogo de nocturnas deambulações, uma
embriaguez ao acaso de tudo o que nasce e
nascendo
começa a perder-se, devastando as páginas
com os seus insectos negros,
as suas letras que se unem sempre aquém do
pensamento,
tal como outrora se uniam os amantes em seu
jardim.

José Agostinho Baptista, Agora e na hora da nossa morte

sábado, 13 de julho de 2013

The Drums - Days

Verdade

O intelecto finito não pode, pois, atingir com precisão a verdade das coisas através da semelhança. Com efeito, a verdade não é susceptível de mais nem de menos e consiste em algo de indivisível, não a podendo medir com precisão nada que não seja o próprio verdadeiro, tal como o que não é círculo não pode medir o círculo, cujo ser consiste em algo de indivisível. Assim, o intelecto que não é a verdade jamais compreende a verdade de modo tão preciso que ela não possa ser compreendida de modo infinitamente mais preciso, pois ele está para a verdade como o polígono para o círculo: por mais ângulos que tenha inscritos, tanto mais semelhante [será] ao círculo, mas nunca será igual, ainda que se multipliquem os seus ângulos até ao infinito, a não ser que se resolva na identidade com o círculo.
É, pois, evidente que nada mais sabemos do verdadeiro a não ser que, tal como é, é incompreensível com precisão, comportando-se a verdade em relação a si como necessidade absoluta, que não pode ser nem mais nem menos do que aquilo que é, ao passo que o nosso intelecto se comporta como possibilidade. Portanto, a quididade das coisas, que é a verdade dos entes, é inatingível na sua pureza, e, procurada por todos os filósofos, não foi, no entanto, tal como é, encontrada por nenhum. E quanto mais profundamente doutos formos nesta ignorância, tanto mais nos aproximaremos da própria verdade.

Nicolau de Cusa, A Douta Ignorância 

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Bach, Variaciones Goldberg BWV 988. András Schiff, piano

Art gives us form and clarity and grace,

Art gives us form and clarity and grace,
Nature a singing-freshness, pulse and pace.
Dear András, in your natural art,one thing
Rings through the varied air - the urge to sing.
A constant tonic was what Bach once drew.
So, as you pour it, is this draught from you.

So, as I drink it, does my mind grow clear,
Clear too my dormant heart, my deadened ear.
How could I,like poor Goldberg, hope to sleep?
I laugh, surprised ny pleasure, and I weep.
For all of this my thanks: for storm, for calm,
For all that music is, both barb and balm.

Vikram Seth

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Pat Metheny Group - Imaginary Day Live_Heat Of The Day

Navio Naufragado

Vinha dum mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves de cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos dos videntes.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 7 de julho de 2013

PJ Harvey Rid of Me

234.

O cameretta, che già fosti un porto
a le gravi tempeste mie diurne,
fonte se' or di lagrime notturne,
che 'l dì celate per vergogna porto!

O letticciuol, che requie eri e conforto
in tanti affanni, di che dogliose urne
ti bagna Amor, con quelle mani eburne,
solo vèr' me crudeli a sì gran torto!

Né pur il mio secreto, e 'l mio riposo,
fuggo, ma più me stesso, e 'l mio pensero
che, seguendol talor, levommi a volo;

e 'l vulgo, a me nemico, et odioso
(chi 'l pensò mai?), per mio refugio chero:
tal paura ho di ritrovarmi solo.

Francesco Petrarca, Rime

sábado, 6 de julho de 2013

Bjork & PJ Harvey perform 'I Can't Get No Satisfaction'

Em tormentos cruéis, tal sofrimento

Em tormentos cruéis, tal sofrimento,
Em tão contínua dor, que nunca aliva,
Chamar a morte sempre, e que ela, altiva,
Se ria dos meus rogos, no tormento;

E ver no mal que todo entendimento
Naturalmente foge, e quanto aviva
A dor mais o vagar da alma cativa,
A quem não fará crer que é tudo um vento?

Bem sei uns olhos que tem toda a culpa,
e são os meus, que a toda a parte vem
Após o que vem sempre e os desculpa.

Ó minhas visões altas, meu só bem,
Quem vos a vós não vê, esse me culpa,
E eu sou o só que as vejo, outrem ninguém.

Francisco de Sá de Miranda 

Gisela João | Aracelia

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Vulcão

Embora não o digas
eu sei que ao abrir e fechar a porta
as chaves da minha amargura te acordam.
Não é uma sirene,
o uivo do lobo,
nem sequer um estrondo que começa nos
alicerces
e sobe vertiginosamente para as têmporas.
É como uma pancada surda que acontece
ao longe,
nos santuários do fogo,
e vem,
martelando os seus tambores ardentes,
atirando a lava que desce para o pavor
dos filhos,
para a sua música de sinos arrancados ao
céu.

José Agostinho Baptista

quinta-feira, 4 de julho de 2013

[HD] Jim James - State of the Art (A E I O U )

230.

«As pessoas não o pensam, mas sabem-no, decerto para o saberem melhor. As vidas têm o tamanho que o seu ritmo lhes impõe. Há-as de ritmo lento e de ritmo acelerado. E há assim um ponto em que se atinge o limite que esse ritmo determina. Há os que o atingem ainda novos, e os que o atingem apenas na velhice. É o ponto máximo para lá do qual a vida já não tem sentido. Mas a morte nem sempre está atenta a essa relação. Assim alguns se matam para se acertarem com ela, por na sua distracção se ter atrasado. Mas outros morrem,  porque a vida se encarregou de efectuar a coincidência. Os velhos sabem-no melhor que ninguém, porque se lhes torna evidente  que atingiram o limite. Mas mesmo os novos podem perceber isso. Porque há um momento em que sentem que o que se segue já está a mais. Mas há também os que não dão conta da coincidência e se distraem com a morte. E são os póstumos a si mesmos.»

Virgílio Ferreira, Pensar


She & Him- I Could've Been Your Girl

terça-feira, 2 de julho de 2013

Inactualidade

«(...) A linguagem histórica e psicológica torna-se um instrumento para comunicar uma visão inactual. Visão que habitualmente se mostra desagradável ao leitor, imediatamente pelo facto de quem a exprime não poder deixar de  prescindir das imagens, dos conceitos e dos personagens do presente. Nietzsche evita esta insídia (isto é, o desinteresse pelos contemporâneos), e fingindo-se imerso na actualidade, efectua, pelo contrário, e precisamente de acordo com essa imersão, a distanciação em relação ao presente. É este até um dos seus segredos, uma das suas realizações mais misteriosas: a arte de atrair mediante a inactualidade vai-se perfeiçoando precisamente neste período. Na época de Basileia, Nietzsche havia procurado exprimir uma posição inactual por um caminho mais directo, evocando como modelo a experiência remota e irrecuperável da tragédia. A ruptura mais radical com o presente era o pressuposto daquela fuga em direcção à Grécia antiga, mas ofuscando a autenticidade daquele ímpeto surgia logo a sua obscura mistura com a musicalidade wagneriana, com qualquer coisa que, e será o próprio Nietzsche a explicá-lo mais tarde, representa naquele momento a quintessência da «actualidade». Separar-se do próprio tempo por se estar demasiado afeiçoado a ele é o que seria lícito dizer dos escritos de Basileia, do mesmo modo que para o período que se está a examinar parece possível  a seguinte caracterização: mantendo um olhar vivo fixado no presente, afastar-se dele em profundidade.
Aqui pode falar-se de «Nietzsche como educador». A vida do homem é considerada, com os olhos de Schopenhauer, como um imutável dado natural, mas o seu manifestar-se no tempo, a história, afinal de contas, não é aparência, antes a única realidade que nos foi concedida. Nietzsche procura separar-se a si e aos seus leitores do próprio tempo, coisa própria do filósofo, sendo mesmo aquilo que caracteriza o olhar filosófico. Mas aquilo que tem realidade é viver e julgar este tempo presente, não mediante as representações do presente e segundo a configuração dos problemas dada no presente, mas tomando sobre si, ao fazer isto, todo o «peso» do passado; ou seja, afastar-se recuando séculos e milénios, e ganhar com este mergulho uns olhos novos, os olhos límpidos do passado.»

Giorgio Colli, Escritos sobre Nietzsche 

sábado, 29 de junho de 2013

Portishead - Roads

do tamanho da mão faço-lhes o poema da minha vida,

do tamanho da mão faço-lhes o poema da minha vida,
                                                      agudo e espesso,
pois aproveitou do que seria mênstruo,
e crepita agora,
o poema das mães conjuntas quando, ainda analfabetos,
procuramos as putas futuras,
e estremecemos às vezes de sacra folia,
trançados entre as coxas,
debaixo das bocas habilíssimas,
límpidos, loucos,
e são linhas sem tropeço, de osso, nervo, sangue, sopro
e qual a matéria, e a razão, e a coesão, a força, interna
                                                 do capítulo do assombro?
dans l'ivresse,
e então penso: isto é assim:
da exacerbada cantiga das mães a gente tem
o movimento que imita a terra com seus elementos, sem
            ministérios do tempo, a aguarrás, o sal grosso, a tinta
            das rosas
- e é tudo quando se pode aprender até que a noite venha
                                                                 e desfaça,
a noite amarga

Herberto Helder

Laura Marling - Master Hunter

Idioma

«O idioma demoníaco é para o poeta o elemento insurrecto, a força que está para além do bem e do mal: afastem de mim a inocência (truques, ele que perde a ferro e esforço, poema trabalhado a energia alternativa, / a fervor e ofício): a vida inteira para fundar um poema,/ a pulso. A mão que é devorada pelo poema, o antigo, o novíssimo, outra versão do elemento insurrecto, demoníaco: O homem não é uma criatura entre bem e mal. Nem a mão esquerda de Deus a conhece, se o poeta escreve Deus, fala com Deus, é porque acabou de reconhecer a potência, a unidade rítmica, mas Deus não se debruça na canção, destroça / a cadência. Aquele que é queimado e grita enquanto sente o fogo pertence à substância fogo, É isso: Aquele que disse; /  eu tenho a temperatura de Deus - era um louco meteorológico. Assim que Deus com um dedo produz um electrochoque. Ser perseguido pelos deuses é uma boa prova da sua existência (diz Kierkegaard via Aristófanes).
Uma ordem gramatical para os elementos: água, fogo, cristal - o através, atrás, em. A terra essa está na casa, é mais do que um elemento, através dela abre-se o espaço da beleza elementar.»

Maria Filomena Molder, «Relação da Palavra Beleza em A Faca não corta o fogo de Herberto Helder, in Textos Pretextos  

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Riding Pânico - Dance Hall

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Um dia não muito longe/ não muito perto

Às vezes sabes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim
Um dia não muito longe não muito perto
um dia muito normal um dia quotidiano
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te que já não tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada para te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto?

Ruy Belo, Homem de palavra[s]

domingo, 16 de junho de 2013

noiserv - "Today is the same as yesterday, but yesterday is not today"

1.º Presidente Eleito

Sucessivo trambolhão viável.
Rugido de terrinha,
10 de Junho abundante.

Protótipo de acervo global,
atenazado, objurgatório.

Auréola de bairro-de-lata.
O malhão do empresário e do trabalhador.

Desagua e debica gajada
função que premedita,
bandalha.

Joaquim Manuel Magalhães, Um Toldo vermelho

sábado, 15 de junho de 2013

Savages - "Shut Up"

II

Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.

António Franco Alexandre, Quatro caprichos


quinta-feira, 13 de junho de 2013

David Lynch & Lykke Li - I'm Waiting Here

Mito

Verrà il giorno che il giovane dio sarà un uomo,
senza pena, col morto sorriso dell'uomo
che ha compreso. Anche il sole trascorre remoto
arrossando le spiagge. Verrà il giorno che il dio
non saprà più dov'erano le spiagge d'un tempo.

Ci si sveglia un mattino che è morta l'estate,
e negli occhi tumultuano ancora splendori
come ieri, e all'orecchio i fragori del sole
fatto sangue. È mutato il colore del mondo.
La montagna non tocca più il cielo; le nubi
non s'ammassano più come frutti; nell'acqua
non traspare più un ciottolo. Il corpo di un uomo
pensieroso si piega, dove un dio respirava.

Il gran sole à finito, e l'odore di terra,
e la libera strada, colorata di gente
che ignorava la morte. Non si muore d'estate.
Se qualcuno spariva, c'era il giovane dio
che viveva per tutti e ignorava la morte.
Su di lui la tristezza era un'ombra di nube.
Il suo passo stupiva la terra.

                                   Ora pesa
la stanchezza su tutte le membra dell'uomo,
senza pena: la calma stanchezza dell'alba
che apre un giorno di pioggia. La spiagge oscurate
non conoscono il giovane, che un tempo bastava
le guardasse. Né il mare dell'aria rivive
al rispiro. Si piegano le labbra dell'uomo
rassegnate, a sorridere davanti alla terra.

Cesare Pavese, Lavorare stanca 

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Jorge Palma | Portugal, Portugal

Lego

Está tudo conformado
ao triste proprietário.
Mecânicas ovelhas,
na erva de plástico,
têm pastor de pilhas
e cão pré-fabricado.
Flores marginam esse
às peças-soltas prado.
Eléctricas abelhas,
obreiras sem contrato,
daquele herbário extraem
um mel supermercado.
A malhada, no estábulo,
quase manga de alpaca
(é A VACA, sabias?),
dá leite engarrafado.
No céu (para colorir)
a nuvem, pontual,
aguarda a vez de ser
chovida no nabal,
enquanto o Sol dardeja
na eira proverbial.
Já tudo afeiçoado
ao bom do proprietário
(ervas, bichos, moral),
ele conta com os seus
e espera sempre em Deus.

(«-Deste corda ao pardal?»).

Alexandre O'Neill, A saca de orelhas

domingo, 9 de junho de 2013

Johnny Marr - The Messenger

O rasto do rasto

«Muitas vezes se disse que a experiência religiosa é a experiência de um êxodo; mas se se trata de êxodo, é provavelmente por ocasião de uma viagem de regresso. Não é sem dúvida graças a uma qualquer natureza essencial, mas o certo é que nas nossas condições de existência (Ocidente cristão, modernidade secularizada, estados de alma de fim de século preocupados com a ameaça de riscos apocalípticos inéditos), a religião é vivida como um regresso. É o retornar-se presente de qualquer coisa que pensávamos ter definitivamente esquecido, a reactivação de um rasto adormecido, o reabrir de uma ferida, o reaparecimento de um recalcado, a revelação de que aquilo que pensávamos ter sido Uberwindung (no sentido da superação, do devir verdadeiro e do pôr de lado decorrente) não é mais do que uma Verwindung, uma longa convalescença que de novo tem que acertar contas com o rasto indelével da sua doença. Se se trata de um regresso, este reaparecimento da religião não será acidental por relação com a sua própria essência? Não é como se - por uma razão histórica, individual ou social qualquer - nos tivesse acontecido simplesmente esquecê-la, afastarmo-nos dela (talvez com um certo sentimento de culpa), e como se, por uma razão igualmente fortuita, o esquecimento se tornasse agora de súbito mais raro? Mas semelhante mecanismo (haveria, neste caso, uma verdade essencial da religião que existiria algures, imóvel, enquanto os indivíduos e as gerações se limitariam a ir e vir em torno dela num movimento perfeitamente exterior e insignificante) já se tornou para nós impraticável em filosofia: se dizemos que uma tese é verdadeira, deveremos taxar de estupidez ou de absurdo todos os grandes ou menos grandes pensadores do passado que não a reconheceram como tal? O que significaria de outro modo que é de uma história da verdade que se trata (uma história do ser) não demasiado essencial quanto ao seu "conteúdo"... À luz destas considerações, parece desde já preferível a hipótese segundo a qual o reaparecimento, o regresso da religião na nossa experiência não é um dado puramente acidental que deveria ser posto de lado para nos concentrarmos simplesmente nos conteúdos que assim eis de regresso. Podemos, em contrapartida, suspeitar legitimamente de que o regresso é um aspecto (ou o aspecto) essencial da experiência religiosa.»

Gianni Vattimo, «O Rasto do Rasto», in A Religião

Anna Calvi - Suzanne and I

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Aos meus alunos do 12º ano

Este é o vosso último dia de aulas no Ensino Secundário, assim considerado de acordo com o calendário lectivo. Este é o último dia em que vos encontro nas circunstâncias específicas de uma sala de aula. Diz-se que estes dias são dias de despedida. É verdade. Por esse motivo, costumam ser feitos balanços e demais considerações acerca do passado. Neste caso seria de um passado comum que convosco tive o privilégio de partilhar.
Contudo, não é do nosso passado comum que me lembrei de vos falar hoje. Desse passado permanecerão as memórias que trazemos nas nossas lembranças e que a todos nós permitirão um dia convocar a nostalgia que nos alimenta nos momentos difíceis e que nos consolam em direcção ao futuro individual que cada um de nós tem pela frente.
O meu tópico final que hoje vos apresento, a alguns ao fim de seis anos, dirige-se ao futuro. A um futuro que, embora não tenha parecido muitas vezes, sempre esteve presente nas nossas aulas, até porque, num certo sentido, as pessoas de tenra idade ainda não têm passado e, apesar de viverem imersas num presente que fervilha, criando a ilusão de que apenas ele existe, só têm futuro.
De qualquer forma, como tudo aquilo que é de facto essencial, o futuro de que vos quero falar só pode fazer sentido se o conseguirmos contemplar de acordo com a nossa História, que o mesmo é dizer, de acordo com os valores da tradição cultural que nos molda e que, por sua vez, nós temos de moldar.
O tópico de que vos falo, enfim, é a Liberdade.
Ocorreu-me falar-vos de Liberdade, partindo de um autor antigo, de um dos maiores autores que a nossa civilização alguma vez conheceu: Dante Alighieri.
Não consigo conceber uma sociedade futura sem Liberdade e vocês serão os agentes que hão-de transformar essa sociedade.
A liberdade separa águas entre a cega escuridão infernal e a transparente alvorada “de um zéfiro oriental” que acolhe Dante e Virgílio no Purgatório. Esta é uma liberdade muito diferente daquela que nós, modernos, entendemos como tal. A nossa liberdade é uma liberdade política, assente no abuso de uma legislação ou de um poder opressor. É uma liberdade social, que resulta da necessidade e da desigualdade. É uma liberdade pessoal, não condicionada, resultante de uma realização pessoal de si, ou do prazer próprio. Falamos em liberdade de voto, de consciência, de opinião. É destes conceitos que falamos quando comumente falamos em liberdade. No entanto, quando falamos de Dante, a ideia de liberdade não é de uma liberdade de alguma coisa, mas sim de uma liberdade que provém de alguma coisa. Para Dante, a liberdade é o avesso da servidão. Numa carta dirigida aos seus contemporâneos, o autor da Commedia enuncia quatro verbos de coacção que delimitam com exactidão a ideia oposta à de liberdade. Os verbos são: dominar, obrigar, aprisionar, proibir. Para Dante, a liberdade resulta de um contraste e, por conseguinte, de um compromisso com o objectivo de ultrapassar a condição de escravidão.
Ao longo dos anos fomos lendo obras diversificadas. A literatura proporciona-nos a possibilidade de pensarmos e de, através das ideias que vamos construindo, desenharmos o nosso próprio destino, ou pelo menos de nos iludirmos perante a possibilidade de dominarmos o mundo, mesmo que esse mundo seja o do nosso quintal. Um quintal onde nos podemos sentir confortáveis, mas cuja ideia de permanência não está imune à vulnerabilidade dos tempos.
Há um par de anos, muitos pensariam impensável a supressão de direitos fundamentais a que hoje em dia vamos assistindo. De tal modo essa perda se tem processado de forma sistemática e precisa que, durante muito tempo, pareceu indolor. Contudo, com o tempo, e por via dessas perdas acumuladas, a nossa sociedade debilitou-se e a ideia de progresso imparável que durante muito tempo moldou o pensamento do cidadão comum, deu lugar a uma época de incertezas.
Não podemos dizer que não temos liberdade: de expressão, de voto, por exemplo. Contudo, o sentido do conceito de liberdade tem sido esvaziado. Vivemos num período histórico perigoso, movido pela necessidade. O homem que se quer livre é aquele que não vive da necessidade de satisfação das coisas básicas de vida. O homem que vive submerso na necessidade de satisfação daquilo que é básico passa a ter em risco, para além dos bens de satisfação imediatos, algo que é ainda mais importante: a sua dignidade.
O ponto a que chegámos requer pessoas informadas e capazes de conceber juízos críticos que proporcionem o restabelecimento de uma sociedade vigorosa e digna, e, por conseguinte, Livre.
Como podem observar, as notícias que vos trago não são as mais promissoras, porque implicam um trabalho árduo de restabelecimento de uma ordem nova, de um mundo novo em que os homens possam sentir-se de facto o centro das decisões mais importantes das suas vidas. Essa tarefa está destinada a ser cumprida pela vossa geração.
Desejo-vos coragem, tenacidade, teimosia na prossecução da tarefa.
O futuro está aí!

Resta-me agradecer a paciência que sempre tiveram para comigo e a forma sempre educada e gentil como me trataram ao longo destes anos em que a escola foi sempre um lugar muito agradável para mim.

domingo, 2 de junho de 2013

Noah And The Whale - Give A Little Love

Solidariedade

«É preciso aprender a partilhar com os outros o peso de um destino de massa, eliminando todas as futilidades pessoais. Cada qual quer ainda tentar escapar, mesmo sabendo muito bem que, se fugir, outro o há-de substituir. Mas que importa ser eu ou outro, este ou aquele? Tornou-se, de facto, um destino de massa, comum a todos, e temos de o saber [...]. Mas encontro-me sempre a mim mesma na oração. E rezar, posso sempre fazê-lo, mesmo num buraco. Este pequeno fragmento do destino de massa que tenho de carregar ponho-o às costas como uma trouxa, atada com nós cada vez mais fortes e cada vez mais apertados: faz corpo comigo, e trago-o pelas ruas.»

Etty Hillesum, Diário

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Editors - A Ton Of Love (Official Video)

Alusões

«Há dias em que cada coisa que vejo me parece prenhe de significados: mensagens que me seria difícil comunicar a outros, definir, traduzir em palavras, mas que precisamente por isso se me apresentam como decisivas. São anúncios ou presságios que dizem respeito a mim mesmo e simultaneamente ao mundo: e de mim, não os acontecimentos exteriores da existência mas aquilo que acontece dentro, no fundo, e do mundo não um qualquer facto singular mas o modo de ser geral de tudo. Compreendem portanto a minha dificuldade em falar de tudo isto, a não ser por alusões.»

Italo Calvino, Se numa noite de inverno um viajante

The National - "Demons"

52.

«Portanto, o ser humano possui a vida feliz quando a vontade, que é um bem médio, adere ao bem imutável e comum, que não é próprio, como é aquela Verdade da qual muito falámos sem nada dizer que dela seja digno. E a própria vida feliz, isto é, a qualidade que reside num espírito unido ao bem imutável, é o bem próprio e principal do ser humano. Neste bem estão também todas as virtudes, das quais ninguém pode fazer mau uso. Na verdade, não obstante as virtudes serem grandes e principais bens do ser humano, compreende-se facilmente que são próprias de cada ser humano, e não comuns. De facto, é pela Verdade e Sabedoria, comuns a todos, que todos se tornam sábios e felizes, quando se lhes unem. Mas não é por meio da felicidade de um homem que outro se torna feliz, pois mesmo se alguém imitar aquele para ser feliz, o que ele deseja é ser feliz como vê que esse outro se tornou, a saber, por meio daquela Verdade imutável e comum. E não é pela prudência de alguém que outrem se torna prudente, nem forte pela fortaleza de outrem, nem sóbrio pela temperança alheia, nem é pela justiça de um homem que outro se torna justo; mas é conformando o espírito àquelas regras imutáveis e luzes das virtudes que vivem incorruptivelmente na própria Verdade e Sabedoria comuns, às quais aquele que está dotado destas virtudes configurou o seu espírito  e nas quais se fixou, e que outro se propôs imitar.»

 Santo Agostinho, Diálogo sobre o livre arbítrio

terça-feira, 28 de maio de 2013

Smith Westerns - "Varsity" (Official Music Video)

Desejar

Desejar é a coisa mais simples e humana que existe. Por que é que, então, até os nossos desejos são para nós inconfessáveis, por que é que é tão difícil transformá-los em palavras? Tão difícil que acabamos por mantê-los escondidos, que construímos para eles, algures dentro de nós, uma cripta onde permanecem embalsamados, à espera.
Não podemos transpor para a linguagem os nossos desejos porque os imaginamos. Na realidade, a cripta contém, apenas, imagens, tal como um livro ilustrado para crianças que ainda não sabem ler; tal como as images d'Epinal de um povo analfabeto. O corpo dos desejos é uma imagem que fazemos dele.
Comunicar a alguém os nossos desejos sem as imagens é uma brutalidade. Comunicar-lhe as imagens sem os desejos é enfadonho (como contar os sonhos ou as viagens). Mas fácil, em ambos os casos. Comunicar os desejos imaginados e as imagens desejadas é tarefa mais árdua. Por isso o adiamos. Até ao momento em que começamos a perceber que permanecerá para sempre sem resposta. E que aquele desejo inconfessado somos nós próprios, para sempre prisioneiros na cripta.
O Messias vem pelos nossos desejos. Separa-os das imagens para os satisfazer. Ou, melhor, para os mostrar já satisfeitos. Aquilo que imaginámos já o tínhamos dito. Restam - impossíveis de satisfazer - as imagens do satisfeito. Com os desejos satisfeitos, ele constrói o inferno; com as imagens impossíveis de satisfazer, constrói o limbo. E com o desejo imaginado, com a pura palavra, constrói a bem-aventurança do paraíso.

Giorgio Agamben, Profanações

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Caveman - In the City

A Prayer in Spring

Oh, give us pleasure in the flowers to-day;
And give us not to think so far away
As the uncertain harvest; keep us here
All simply in the springing of the year.

Oh, give us pleasure in the orchard white,
Like nothing else by day, like ghosts by night;
And make us happy in the happy bees,
The swarm dilating round the perfect trees.

And make us happy in the darting bird
That suddenly above the bees is heard,
The meteor that thrusts in with needle bill,
And off a blossom in mid air stands still.

For this is love and nothing else is love,
The which it is reserved for God above
To sanctify to what far ends He will,
But which it only needs that we fulfil.

Robert Frost

sábado, 25 de maio de 2013

Noah And The Whale - There Will Come A Time

História

«Há uma definição que, de certa maneira, marcou o meu percurso como escritor, sobretudo como romancista, e que, tenho de confessar, recebo com uma certa impaciência. Trata-se do rótulo gasto de que sou um romancista histórico,o que se confirmaria tanto por alguns livros que escrevi como pela minha relação com o tempo e posição perante a história. Quero dizer, não obstante, que antes de começar a escrever sustentava como uma evidência palmária (por outro lado nada original) que somos herdeiros de um tempo, de uma cultura e que, para usar um símile que algumas vezes empreguei, vejo a humanidade como se fosse o mar. Imaginemos por um momento, que estamos numa praia: o mar está ali, e continuamente aproxima-se em ondas sucessivas que chegam à costa. Pois bem, essas ondas, que avançam e não poderiam mover-se sem o mar que está por detrás delas, trazem uma pequena franja de espuma que avança em direcção à praia onde vão acabar. Penso, continuando a usar esta metáfora marítima, que somos nós a espuma que é transportada nessa onda, essa onda é impelida pelo mar que é o tempo, todo o tempo que ficou atrás, todo o tempo vivido que nos leva e nos empurra. Convertidos numa apoteose de luz e de cor entre o espaço e o mar, somos, os seres humanos, essa espuma branca brilhante, cintilante, que tem uma breve vida, que despede um breve fulgor, gerações e gerações que se vão sucedendo umas às outras transportadas pelo mar que é o tempo. E a história, onde fica? Sem dúvida a história preocupa-me, embora seja mais certo dizer que o que realmente me preocupa é o Passado, e sobretudo o destino da onda que se quebra na praia, a humanidade empurrada pelo tempo e que ao tempo sempre regressa, levando consigo, no refluxo, uma partitura, um quadro, um livro ou uma revolução. Por isso prefiro falar mais de vida do que de literatura, sem esquecer que a literatura está na vida e que sempre teremos perante nós a ambição de fazer da literatura vida.»

José Saramago, A Estátua e a pedra

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Hector Zazou & Björk - Vísur Vatnsenda Rósu

40.

Como dizia o outro, mesmo
quando não tiver olhos ainda
te verei: e como nunca até.

Se os vermes os comerem, ou em tição
mudarem antes da leve poeirada,
fina, indetectável,
se os olhos
não estiverem, não abrirem, não
soltarem água,
se os olhos não forem mais do que a memória,
eu te verei então
eu te verei ainda:
e mais que nunca até.

Pedro Tamen, Rua de nenhures

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Fiona Apple - Paper Bag

Silêncio

«O silêncio levantou voo e fez mira
sobre as coisas e as suas secretas imagens.
A máquina disparou sobre o mundo, iluminado
pela luz do inverno; os projécteis atingiram-no
por séries de imagens fragmentárias -
fotografias.

Trabalho da cegueira que escolhe
segundo a lenta preferência;
com toda a lentidão
do mundo; a mão dispara ao retardador
sobre as coisas fotografadas, apaga o seu enquadramento
elege e reenquadra um pormenor -
o fragmento de um fragmento.»

Manuel Gusmão, Pequeno tratado das figuras

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Wagner - Tristan und Isolde - Liebestod

Vontade

«Digam-me agora: como podia um tal ser, de um invólucro tão pesado, lançar os seus olhares sobre o mundo? Seguramente, as emoções profundas da sua Vontade não eram capazes de determinar, pelo menos de uma maneira distinta, a sua percepção do mundo; elas eram bastante violentas e ao mesmo tempo bastante delicadas para se ligarem a alguma das aparências que o seu olhar tocasse com tímida rapidez - e finalmente com essa desconfiança do eterno insatisfeito. Nada o podia atrair, nada lhe podia oferecer essa ilusão fugidia que atraíra ainda um Mozart para fora do seu mundo interior e o lançara na procura de prazeres exteriores. O prazer infantil dos que procuram as distracções de uma grande cidade de prazer quasi não tocava superficialmente Beethoven: o impulso da Vontade era nele demasiado vigoroso para que pudesse encontrar a menor satisfação numa tal existência, cujo brilho é completamente aparente. Foi assim que ele nutriu pela solidão uma tendência cada vez mais viva, que concordava com a sua necessidade de independência. Um instinto de uma maravilhosa segurança inspirava-o e tornava-se a mola essencial das manifestações do seu carácter. Nenhum raciocínio o teria guiado mais eficazmente que a determinação imperiosa deste instinto.»

Richar Wagner, Beethoven  

Pietro Torri - Missa pro defunctis in F-major (1726)

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Símbolo e constelação de vida

«A concepção do símbolo em Broch tem de ser integrada na concepção mais vasta dos valores, no coração da relação entre a consciência empírica e a consciência pura. O símbolo aparece-lhe mesmo como a protagonização exemplar dessa relação, "a única realização da ideia platónica no mundo empírico"(...). O que significa isto? A resposta é dada na Autobiografia psíquica. Em primeiro lugar, a descoberta da estranheza no âmago familiar, que acaba, como desdobramento da própria experiência, por se converter num sonho. Para Broch, só reencontra o real aquele que experimenta a estranheza no familiar, quer dizer, é pelo sentimento de estranheza que se caminha em direcção a um limiar inexpugnável do si próprio ou da alma (Broch não os distingue)."

Maria Filomena Molder, Símbolo, analogia e afinidade

Paolo Conte - Intimità

Depois de tudo, fica a lembrança dos lugares e

Depois de tudo, fica a lembrança dos lugares e
dos seus nomes; dos quartos virados a poente
onde as imagens do rio nunca se repetem nas janelas
e todos os enredos são consentidos sobre as camas.

Ao fundo, havia um armário de madeira com espelho
onde as nossas roupas trocavam de perfume
para que os dias se vestissem sempre melhor.
E, sobre a cómoda, num espelho mais antigo,
a tarde reflectia algumas das alegrias da infância.

Não era o quarto de nenhum de nós,
mas a ele regressávamos sempre com a pressa
de quem anseia os cheiros quentes e antigos
da casa conhecida; como quem espera ser aguardado.

Pressenti, porém, que não era eu quem aguardavas:
uma noite, pedi-te mais um cobertor em vez de um abraço.

Maria do Rosário Pedreira

domingo, 12 de maio de 2013

SADE - YOUR LOVE IS KING

Fausto

Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria
São outra coisa que a noite e o vento -
Sombras de vida e de pensamento.

Tudo que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.

Tudo que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento
São sombras de mãos cujos gestos são
A ilusão mãe desta ilusão

Fernando Pessoa, Fausto

Sonic Youth - The Empty Page

domingo, 17 de março de 2013

Mapa

I

O poeta
[o cartógrafo?]
observa
as suas
ilhas caligráficas
cercadas
por um mar
sem marés,
arquipélago
a que falta
vento,
fauna, flora,
e o hálito húmido
da espuma,


II

pensando
que
talvez alguma
ave errante
traga
à solidão
do mapa,
aos recifes desertos,
um frémito,
um voo,
se for possível
voar
sobre tanta
aridez.

Carlos de Oliveira

quarta-feira, 13 de março de 2013

Filippa Giordano - Fratello Sole, Sorella Luna (Title Theme)

Cantico delle creature


« Altissimu, onnipotente, bon Signore,
tue so’ le laude, la gloria e l’honore et onne benedictione.
Ad te solo, Altissimo, se konfàno et nullu homo ène dignu te mentovare.
Laudato sie, mi’ Signore, cum tucte le tue creature, spetialmente messor lo frate sole, lo qual’è iorno, et allumini noi per lui. Et ellu è bellu e radiante cum grande splendore, de te, Altissimo, porta significatione.
Laudato si’, mi’ Signore, per sora luna e le stelle, in celu l’ài formate clarite et pretiose et belle.
Laudato si’, mi’ Signore, per frate vento et per aere et nubilo et sereno et onne tempo, per lo quale a le tue creature dai sustentamento.
Laudato si’, mi’ Signore, per sor’aqua, la quale è multo utile et humile et pretiosa et casta.
Laudato si’, mi Signore, per frate focu, per lo quale ennallumini la nocte, et ello è bello et iocundo et robustoso et forte.
Laudato si’, mi’ Signore, per sora nostra matre terra, la quale ne sustenta et governa, et produce diversi fructi con coloriti flori et herba.
Laudato si’, mi’ Signore, per quelli ke perdonano per lo tuo amore, et sostengo infirmitate et tribulatione.
Beati quelli ke 'l sosterrano in pace, ka da te, Altissimo, sirano incoronati.
Laudato si’ mi’ Signore per sora nostra morte corporale, da la quale nullu homo vivente pò skappare: guai a quelli ke morrano ne le peccata mortali; beati quelli ke trovarà ne le tue santissime voluntati, ka la morte secunda no 'l farrà male.
Laudate et benedicete mi’ Signore' et ringratiate et serviateli cum grande humilitate »

São Francisco

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Juventude

«É preciso todavia uma grande ingenuidade para crer que gritar e bradar no mundo há-de auxiliar, como se dessa maneira o destino de um indivíduo se modificasse. Aceita-se tal como nos é oferecido, e contorna-se todas as complicações. Na minha juventude, quando ia a um restaurante, dizia então para o criado: um naco bom, um naco muito bom, do lombo, sem ser demasiado gordo. Talvez o criado nem sequer ouvisse o meu clamor, e menos ainda houvesse de nele ter atentado, e menos ainda houvesse a minha voz de conseguir chegar à cozinha e influenciar o cortador, e mesmo que tudo isso acontecesse, talvez não houvesse um bom naco em todo o assado. Agora já não grito mais.»

Soren Kierkegaard, Ou - Ou, Um Fragmento de Vida

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Rhye - "The Fall" (Official Music Video)

Menzogna

«"... svariate missive di lettori e lettrici, a proposito do Si sta facendo sempre più tardi, secondo i quali avrei raccontato la loro storia, perché si erano riconosciuti in questa o in quella lettera. E fin qui, passi. Hai voglia di appellarti alla cosiddetta 'autonomia del testo' o a certe geniali battute del Gadda: la letteratura sarà sempre uno specchio dove riconoscerti, se ti cerchi, o soprattutto se non hai altre uscite. Ma figurati che un signore, credo uno scienziato del ramo medico che vive negli Stati Uniti e che assicura di avermi conosciuto a Genova vent'anni fa, ha scritto una lettera al regista Fernando Lopes dove pretende che la sua figura (di lui, il medico) mi sarebbe servita per il personaggio di Spino, abbassando però il livello sociale e profissionale. Spino in realtà sarei io, perché dentro la sua pelle ci avrei infilato il me stesso di allora, un uomo di un pessimismo funereo, dice, praticamente nichilista, privo di teoretica e soprattutto senza ideali né speranza. So già cosa mi risponderesti: e il padrone della Tabaccheria ha sorriso. D'accordo, però a quel signore direi volentieri che se Spino sono io, ma in fondo ci si riconosce lui, ebbene, non è vero soltanto che quando si scrive l'Io è un altro, come ci insegnano. È un altro anche lui, finalmente, e che non se la prenda troppo; qualcuno gli ha fatto cambiare pelle, una volta nella vita. Vita che sarà anche brillante, soddisfacente e di prima classe, mas questo non elimina la monotonia. Io l'ho fatto viaggiare in terza classe, anche se per poche pagine, ma grazie a me ha fatto un'esperienza che forse in vita sua non avrebbe mai fatto. Insomma, un'autobiografia altrui, se così posso dire, fatta da un mio lettore, che a suo modo è una poetica a posteriori anch'essa, e che certo non mi lascio scappare, perché merita un suo posto fra queste mie poetiche a posteriori tendenzialmente illogiche, carenti di deontologia, cariche di false memorie e false volontà, messaggere di un senso che ci sforziamo pateticamente di dare poi a qualcosa che avvenne prima. Vedrai: ipotesi vagabonde, nomadi e soprattutto arbitrarie, alle quali non si addice nessuna filologia. E che sono soprattutto un pretesto per parlare di libri altrui. Credo sia questo il senso delle pagine che ti mando, pagine che valgono per quello che valgono, a parte il valore che ha la menzogna, volontaria o involontaria che sia. Perché la menzogna ha comunque una certa utilità: serve a definire i confini della verità".»

Antonio Tabucchi, Lettera a un amico

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Vozes

Vozes ideais e amadas
daqueles que morreram, e daqueles que são
para nós perdidos como os mortos.

Às vezes nos nossos sonhos falam;
às vezes no pensamento as ouve a mente.

E com o seu som por um momento regressam
sons da primeira poesia da nossa vida -
qual música,à noite,  longínqua, que se apaga.

Konstandinos Kavafis

sábado, 26 de janeiro de 2013

domingo, 20 de janeiro de 2013

Vida

«Mas a vida. A lenta derrocada dos grandes caules verdes de tal modo que a flor acaba por se virar, ao cair, inundando-nos com uma luz de púrpura e vermelho. Por que é que, bem vistas as coisas, não nascemos  ali em vez de aqui, desamparados, incapazes de ajustarmos como deve ser a luz do olhar, rastejando na erva entre as raízes, entre os calcanhares dos Gigantes? Porque dizer o que são as árvores, e o que são homens e o que são mulheres, ou sequer o que é haver coisas como árvores, homens e mulheres, não será algo que estejamos em condições  de fazer nos próximos cinquenta anos. Não há nada por vezes senão espaços de luz e de escuridão, intersectados por grandes hastes densas e talvez bastante mais acima manchas em forma de rosa - rosa-pálido ou azul-pálido - de cor indecisa, e tudo isso, à medida que o tempo passa, se vai tornando mais definido e se transforma - em não se pode saber o quê.»

Virginia Woolf, «A Marca na Parede» 

sábado, 12 de janeiro de 2013

Luz Casal ► Piensa en mi

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Rimembranza

«Mentre il mondo del futuro è aperto all'immaginazione, e non ti appartiene più, il mondo del passato è quello in cui attraverso la rimembranza ti rifugi in te stesso, ritorni in te stesso, ricostruisci la tua identità, che si è venuta formando e rivelando nella ininterrotta serie dei tuoi atti di vita, concatenati gli uni con gli altri, ti giudichi, ti assolvi, ti condanni, puoi anche tentare, quando il corso della vita sta per essere consumato, di fare il bilancio finale. Bisogna affrettarsi. Il vecchio vive di ricordi e per i ricordi, ma la sua memoria si affievolisce di giorno in giorno. Il tempo della memoria procede all'inverso di quello reale: tanto più vivi i ricordi che affiorano nella reminiscenza quanto più lontani nel tempo gli eventi. Ma sai anche che ciò che è rimasto, o sei riuscito a scavare in quel pozzo senza fondo, non è cha un'infinitesima  parte della storia della tua vita. Non arrestarti. Non tralasciare di continuare a scavare. Ogni volto, ogni gesto, ogni parola,ogni più lontano canto, ritrovati, che sembravano perduti per sempre, ti aiutano a sopravvivere.»

Norbeto Bobbio, De Senectute e altri scritti autobiografici

sábado, 5 de janeiro de 2013

New Order - Regret (Official Video) High Quality

O Silva

Morreu o filho do barbeiro,
Uma criança de cinco anos.
Conheço o pai - há um ano inteiro
Que me barbeia e nos falamos.

Quando mo disse, o que em mim há
De coração sofreu assombro
E eu abracei-o, incerto já,
E ele chorou sobre o meu ombro.

Nunca acho uma atitude plana
Na vida estúpida e tranquila;
mas, meu Deus, sinto a dor humana!
Nunca me tires o senti-la!

Fernando Pessoa, Poemas de Fernando Pessoa (1934-1935) [edição de Luís Prista] 

New Order - Ceremony (Live At Finsbury Park 9th June 02)

Morte

«É provável que o pensamento filosófico tenha nascido como reflexão sobre o começo, sobre o arkhé - como nos ensinam os pré-socráticos -, mas essa reflexão foi certamente inspirada pela constatação de que as coisas, para além de um começo, também têm um fim. Por outro lado, o exemplo clássico do silogismo (logo, de um raciocínio incontestável) é: «Todos os homens são mortais, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal.» Que Sócrates também é mortal é o resultado de uma inferência, mas que todos os homens o sejam é uma premissa indiscutível. Muitas outras verdades indiscutíveis (que o Sol gira à volta da Terra, que há uma geração espontânea, que a pedra filosofal existe) foram revogadas pela dúvida ao longo da História - mas que todos os homens sejam mortais, não. No máximo, os crentes assumem que houve Um que ressuscitou: mas para poder ressuscitar teve de morrer.
É por isto que quem pratica a filosofia aceita a morte como o nosso horizonte normal, e não foi necessário esperar por Heidegger para que se afirmasse que quem pensa vive para a morte. Escrevi «quem pensa» referindo-me ao pensamento filosófico, porque conheço muitas pessoas, mesmo cultas, que quando alguém fala na morte (e nem sequer na deles) fazem logo gestos de esconjuro. O filósofo não, sabe que deve morrer e vive operosamente nesta espera. Quem acredita numa vida sobrenatural espera a morte com serenidade, mas espera-a igualmente com serenidade quem pensa (como Epicuro) que, quando o momento chega, não nos devemos preocupar, porque, nesse instante, já cá não estaremos.»

Umberto Eco, A Passo de Caranguejo, Guerra quentes e populismo mediático

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Lambchop - Nixon - The Old Gold Shoe

Natureza

«Quero dizer algumas palavras em nome da Natureza, da liberdade absoluta e do estado selvagem, por contraste com a liberdade e a cultura meramente civilizadas, com o intuito de ver no homem um habitante, uma parte ou uma parcela da Natureza, e não um mero membro da sociedade. Pretendo fazer declarações muito duras, senão mesmo categóricas, pois há já muitos paladinos da civilização: os padres, as congregações escolares e todos vós se encarregarão dessa tarefa.»

Henry David Thoreau, Caminhada

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Bitcrush - Prologue

Autobiografia

«Sim, uma autobiografia é irresistível. Aquele pobre, tolo e presumido secretário Pepys ganhou entrada, falando pelos cotovelos, no círculo dos Imortais; consciente de que na indiscrição está a parte de leão do valor, afadiga-se entre eles, perfeitamente à vontade, na sua «felpuda casaca violeta de botões dourados e renda em arco», que tanto gosta de nos descrever, enquanto se vai gabando, para seu e nosso infinito prazer, do saiote azul da Índia que comprou para a mulher, das «fressuras de um belo porco» e do «agradável fricassé francês de vitela» que adorava comer, dos seus jogos de bola e arco com Will Joyce, da sua «caça às mulheres», das suas declamações dominicais de Hamlet, de como tocava violeta nos dias de semana, e outras coisas triviais ou pecaminosas. Nem mesmo na vida real o egotismo deixa de ter atractivos. As pessoas que nos falam dos outros são normalmente desinteressantes. Quando nos falam de si mesmas são quase sempre interessantes, e, se fôssemos capazes de calá-las quando se tornam aborrecidas, com a mesma facilidade com que podemos fechar um livro de que nos cansámos, seriam absolutamente perfeitas.»

Oscar Wilde, Intenções, quatro ensaios sobre estética