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Oeiras, Portugal
Aluno e Professor. Sempre aluno.

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Sétima Legião - Mar d´Outubro

O Último Dia

 Estava o dia nublado. Ninguém se resolvia
soprava um vento ligeiro: «Não é o grego é o
            siroco» disse alguém.
Alguns ciprestes esguios cravados na encosta e o 
            mar
cinzento com lagoas luminosas, mais além.
Os soldados apresentavam armas quando começou a chuviscar.
«Não é o grego é o siroco» a única resolução que
           se ouviu.
Todavia sabíamos que na alba seguinte não nos restaria
mais nada, nem a mulher bebendo ao nosso lado o sono
nem a memória de que fomos homens alguma vez,
mais nada na alba seguinte.

«Esta vento traz à mente a primavera» dizia a amiga
caminhando a meu lado olhando para longe «a primavera
que de repente caiu no inverno perto do mar fechado.
Tão inesperadamente. Passaram tantos anos. Como vamos
           morrer?»

Uma marcha fúnebre vagueava por entre a chuva miudinha.

Como morre um homem? Estranho ninguém refletiu
          nisso.
E os que pensaram nisso era como memória de crónicas
          velhas
da época dos cruzados ou da - em Salamina - batalha
          naval.
Todavia a morte é algo que é feito; como morre
          um homem?
Todavia alguém ganha a sua morte, a sua própria morte,
          que não pertence a nenhum outro
e este jogo é a vida.
Baixava a luz por sobre o dia nublado, ninguém se
          resolvia.
Na alba seguinte não nos restaria nada; tudo entregue;
          nem sequer as nossas mãos;
e as nossas mulheres trabalhando para outros nos fontanários e
          os nossos filhos
nas pedreiras.
A minha amiga cantava caminhando a meu lado
          uma canção amputada:
«Na primavera, no verão, escravos...»
Lembrávamo-nos de mestres anciãos que nos deixaram 
          órfãos.
Um casal passou a conversar:
«Fartei-me do crepúsculo, vamos para casa
vamos para casa acender a luz.»

Yorgos Seferis (trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis)  

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Patricia Kaas Avec Le Temps

O antropomorfismo destas estranhas cabeças dirá

 O antropomorfismo destas estranhas cabeças dirá
o quê? A prisão do gesto do escultor
na forma do seu corpo ou pelo contrário

o triunfo do princípio da metamorfose e o
reino da possibilidade? OU dirá tão
simplesmente as concretas determinações

de tal reino. E que um corpo tem na sua cabeça
uma deformação necessária: Coroação
e decapitação; mudança de formas;

ironia da invenção; sabedoria do gesto
que explode e declina no desenho rigoroso.
Eles - diz o mestre - não sabem desenhar.

Manuel Gusmão

Comme un boomerang

5. A resposta de Apolo à Inveja (Hino a Apolo, 105-112)

 A Inveja falou em segredo ao ouvido de Apolo:
«Não me agrada o poeta cujo canto não tenha a extensão do mar.»
Apolo afastou a Inveja com o pé e disse:
«É grande a corrente do rio assírio, mas muitas
lamas de terra e imundície de toda a espécie arrasta.
Não é uma água qualquer que as ovelhas levam a Deméter,
mas aquela que, pura e sem mistura, brota
de uma nascente sagrada: bebida pouca, suprassumo de qualidade.»

Calímaco (trad. Frederico Lourenço)

Déshabillez moi Juliette Greco

Onda

 Ambos soubemos 
sempre
que por mais que as ondas 
se sucedam interminavelmente
a uma onda jamais sucederá uma outra 
que lhe seja igual

No desejo de encontrar a perfeição 
cada onda traz consigo
esse propósito divino 
do encontro
absoluto

Mas nós não somos divinos
apesar de em momentos 
esplendorosamente fugazes
sermos capazes 
de bater à porta 
da divindade

O que torna a onda perfeita
é a sua capacidade de procurar
permanentemente esse lugar absoluto
na sua busca se entusiasmando
e iludindo




quarta-feira, 28 de abril de 2021

Charlotte Gainsbourg - L´un part, l´autre reste.

Bebido o Luar

 Bebido o luar, ébrios de horizontes,
Julgámos que viver era abraçar
O rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar.

Mas solitários somos e passamos,
Não são nossos os frutos e as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos.

Por que jardins que nós não colheremos,
Límpidos nas auroras a nascer,
Por que o céu e o mar se não seremos
Nunca os deuses capazes de os viver.

Sophia de Mello Breyner Andresen

John Coltrane - Naima (Take 1 / Audio)

50.

 Das minhas asas volto para meu lar, 
asas da minha perda repentina.
Fui cântico, e Deus, a rima
ainda em meu ouvido a murmurar.

Torno-me de novo simples e silencioso,
e minha voz se abre à solidão;
curvou-se o meu rosto ditoso
para melhor oração.
Para os outros fui como um vento desavindo,
quando os chamei sacudindo.
Onde estão os Anjos, longe, estive eu
alto, onde a luz para o nada correu...
mas Deus profundamente obscureceu.

Os Anjos são o último ar
na orla do seu cimo;
dos seus ramos se separar,
é para eles como um sonho peregrino.
Aí mais na luz cada um acreditou
do que Deus força mais negra,
Lúcifer se refugiou
na sua proximidade como regra.

Ele é o príncipe no país da luz,
e a sua fonte está num lado
tão íngreme no nada que reluz,
que ele, de rosto chamuscado,
trevas implora.
É o claro deus do tempo que se demora,
para quem alto desperta,
e porque muitas vezes com dores grita
e muitas vezes com dores ri na realidade,
o tempo na sua felicidade acredita
e adere à sua autoridade.

O tempo é como seca margem
na folha de um livro usado.
É o manto brilhante de viagem
por Deus rejeitado,
quando Ele, que sempre foi profundidade,
do voo se cansou, da sua intensidade,
e se escondeu de cada ano começado
até que seu cabelo enraizou
e, crescendo, todas as coisas atravessou.

Rainer Maria Rilke, O Livro de horas


The Penguin Cafe Orchestra - Air à Danser [When in Rome]

Silence

 «The great poem. As I say it, it becomes clear to me that I have accepted it, until quite recently, as something which certainly exists, putting it highhandedly beyond any suspicion of coming into being. Even if the originator behind it were to appear, I should not be able to imagine the power which all at once had broken so great a silence. Just the builders of the cathedrals shot up, like grains of seed, immediately and without residue, into growth and blossom in their work, which stood there as if it had always been, no longer explicable as deriving from them: so the great poets of the past and the present remain entirely incomprehensible to me, the place of each being taken by the tower and bell of his heart. Only since a most proximate younger generation, striving upward and into the future, has embodied, not insignificantly, their own growth in the growth of their poems, does my eye seek to recognize, alongside of their achievement, the circumstances of the creative personality. But even now, when I must acknowledge that poems are formed, I am far from thinking them invented; it seems to me ratheras if there appeared in the soul of the poetically inspired a spiritual predisposition, which was already present between us (like an undiscovered constellation).»

Rainer Maria Rilke, Where the silence reigns

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Luz Casal Lo eres todo

ADIÓS

 Cualquier cosa valiera por mi vida
esta tarde. Cualquier cosa pequeña
si alguna hay. Martirio me es el ruido
sereno, sin escrúpulos, sin vuelta,
de tu zapato bajo. Qué victorias
busca el que ama? Por qué son tan derechas
estas calles? Ni miro atrás ni puedo 
perderte ya de vista. Ésta es la tierra
del escarmiento: hasta los amigos
dan mala información. Mi boca besa
lo que muere, y lo acepta. Y la piel misma
del labio es la del viento. Adiós. Es útil,
normal este suceso, dicen. Queda
tú con las cosas nuestras, tú, que puedes,
que yo me iré donde la noche quiera.

Claudio Rodriguez

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Carlos Maria Trindade / Nuno Canavarro - Mr. Wollogallu (1991, Full Album)

Boredom

 «It is by no means essential to my argument to maintain that boredom came into existence only when it was first named. One can never prove taht a new feeling has entered the world. The emotion Shakespeare's Hippolita experiences may in fact have precidely corresponded to what we understand as boredom, but the language assigned to her emotion differs from the twentieth-century vocabulary of boredom, and I maintain the importance of the difference. If new feelings arguably never manifest themselves, new concepts uniquivocally do. Boredom was in the eighteenth century a new concept, if not necessarily a new event. The emergence of a new concept marks a significant cultural happening because it allows articulation of fresh ways to understand the world.

Patricia Meyer Spacks, Boredom

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Bruce Springsteen - I'm on Fire

Ritmo

 «O ritmo não é apenas um aliado da memória, pois também é um catalisador dos nossos prazeres - a dança, a música e o sexo jogam com a repetição, o compasso e as cadências. A linguagem também possui infinitas possibilidades rítmicas. A épica grega flui em hexâmetros, que criam um peculiar ritmo acústico através de combinações de sílabas longas e breves. Pelo contrário, o verso hebraico prefere os ritmos sintáticos: «Há um breve momento para tudo e um tempo para cada coisa sob o céu: um tempo para nascer e um tempo para morrer, um tempo para plantar e um tempo para arrancar o que se plantou; um tempo para matar e um tempo para curar, um tempo para destruir e um tempo para edificar...» Dir-se-ia que estas frases do Eclesiastes cantam e, de facto, o músico Pete Seeger compôs uma canção, inspirada nelas - Turn! Turn! Turn! (To everything there is a season) que chegou ao topo das listas de êxitos em 1965. Na origem da poesia, o prazer do ritmo foi posto ao serviço da continuidade cultural.»

Irene Vallejo, O Infinito num junco

segunda-feira, 12 de abril de 2021

L'Orchestre du Roi Soleil. Jean-Baptiste Lully (1632 - 1687)

O Outro filho (irmão do pródigo)

«O vitelo mais gordo»
disse o pai. Mas era para o outro
que falava

E ele interrogou-se confundido,
o coração pesado de negócios,
esquecido de viagens e sonhos
por fazer

Deve ser coisa estranha
a lealdade,
como penoso o ofício 
de amar

Perdida a juventude
entre contas e servos,
entre terras vedadas e cega obediência
que lhe restava

senão juntar-se à festa
e comer o vitelo
e fingir alegria
em pródigos sorrisos?

Ana Luísa Amaral

Marc Antoine Charpentier Te Deum Les Arts Florissants William Christie

Erguem-se os ventos e contra mim se assanham

 Erguem-se os ventos e contra mim se assanham,
se rebelam, gritam-me fúrias antigas, incontidas,
e assomam às portas assobiando velhas canções tristes.

Dizem que por eles morreram já algumas aves.
E que os trigos cederam à tentação de os seguir
e se perderam para sempre na planície, como as crianças.

Nunca lhes digas o meu nome, não lhes contes que existo.
Guarda-me agora em ti como um outro segredo -
o teu sono era quente, lembro-me da janela do teu quarto
a dar para o céu, os ventos passavam nela devagar,
mas nunca se detinham

e depois, de manhã, acordávamos sempre junto ao sol.

Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Nite Jewel - Boo Hoo (Official Video)

 No texto «Sobre a linguagem em geral e a linguagem humana» (...), a essência linguística do ser humano é a nomeação, a qual acaba por coincidir com a sua essência espiritual. Isto é, o homem manifesta a sua compreensão através do poder que tem de dar nomes, pelos quais reconhece a irradiação expressiva dos seres, a sua magia, como Benjamin lhe chama.
O nome dá conta dos seres com todas as suas manifestações imediatas. Como é que uma árvore se manifesta imediatamente? Pela sua morfologia, pela sua resistência ao vento, pelo crescimento das folhas, pelo crescimento dos frutos, pela sombra que dá. Como é que nós utilizamos uma árvore? Descansando à sua sombra, comendo os seus frutos, arrancando os seus ramos para nos aquecermos, deitando-a abaixo para a transformar em madeira com vista à construção de casas, de pontes (nalgumas destas acções podemos observar uma superação do utilitarismo). Mas aí a linguagem da árvore tornou-se em grande parte indirecta (embora comer os frutos e descansar à sombra ainda mantenham a irradiação expressiva da árvore). Ela só se manifesta de maneira imediata quando está íntegra, quando se mantém enquanto tal. A partir do momento em que é transformada, a sua linguagem foi traduzida sob forma utilitária. Mas também pode ser transformada sob forma artística. E no caso artístico, nos melhores casos artísticos, parece que subitamente percebemos o que é uma árvore ou, indirectamente, percebemos o que é a madeira ou o que é uma pedra.
É preciso ainda assinalar um aspecto muito importante em «Sobre a linguagem em geral e a linguagem humana», e para o qual Benjamin adverte o leitor: não se trata de exegese do texto bíblico. Apesar de não ser crente, a tradição que ele tem à mão é a tradição em que foi educado - o texto do Antigo Testamento fornece-lhe o quadro segundo o qual, de acordo com as suas palavras, pode compreender a linguagem nas suas aporias. E como é que a linguagem nas suas aporias é compreendida a partir do Génesis? No contexto da criação, Deus disse: faça-se isto. E achou que era bom. A linguagem divina é criadora: dita a palavra luz, a luz aparece. Em relação ao homem, porém, Deus não disse: faça-se o homem, mas molda-o a partir do barro, a partir da terra. Esta versão é a mais antiga. Não será de mais sublinhar que Benjamin pensa o ser humano como um ser que pertence à Terra. A Terra é a Terra dos homens e nenhuma argumentação permitirá superar tal evidência. Digamos, o homem é feito de terra e a Terra está ao cuidado do homem. E como é que se vê isto no Antigo Testamento? Pelo movimento divino de prescindir da palavra em relação ao homem: Deus não diz: faça-se o homem, molda o homem com a terra dando-lhe essa vocação de pertença à Terra e, ao mesmo tempo, libertando a palavra no homem. É o homem agora que terá de falar. Passando a palavra de Deus para o homem, passa de criadora a nomeadora. Em resumo: a essência espiritual do homem é aquilo que constitui e exprime o ser humano em relação a tudo o que há, incluindo aquele que é a fonte do dom da vida, aquele a quem se dirige a palavra, aquele que não será nomeado, Deus. A linguagem humana dirige-se para a sua fonte, não é criadora - isto é muito importante, porque evita qualquer tentação de idolatria.

O Químico e o alquimista, Benjamin, Leitor de Baudelaire, Maria Filomena Molder