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sábado, 29 de outubro de 2011

"Noivado"

«Enquanto durou o "noivado" de Ema com Osório, houve um período que Carlos não achou ser o pior da sua vida. Ele dormia muito, parecia que o sono o protegia duma realidade que podia ser fatal. Deitava-se praticamente vestido, por respeito ao corpo que a repelia ou, o que é pior, o ignorava. Ema desenvolveu um estilo fantástico, que lhe grangeava muitos admiradores; mas logo estancavam, receosos de irem muito além com uma mulher inteligente e cujo desequilíbrio parecia uma forma de má consciência. Não era. Ema via que o marido sofria, preferia que ele a deixasse e levasse com ele as filhas. Mas ele afectava não dar por nada e depositava em Pedro Dossém, como dantes em Pedro Lumiares, uma confiança tão absoluta que roçava pelo ridículo. Dizia que os seus afazeres não lhe permitiam dar a Ema o género de vida turbulenta que ela queria ter; e mostrava-se grato por ela dispor de acompanhantes de boa índole e moral intocável como Pedro Dossém, cuja mulher, uma inglesa desportiva, tomava o amor conjugal como uma partida de ténis, às vezes de pares. De resto, ela era golfista muito reputada.
Num Outono muito chuvoso, Pedro Dossém foi a Vale Abraão convidar Ema para uma caçada onde estariam cabeças coroadas, como ele dizia, de maneira que se prestava à galhofa. Ficou surpreendido com a casa dos Paiva, tão cheia de talha dourada que mais parecia um altar barroco. Ema introduzira o ouro e a seda pérola, quase branca, depois de ver no cinema O Grande Gatsby. Tinha uma sala toda branca que abria sobre um relvado, e pusera lá um baloiço de jardim com riscas cor-de-rosa. Embora Pedro Dossém tivesse bom gosto, tudo o que Ema decidia era para ele uma lei. Achava que ela brilhava num lugar assim e que a forma fica enquanto a matéria se perde. Ema era a forma perfeita num bricabraque de aves de cristal e de cofres orientais. Gastava tanto dinheiro, que Pedro Dossém se interrogou aonde ia Carlos buscar as somas exorbitantes precisas para aquele luxo anárquico. Mas rematava os seus pensamentos com a ideia de que o médico dispunha agora duma clientela rica, que o ocupava indiferenciadamente para redigir as memórias de senhoras pias, ou para controlar negócios. Vivia numa espécie de dependência feudal, dando a essa gente, na maioria arruinada, o sentimento de uma comunhão ainda poderosa que os perigos da revolução tinham feito convergir para a mesma consciência. Consciência de desastre comum e de ambições novas que subiam dos novos estamentos sociais, até então ignorados do jogo do poder.»

Agustina Bessa-Luís, Vale Abraão

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