Num Outono muito chuvoso, Pedro Dossém foi a Vale Abraão convidar Ema para uma caçada onde estariam cabeças coroadas, como ele dizia, de maneira que se prestava à galhofa. Ficou surpreendido com a casa dos Paiva, tão cheia de talha dourada que mais parecia um altar barroco. Ema introduzira o ouro e a seda pérola, quase branca, depois de ver no cinema O Grande Gatsby. Tinha uma sala toda branca que abria sobre um relvado, e pusera lá um baloiço de jardim com riscas cor-de-rosa. Embora Pedro Dossém tivesse bom gosto, tudo o que Ema decidia era para ele uma lei. Achava que ela brilhava num lugar assim e que a forma fica enquanto a matéria se perde. Ema era a forma perfeita num bricabraque de aves de cristal e de cofres orientais. Gastava tanto dinheiro, que Pedro Dossém se interrogou aonde ia Carlos buscar as somas exorbitantes precisas para aquele luxo anárquico. Mas rematava os seus pensamentos com a ideia de que o médico dispunha agora duma clientela rica, que o ocupava indiferenciadamente para redigir as memórias de senhoras pias, ou para controlar negócios. Vivia numa espécie de dependência feudal, dando a essa gente, na maioria arruinada, o sentimento de uma comunhão ainda poderosa que os perigos da revolução tinham feito convergir para a mesma consciência. Consciência de desastre comum e de ambições novas que subiam dos novos estamentos sociais, até então ignorados do jogo do poder.»
Agustina Bessa-Luís, Vale Abraão
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