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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Swann

«Mas, mesmo do ponto de vista das coisas mais insignificantes da vida, nós não somos um todo materialmente constituído, idêntico para toda a gente e de quem cada um apenas tenha de tomar conhecimento, como de um cadernos de encargos ou de um testamento; a nossa personalidade social é uma criação do pensamento dos outros. Mesmo o acto tão simples a que chamamos «ver uma pessoa conhecida» é em parte um acto intelectual. Preenchemos a aparência física do ser que vemos com todas as noções que temos sobre ele e, na figura total que imaginamos, esses noções possuem certamente um importante papel. Elas acabam por inchar as faces tão perfeitamente, por acompanhar numa aderência de tal modo exacta a linha do nariz,  tratam tão bem de graduar a sonoridade da voz como se esta não passasse de um transparente invólucro, que, de cada vez que vemos este rosto e que ouvimos esta voz, são essas noções que reencontramos, são elas que escutamos. Por certo, no Swann que tinham fabricado, os meus parentes haviam omitido por ignorância a entrada de inúmeras particularidades da sua vida mundana que faziam com que outras pessoas, quando estavam na sua presença, vissem as elegâncias reinarem no seu rosto e deterem-se no seu nariz curvo como sua fronteira natural; mas haviam podido também amontoar naquele rosto desviado do seu prestígio, desocupado e espaçoso, no fundo daqueles olhos depreciados, o vago e doce resíduo - meio memória, meio olvido - das horas ociosas passadas na sua companhia depois dos nossos jantares semanais, em redor da mesa de jogo ou no jardim, durante a nossa vida de boa vizinhança campesina. O invólucro corporal do nosso amigo tinha sido tão bem atestado de tudo isso, assim como de algumas recordações relativas aos seus pais, que aquele Swann se tornara um ser completo e vivo, e tenho a impressão de abandonar uma pessoa para ir para outra dela distinta quando, na minha memória,  do Swann que conheci mais tarde com exactidão passo àquele primeiro Swann - àquele primeiro Swann em quem reencontro os encantadores erros da minha juventude, e que aliás se assemelha menos ao outro que às pessoas que conheci pela mesma época, como se a nossa vida fosse como um museu, onde todos os retratos de um mesmo tempo possuem um ar de família, uma mesma tonalidade -, àquele primeiro Swann cheio de vagares, perfumado pelo aroma do grande castanheiro, dos cestos de framboesas e de um raminho de estragão.»

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, Do Lado de Swann

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