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Aluno e Professor. Sempre aluno.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Alice, por fim...

De acordo com Humpty Dumpty um nome denota e determina uma forma. Um nome não se refere apenas ao seu portador, mas determina a forma do seu portador. Deste modo, a forma, na perspectiva de Humpty Dumpty, é apresentada, por um lado, como objecto de denotação à posteriori, e, por outro, como efeito do uso do nome, daqui decorrendo que as palavras têm consequências físicas, capazes de determinarem, partindo da forma adquirida pelo portador de um determinado nome próprio, se o nome é bom ou mau.
Humpty Dumpty interpreta perguntas de forma a entendê-las como capazes de terem uma solução. É o caso, por exemplo, da pergunta sobre a extensão ou significado de “estar aqui sozinho”, apresentando como resposta “porque não tenho ninguém ao pé de mim”, como se a solução para a resposta (esta resposta) resultasse simplesmente da sua extracção a partir da forma da pergunta. Por conseguinte, Humpty Dumpty entende todas as perguntas como se fossem adivinhas, o que, para ele, corresponde a poder responder a todas as perguntas, visto que, procedendo deste modo, a resposta não depende do conhecimento, tratando-se, então, de derivar a resposta dos termos da pergunta formulada.
Para Humpty Dumpty, adivinhas são coisas que podem não ser notoriamente adivinhas, mas que podem ser adivinhas. Tal como os poemas. O significado de uma adivinha, como dos poemas, encontra-se no interior da pergunta, daqui resultando um método que não distingue quem percebe de quem não percebe alguma coisa. Sendo assim, responder a uma pergunta implica interpretar, enquanto que responder a uma adivinha, não implica interpretar. O confronto que se apresenta no texto, corresponde àquilo que ocorre com Alice, no momento em que ela interpreta uma coisa que não era para interpretar, ao afirmar a sua idade, em contraponto com a maneira como Humpty Dumpty reage a qualquer pergunta. Com efeito, Alice calcula, reconhece a distinção entre sentido e intenção e, por isso mesmo, interpreta, enquanto que Humpty Dumpty não reconhece, não calcula e, por esse motivo, não interpreta. Daqui decorre que, para Humpty Dumpty, não é possível saber-se o significado de nenhum termo antes que ele seja estipulado por quem fala, esgotando-se em cada ocorrência, numa máquina de estipular imparável.
De certo modo, aquilo que em Humpty Dumpty se encontra em relação a adivinhas, parece ter uma correspondência com a ideia de moral de que podemos dar conta em relação à Duquesa. Para um como para o outro, adivinhas e morais, respectivamente, têm uma relação com a forma do que se afirma, não com questões relacionadas com cálculo ou com interpretação, envolvendo, assim, uma ideia de que é possível extrapolar seja o que for em relação a qualquer coisa.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Feliz Natal!

Religião e Serenidade

É comum afirmar-se que a religião proporciona o consolo e a serenidade que nenhuma filosofia pode dar. No entanto, como consideração de facto, não ousaria dizer que seja deste modo. Olho à minha volta e recolho as minhas recordações dos homens religiosos (e entendo ingenuamente crentes numa determinada religião),com quem vivi ou com quem me confrontei, e não os reconheço como sendo ou tendo sido mais serenos ou conturbados do que os outros homens não religiosos (não crentes), que também conheci. As manifestações de alegria e de dor são as mesmas nuns como nos outros. Nem mesmo a história me oferece um espectáculo diferente, a história dos santos, dos grandes santos que eram grandes homens: todos eles inquietos, agitados pela dúvida, atormentados pelo escrúpulo moral e pelo sentido da impureza. Tal e qual como os que não são santos (refiro-me aos não santificados).
Dir-se-á que os homens religiosos e os santos também são homens,com as humanas fraquezas e misérias. E está bem. Coloquemos de parte a questão de facto. Assim sendo, por que razão ideal a religião seria capaz de proporcionar a serenidade que a filosofia não pode dar? Podemos responder: porque oferece a estabilidade da fé. Mas a fé não é específica da religião: todos os pensamentos, desde que sejam pensados, tornam-se fé, ou seja, de coisa em devir passam a coisa concretizada, de coisa pensada a coisa não pensada, da coisa dinâmica a coisa estável ou estática. Desse modo temos a fé dos materialistas, dos positivistas e de toda a espécie de pensadores: fé que é evidentíssima sobretudo nos seus estudos: fé que ultrapassa montanhas (mesmo que sejam montanhas de coisas despropositadas). – Mas a fé da religião é inabalável e a destas filosofias e escolas vacila constantemente. – Não é verdade. É sólida e vacilante, nem mais nem menos que a das religiões, cujos dogmas são sujeitos à discussão e evoluem e que, de qualquer maneira, são obrigados a circundar-se de uma apologética, que não existiria se não existisse a possibilidade de dúvidas sobre a fé.
O argumento, portanto, não serve. Será que podemos então apresentar um outro argumento, segundo o qual as religiões (pelo menos algumas religiões), colocando a personalidade de Deus, tornam possível uma relação do homem com Deus, que se manifesta na oração, no pedido de socorro, suprema via de consolo «no desespero», tal como dizia Vico «a respeito de todos os socorros da natureza»? Esta seria a grande consolação, que a filosofia não pode dar? - O problema é que pedir ajuda e obtê-la são duas coisas diferentes. E a oração permanece frequentemente por ouvir. Daí que não é raro o espectáculo do homem que se torna descrente, ou que acusa a justiça de Deus e blasfema. E se, por nobreza de alma, não cai em nenhum destes erros, e se resigna à vontade divina, a Deus que vê mais longe do que nós, que faz ele afinal de diferente daquilo que fazem todos os homens não religiosos? Resignar-se, aceitar o que aconteceu, ter fé na racionalidade do mundo e da história do mundo?
Contudo, dir-se-á, por fim, que a religião (pelo menos em certas formas) é consoladora, porque promete que todos os sofrimentos, todas as perdas por nós sofridas, a própria morte, serão abolidos e compensados numa outra vida. Na verdade, também aqui, gostaria de recordar que a coisa não parece verdadeira, porque todos, crentes e não-crentes, temem e desprezam do mesmo modo o sofrimento e a morte e todos se consolam, à medida que o tempo passa, com a recuperação do trabalho da vida. Mas esta afirmação é falsa, mesmo quando examinada como ideia, visto que o pensamento da vida futura permanece, como teria dito Leibnitz, um pensamento surdo, não verdadeiramente pensado, inerte e, neste caso, não consola. Ou consola do mesmo modo que uma certa e vaga espera por um bem inesperado, que Heine, em tom de brincadeira, apresentava, dizendo, a propósito da imortalidade, que não acreditava que ela existisse, mas não podia tirar da sua mente a esperança de que o bom Deus nos prepara, depois da morte, «uma agradável surpresa». Ou então, por fim, pretende que seja um pensamento verdadeiro e, nesse caso, é preciso pensá-lo, e, pensando-o, examinando aquilo que nele é importante, fazendo nascer dele as suas consequências, vê-se que a vida ultra-terrena não é a terrena, que a beatitude celeste exclui os afectos terrenos e os desumaniza, que no paraíso não existirão, nem pais, nem mães, nem filhos, nem irmãos, nem esposas, nem amantes, mas espíritos beatos em Deus. Em suma, a outra vida é o perfeito oposto da vida terrena, que se perdeu ou se está para perder e que, ainda que única, aquela única vida, brama. Nós não reclamamos por termos em troca da criança perdida, da criança que enchia e fazia traquinices pela casa, um anjinho, no qual aquela criança se tenha transfigurado e tornado ireeconhecível; não reclamamos a mulher angelicada cujos lábios não beijámos, mas aquela que beijámos na vida. Impulsos egoístas, bem o sabemos, e que é preciso vencer, e vencer no pensamento da imortalidade. No entanto, exactamente por isso, da imortalidade purificada das escórias egoístas que a tornam contraditória, da imortalidade que a filosofia nos promete, a qual afirma, também ela, a imortalidade ultra-terrena e supra-individual, e demonstra que qualquer dos nossos actos, mal esteja concluído, se destaca de nós e vive uma vida imortal, e nós próprios (aqueles que realmente não somos outra coisa senão o processo dos nossos actos)somos imortais, visto que ter vivido é viver sempre. Pensamento que me parece mais consolador que o das religiões, pois diz o mesmo que elas dizem, mas di-lo de uma maneira mais clara e segura. Por que razão uma consolação clara e segura terá de ser menos válida que uma outra obscura e incerta?

Benedetto Croce, in «Etica e Politica»

sábado, 19 de dezembro de 2009

O sol è grande e o vento arrebata as folhas que violentamente se precipitam no alcatrão de uma estrada de estios longínquos. Sonhava com estios que me tirassem a roupa e me transportassem para longe. Desde que me conheço que sei não ser este o meu lugar, mas o pior è que também não sei qual è o meu lugar. Por isso vagueio, por isso persisto em buscar qualquer coisa, uma qualquer imprecisão que desconheço, mas que seguramente me permitirá um encontro. Não deve ser casual o facto de me dispersar facilmente diante das coisas comuns, tornando-as muitas vezes complicadas. Sem razão eu sou outro e adquiro características diferentes de mim mesmo em circunstâncias por vezes semelhantes. A minha ironia corresponde a uma necessidade vital de confrontar-me de forma sistemática com os poderes da argumentação. Argumentar corresponde a um processo de distanciação, muitas vezes profunda, entre as minhas teses temporárias e a perspectiva de as poder modificar. Quando me refiro aos meus problemas, estou sinceramente a nomear uma categoria de condições que trago comigo e para as quais procuro respostas. Eu sou da espécie daqueles que não têm um chão seguro, que sabem que qualquer certeza è suspceptível de ser aperfeiçoada, nem que seja pelo simples facto de poder ser contrariada de forma absoluta. O meu desafio è este e tem que ver em primeiro lugar comigo próprio. Por isso argumento.
No meio do caminho havia uma selva escura, não que me atormentasse a selva, mas as raízes profundas das suas árvores que escondidas agitavam a minha estrutura em construção. Pelos caminhos sinuosos da selva eu percorria um calvário de inseguranças que mais não eram do que a incapacidade de me deter a mim próprio no meu cogitar leviano. Não sei por que terei agitado o vaso da tranqulidade, não sei por que terei deixado verter a terra que me servira de suporte. Tudo aconteceu em mim e è comigo que me tenho de reencontrar. Escrevo porque uma serenidade subita me tomou e me permitiu alcançar o primeiro degrau da ordem interior. Que dizer de alguém que tem tudo e não descansa por atingir sempre mais. Eu vejo a morte acordar todas as manhãs, trago-a comigo e rio dela enquanto posso, mesmo que seja por pouco tempo. Ao mesmo tempo, prossigo em desafio, troço e desdenho, sabendo da sua irreversibilidade. A selva de que falo, persegue-me como se de uma figuração da morte se tratasse, agora que me encontro perdido, ela actua como um vírus tirânico, assola-me o espírito. O mais desconcertante è a minha insanidade que me faz transportar sistematicamente a um lugar outro em que eu sei que serei capaz de me iludir, julgando-me, mesmo que por breves momentos feliz vencedor de uma contenda sem história. Dentro de mim encontro razões para a necessidade vital de me alhear da inexorabilidade de um encontro, na fugacidade das coisas que apenas se deixam tocar.
Fazia muito calor. Um calor anormal para aquela época do ano. Noutras circunstâncias, teria sido capaz de se meter no carro e de partir à procura de uma praia onde não corresse riscos de encontrar alguém conhecido. Transpirava mesmo enquanto permanecia quieto. Bem vistas as coisas, podia agora aproveitar para ler um daqueles livros que sempre deixara para trás, enquanto aspirava uns sumos de limão muito açucarados. No entanto, à lembrança apenas lhe ocorriam pequenas histórias, entrecortadas por associações que lhe impossibilitavam atingir um final. Lembrava-se de alguns familiares, das suas características particulares. De um irmão que vivia numa cadeira de rodas desde os sete anos, de um avô que desde pequeno lhe alimentara o gosto pela aventura que ao mar se associava na sua terra natal. Havia, contudo, um espaço do seu raciocínio que ele ainda não conseguia alcançar. Ainda não era capaz de verbalizar os movimentos instintivos que sentia em determinados momentos em que o discernimento se lhe tolhia e apenas concedia a existência de um vaguear vazio que muitas vezes o fizera abeirar do abismo. Permanecia sentado numa enorme poltrona que Lorenzo comprara em Porta Portese no fim-de-semana anterior. Dissera-lhe que fora uma pechincha e que a comprara a um casal de filipinos com ar de esfomeados. Ao longe parecia rumorejar a cidade. O lugar, sentia-o Filipe, apresentava-se-lhe propício à errância. Desde muito jovem que se habituara a andar sem destino. Os amigos chamavam-lhe carinhosamente Stanton, a partir da sua admiração por um filme dos anos oitenta em que havia uma personagem que caminhava sem destino pelas terras áridas do Texas.
De repente, deixou de estar sozinho. A irmã de Lorenzo viera buscar alguma roupa de cama para poder acomodar convenientemente uns hóspedes que chegariam no dia seguinte. Filipe nunca simpatizara com Ilaria, mas esforçava-se por manter a cordialidade quando se encontrava com ela. No fim de contas, só teria de se relacionar com ela enquanto permanecesse naquele apartamento. Pela manhã, enquanto se dirigia para a Universidade, pensava sempre em Madalena e nos meninos. Aos poucos tinha concluído que eles eram tudo aquilo que o ligava à sua terra natal. Aos poucos tinha compreendido que a sua terra era aquela em que em cada momento se encontrava. Ainda perplexo com a descoberta, pensava na diferença que existe em conjecturar uma situação e vivê-la de facto. Descobrira que facilmente conseguiria sair para qualquer lado a qualquer momento e que o maior peso que teria de carregar seria o de si próprio e das suas constantes inquietações. Tamanha descoberta provocou nele o gosto por olhar do lado de fora as coisas que mais intimamente sentia. Tornara-se um ser silencioso. A disciplina da palavra conhecia-a agora ele intimamente. Sabia que toda a palavra podia ser diferentemente utilizada consoante a situação em que fosse pronunciada.
Era uma vez uma flor que brilhava num terreno baldio. Eu contemplei essa flor. Não que ela possuísse uma cor viva, ou sequer que tivesse dimensões exageradas. Tratava-se simplesmente de uma flor. Num primeiro momento limitei-me a contemplá-la. Aos poucos fui gradualmente dando conta da sua imensa singularidade. Era flor. Apenas fui capaz de a sentir, tocar, cheirar, mas não sabia dizê-la. Até porque aquela flor não me recordava nenhuma outra flor que alguma vez tivesse visto, mesmo que fosse igual a tantas outras. A recordação da imagem daquela flor apenas me trazia à memória um campo verde, inexistente, e o som da voz de um rapaz, ao longe. E música, continuamente música. Gostava de descrever esta ideia de flor que de mim se apoderara, mas não sabia como. Apenas sabia que, para a descrever, teria que determinar os nexos que em mim se criaram entretanto e que estavam fora dela. Isto é, na vontade de mostrar a flor, eu não estava senão a traí-la, porque aquilo que eu nela observava não se encontrava nela, mas numa espécie de mentira que eu sentia como verdadeira. No fundo eu interpretava a flor. Não tenho, no entanto, a certeza de que estivesse a ser mentiroso.
O processo em que desenvolvia a minha observação tinha em conta, mais do que a flor, uma certa imagem que em mim e de mim mesmo eu criara. Em vez de interpretar a flor, interpretava-me a mim próprio. Ou pelo menos interpretava qualquer coisa que existia dentro das minhas recordações. Poder-se-á dizer que, a um certo nível, a flor desempenhou uma função e que se encontrava naquele lugar para provocar em mim uma espécie de memória adormecida.



"Car les impressions suivantes ne le sont plus [originais]. Je collectionnerais pour les romans les reliures d’autrefois, celles du temps où je lus mes premiers romans et qui entendaient tant de fois papa me dire: “Tiens-toi droit!” Comme la robe où nous vîmes pour la première fois une femme, elles m’aideraient à retrouver l’amour que j’avais alors, la beautè sur laquelle j’ai superposé trop d’images de moins en moins aimées, pour pouvoir retrouver la première, moi qui ne suis pas le moi qui l’ai vue et qui dois céder la place au moi que j’étais alors, s’il appelle la chose qu’il connut et que mon moi d’aujourd’hui ne connaît point."

Até que ponto será possível afirmar a necessidade da memória como único meio, única estratégia redentora? Nesta passagem da Recherche, existe uma tese embrionária: a de que a única imagem verdadeira é a primeira, aquela que guardamos de um primeiro encontro, na medida em que, a esta, apenas poderão suceder outras imagens só que reveladoras de uma perda. A perda do momento inaugural. Proust afirma que, na prática, só se nasce uma vez, mas que se pode renascer constantemente. Isto é, a partir do momento em que se afirma no texto que o “moi qui ne suis pas le moi qui l’ai vue et qui dois céder la place au moi que j’étais alors”, é conveniente esclarecer que, de um ponto de vista da “argumentação redentora”, o autor, por mais que aponte para um desfalecimento gradual em relação ao primeiro encontro, ele sabe também que o eu que ele é agora é outro e que, até como forma de minimizar os efeitos da perda, podemos evocar sempre um ser-se outro em que o tempo nos transforma e que nos permite, por sua vez, aceder a uma distância que, separando as diferentes imagens de uma mesma circunstância, obtidas em momentos e em graus diferentes, nos proporciona a possibilidade de um recomeço.
O recomeço, conforme é aqui sugerido, é o espaço vital em que a vida pode continuar, o espaço que permite a verbalização, a narrativa. Talvez seja neste registo que possamos prestar atenção à seguinte passagem de Bloom:

"In una delle sue formulazioni più vicine allo stile di Amleto, Nietzsche afferma che le cose per cui riusciamo a trovare le parole sono già morte nel nostro cuore; nell’atto del parlare vi è dunque sempre una sorta di disprezzo"

Acontece que, de certo modo, a afirmação de Bloom, remete para uma ideia, segundo a qual, apenas seremos capazes de falar daquilo que já sentimos como morto, de coisas mortas. Nesta perspectiva, falar, “trovare le parole”, constitui o gesto redentor por excelência, único capaz de gerar recomeços. Ocorre-me pensar em traumas e superações de situações traumáticas.
No caso concreto de Proust, a estratégia parece ser a de procurar na palavra a possibilidade de, estando em contacto com a morte, ser-se capaz, por um processo de anamnese, vislumbrar aquilo que constitui o presente, partindo de impressões do passado. Estaremos a falar de interpretação do passado e do modo como, por via dessa interpretação do passado, damos conta de como a distância pode ser libertadora, mas também e fundamentalmente das alterações que se verificaram no eu que já fui, de tal modo que se repercutem vivamente no eu que sou agora.

Ampulheta

Imaginei uma ampulheta. Uma ampulheta que media a duração do sono de Alice. Nunca no texto se fala dessa ampulheta e só Alice a conhece. Imaginei esta ampulheta a partir daquilo que, durante a discussão, foi dito sobre “sobrevivência”. Porque sabe da sua existência (da ampulheta), Alice reconhece que o seu tempo de sono está a terminar e, por esse motivo, sabe que tem de acabar com o “recreio” e dar um “murro na mesa”. O tribunal em que Alice se encontra é o melhor dos tribunais, na sua perspectiva, na medida em que, dando a possibilidade a outrem de se sentir juiz, é ela quem de facto determina a sentença final e escolhe o momento para o fazer. Alice é a dona do recreio. É no exercício deste papel que ela reconhece o momento em que tem de intervir de forma a garantir a sua sobrevivência.
A propósito de sobrevivência e interpretação, o colega Pedro (não estou certo que seja este o seu nome), apresentou o exemplo daquilo que decorre de um combate de boxe. Na sua perspectiva, durante um combate de boxe não será possível interpretar o que acontece, na medida em que, ao fazê-lo o pugilista perde o momento e arrisca-se a perder. Eu próprio sugeri a possibilidade de fazer uma antecipação do combate, em termos estratégicos, parecendo-me que, ao proceder-se deste modo, se estará a interpretar por antecipação. Será que podemos interpretar por antecipação?
Como o pugilista, Alice, neste sentido, aproxima-se mais de uma posição em que tem de reagir a acontecimentos imediatos. A táctica do pugilista é ditada previamente, perante o estudo do adversário; a táctica de Alice parece resultar desse facto singular que consiste em ela ser a única criatura que tem conhecimento da ampulheta.
Julgo, então, ter compreendido o sentido das palavras do colega Nuno, quando afirmou que Alice não interpreta os poemas que vão surgindo ao longo da obra. Eu também sinto alguma dificuldade em assumir desde logo uma aproximação entre respostas imediatas a estímulos e interpretações. Mesmo que essas respostas imediatas a estímulos possam envolver uma leitura dos acontecimentos a partir da história pessoal de cada um.
Por esse motivo sugeri a ideia de intuição.
De qualquer maneira, julgo que a discussão mantida ao longo da sessão não terá andado longe de se tentar perceber afinal de contas de que ferramentas nos podemos ou devemos servir quando interpretamos. Mais do que saber das maneiras que podemos ter de interpretar textos, julgo que foi de ferramentas que podemos usar para interpretar que andámos à procura.
Alice, pelo contrário, parece saber que, para interpretar, apenas precisa de uma ampulheta.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Esta voz vem de longe, de muito longe, de lugares que às vezes parecem escondidos e que, de repente, aparecem à nossa frente. Reencontramo-nos com a volúpia de uma sugestão de vibrato, tão suave, tão mansa, tão prometedora.
O desacordo entre alguém que vai directamente ao encontro da palavra e alguém que vai ao encontro de particularidades da palavra, parece ser o centro do problema da distinção entre “uso” e “menção”. As confusões resultantes do confronto destas duas palavras emergem por exemplo da distinção entre nome e coisa em si. Com efeito, quando falamos de menção referimo-nos a descrições, erróneas ou verdadeiras, de coisas; quando falamos de uso, estamos a ter em consideração a coisa, aquilo a que nos referimos especificamente. Deste modo, à menção estará associada a ideia de uma intencionalidade particular, que, por si, é susceptível de criar ambiguidade, uma intencionalidade que apenas naquele que enuncia um discurso é susceptível de encontrar uma justificação. Por sua vez a nomeação, enquanto uso de uma coisa em si, centra-se no objecto observado, em concreto, na sua especificidade particular e geral. Pelos motivos apresentados podemos, então, verificar a relação que pode ser estabelecida entre um rótulo e aquilo a que o rótulo alude. Não sendo necessário que o rótulo espelhe aquilo a que se refere, ele é uma forma de apresentação intencional, que apresenta características particulares da coisa rotulada, não a referindo, contudo, naquilo que ela é em si mesma, mas, partindo de uma característica particular dela extraída, a caracteriza numa determinada perspectiva.
Mesmo correndo o risco de não ser muito exacto, julgo que, num certo sentido, o exemplo das ocorrências habituais da expressão “o material tem sempre razão”, pode ilustrar o que acabo de afirmar. Todos nós já ouvimos em determinadas circunstâncias alguém dizer que “o material tem sempre razão”, nomeadamente quando numa oficina, o mecânico nos explica a razão de um determinado problema no automóvel. Dizer-se que “o material tem sempre razão”, entendido como dizer-se, por exemplo, que “o tubo de escape tem sempre razão”, implica ter em consideração a coisa em si, o tubo de escape, sendo que, no momento em que o mecânico se refere a esta peça do automóvel, não está senão a referir-se a ela especificamente, enquanto origem de um problema. De outro modo, a circunstância de um automóvel circular com um tubo de escape deteriorado suscita, pelo menos o incómodo da vizinhança. O ruído provocado por um tubo de escape estragado pode, em si, sugerir a nomeação do problema através de uma menção, imaginando que, em virtude de o sr. Alfredo ter o tubo de escape do seu automóvel estragado, alguns vizinhos terem passado a referir-se a ele como o “escapes”, ou mesmo a chamar-lhe “escapes”, estabelecendo, deste modo, uma maneira de o mencionarem. Nesse sentido, quando alguém, aludindo ao sr. Alfredo, se refere ao “escapes”, não está a fazer mais do que a apresentar uma designação intencional que apenas é susceptível de ser representada pelo sr. Alfredo.
A um outro nível, podemos imaginar que, com o tempo, a menção “escapes” se possa estender a outras situações e que se venha a tornar, no contexto do sr. Alfredo e dos seus vizinhos, sinónimo de alguém que tem o tubo de escape estragado e, deste modo, apesar de reveladora de uma gramaticalidade questionável, uma afirmação como “o “escapes” vai amanhã ao dentista”, adquire um valor particular que a torna compreensível por todos e cuja tradução se encontra implícita no modo como a palavra “escapes” é utilizada.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Interpretar

Num texto de Italo Calvino existe uma personagem que afirma a sua necessidade de reler os livros, visto que em cada releitura lhe parece ler pela primeira vez um livro novo.
Confrontamo-nos muitas vezes com o facto de o mesmo texto se revelar de maneiras diferentes a cada releitura e, desse modo, um texto que lemos aos quarenta anos aparece-nos como coisa diferente do mesmo texto lido vinte anos antes. O facto é que o texto está lá, não mudou. Aquilo que mudou foi o seu leitor. A leitura, a interpretação é o lugar onde em permanência procuramos estabilizar o nosso entendimento do mundo e dos livros que lemos. Os textos estão fixados apenas pelo envólucro do livro de papel, mas as estratégias interpretativas variam. Ao leitor cabe engendrar estratégias para pôr em discussão o texto e estabilizá-lo numa determinada comunidade de leitores. Interpretar envolve fazer escolhas e nessas escolhas o leitor tem um papel determinante.
Dante propõe no Convivio quatro etapas para a construção de uma interpretação: literal, alegórica, moral e anagógica. Ao assim proceder, ele afirma que existe uma primeira fase na observação de um texto, que passa pela identificação dos significados das palavras, pelo primeiro contacto com o texto. Mais adiante, define como segunda etapa, o sentido alegórico de um texto, a partir do qual se pode intuir um significado aparente. Só posteriormente surgem os sentidos moral e anagógico do texto. A estes dois últimos sentidos estarão associados aspectos relacionados com a experiência do leitor e com a sua maneira de observar o mundo.
A interpretação de um texto envolve, por outro lado, um momento intuitivo, em que a observação, embora partindo do sentido literal do texto, pressupõe uma tentativa de fixação dos problemas que resultam de uma primeira leitura e permite estabelecer as primeiras propostas para a sua resolução. A este momento intuitivo seguir-se-á um momento crítico, que conduz o momento intuitivo a um patamar superior, pondo à prova as intuições provenientes do momento inicial.
A interpretação não existe independentemente da experiência do leitor. Ainda assim, a experiência do leitor é ela própria o produto de um conjunto de assumpções interpretativas. A interpretação é uma actividade em permanente actualização, cabendo ao leitor engendrar formas de validação do sentido do texto, com base na sua experiência pessoal, tendo em vista uma comunidade de leitores específica. Esta validação a que me refiro é fundamental, visto que sem ela, não existe verdadeiramente aquilo a que chamamos interpretação, na medida em que, apesar de se tratar de uma experiência pessoal, uma interpretação requer um reconhecimento, não dos seus argumentos, mas da sua fixação, mesmo que temporária.
Todos nós fomos contactando ao longo da vida com interpretações variadas de textos variados, que não constituíam propostas de leitura, mas uma espécie de assumpção da “leitura verdadeira” de um texto. Este modo de funcionar, facilitava, de certo modo, a tarefa do leitor. Contudo, quem assim procede parece ter a aspiração de fixar definitivamente um texto, como se fosse possível fixar definitivamente a vida. Ora, um dos problemas da interpretação resulta do facto de o terreno em que ela se exerce parecer muitas vezes movediço, sendo que, nessa medida, o papel do leitor que interpreta assume um lugar determinante na sua actualização.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Por vezes, julgamos acreditar que a memória é uma coisa fiável. Mas não é. Quanto muito, a haver alguma fiabilidade na memória ela será selectiva e corresponderá à identificação de aspectos particulares que, independentemente da vontade, mais vincadamente permaneceram em nós. Além disso, quando nos falha a memória, somos muitas vezes tentados a elaborar uma declaração de princípio para nós próprios, como forma de tentarmos superar o sintoma de fracasso em que se revela essa falha, nomeadamente recorrendo a afirmações do género da que Alice pronuncia quando se encontra na floresta: “I will remember, if I can! I’m determined to do it!” Afirmações deste género são frequentes, mesmo que saibamos que o verbo lembrar não encerra uma acção. Contudo, somos capazes de reconhecer situações deste tipo na vida do dia a dia.
O conjunto das invenções do Cavaleiro Branco aparece como o modo como na personagem se exerce a ideia de acto mental. Para o Cavaleiro, o simples facto de ele pensar alguma coisa, corresponde de imediato à invenção dessa coisa, na perspectiva de que inventar é qualquer coisa que se parece com ter um plano ou uma ideia, não existindo na forma de agir da personagem uma diferença entre ter uma ideia, ou uma teoria ou passar-lhe uma coisa pela cabeça. Assim sendo, na medida em que, a partir do momento em que aquilo que é inventado apenas existe na sua cabeça, uma personagem assim torna-se esquiva em relação à ideia de discussão.
Além disso, é interessante verificar o conceito de experiência no Cavaleiro Branco. Entendendo que, para o Cavaleiro, a sua prática é mental, a sua experimentação existe apenas ao nível daquilo que ele pensa e, deste modo, ele é o lugar onde ocorrem experiências unicamente mentais, na medida em que não compreende a relação entre mente e corpo.
De certa forma, aquilo que tenho vindo a afirmar está presente no poema contido no capítulo VIII de Through th Looking-Glass. Embora nos seja apresentado como um diálogo, este poema não o é. Não é um diálogo na medida em que, apesar de nele nos ser apresentada uma personagem que fala, aquilo que dele retiramos é o exercício mental do Cavaleiro, enquanto enunciador do discurso. É no discurso em si que se focaliza o Cavaleiro e não na figura do “aged aged man” que é referida no poema. A construção mental do Cavaleiro pressupõe que o “aged aged man” nomeado seja uma figura ligada ao mundo, enquanto parte do todo em que está inserido. Em contraponto, o poema corresponde a um momento de distracção, por parte do Cavaleiro. De uma distracção que, no fundo está de acordo com os seus procedimentos habituais, enquanto inventor. Deste modo, o poema aparece como uma extensão e como um exemplo de alguém que está sempre a pensar noutra coisa, tal como a certa altura nele se afirma: “But I was thinking of a way/ To feed oneself on batter,” (na estrofe 5). O “aged aged man” faz parte do poema, mas enquanto figura por quem se passa enquanto se faz outra coisa, enquanto parte da paisagem, ao mesmo tempo que, para o Cavaleiro Branco o importante é o seu caso mental, a sua distracção inventiva.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Não é minha a intenção de engendrar uma teoria do sonho. Contudo, julgo que poderei propor alguns tópicos de discussão acerca de uma eventual teoria do sonho.
O poema final de Through the Looking-Glass and what Alice found there parece sugerir a ideia de que as únicas crianças boas, são as crianças mortas, quietas, que “não dão trabalho”. Se nos apropriarmos de alguns conceitos de Freud, podemos pensar que o sonho de Alice pode constituir uma espécie de descontracção da censura, momento durante o qual, servindo-se da trégua motivada pelo sono, a personagem transporia a barreira da repressão. Quando a acção decorre ao sabor do sonho, torna-se indiscernível a distinção entre sonho e realidade, visto que, no sonho, tudo adquire uma dimensão de verdade. É nesta perspectiva que Alice, ao longo das duas obras, cresce, também do ponto de vista da relevância do seu papel, nomeadamente quando ascende à condição de “rainha”.
No final da obra, o “fazer de conta” por parte de Kitty recupera a circunstância que ocorre no primeiro capítulo de Through the Looking-Glass, quando Alice afirma ter discutido com a irmã por esta não ter aceite a sua proposta para “fazerem de conta que eram reis e rainhas”. De certo modo, quando, mais adiante, Alice, dirigindo-se a Kitty, afirma “Let’s pretend that you’re the Red Queen”, ela parece estar a assumir a sua gata como uma solução de recurso. O que decorre desta passagem da gata a Rainha de Copas é o castigo a que Alice a condena, colocando-a na “Looking-Glass House”. Ora, no final do último capítulo de Through the Looking-Glass, a reacção da gata parece corresponder a uma espécie de resposta ao castigo do primeiro capítulo. Sendo assim, na perspectiva de que é Alice quem sonha e que, por via do sonho, é capaz de comandar as acções, o facto de Kitty fingir introduz uma variável que me parece digna de atenção.
Apesar de ser comum podermos atribuir interpretações a determinadas acções e gestos de animais, não poderemos afirmar com toda a certeza que aquilo que intuímos acerca desses gestos corresponda ao que se passa, de facto, com o animal em concreto que observámos. Contudo, uma situação deste género é susceptível de ser entendida como verdadeira ao nível do sonho. Neste caso, se entendermos que, no capítulo final de Through the Looking-Glass, Alice acordou, saindo, desse modo, do “outro lado do espelho”, os gestos da gata, nestas novas circunstâncias não deveriam de continuar a ser interpretados dentro do mesmo universo de referências, que, presumivelmente moldariam as reacções de Alice. De certo modo, Alice, mesmo acordando, parece ter dificuldade em estabelecer os limites entre aquilo que é próprio do sonho e aquilo que o não é e, por isso, o seu registo perante Kitty, não parece modificar-se.
A interrogação final colocada no final do capítulo XII de Through the Looking-Glass remete, no fundo, para a eventualidade de em certas circunstâncias se tornarem problemáticas as distinções entre “estar ou não estar” a sonhar e “estar ou não estar acordado”.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O princípio da individuação está presente, enquanto problema, no diálogo entre a pomba e Alice no capítulo V de Alice’s adventures in wonderland e resulta do facto de, ao afirmar ser indiferente que Alice seja uma “little girl” ou “a serpent”, a pomba, no fundo, provocar uma reacção particular de Alice. Como podemos observar a partir da leitura da obra, Alice vai sendo várias coisas sem que esboce uma reacção como aquela que nesta passagem revela. A questão que se coloca, entre outras, é a de que Alice parece pretender ser reconhecida pela pomba como aquilo que ela é, ou por aquilo que ela considera ser. Contudo, não estou certo que ela saiba “o que é”. É esse o seu problema. Passando por várias transformações e diferentes modos de ser nomeada, Alice parece não ser capaz de responder para si própria à pergunta: o que és tu, Alice? Perante esta circunstância, a afirmação da pomba proporciona a Alice a necessidade de ser capaz de se distinguir dos outros e de se reconhecer em si própria. Esta é uma necessidade primordial e um objectivo a cumprir.
De certo modo, a Alice falta um sentido de totalidade que a possa fazer repousar numa identidade pessoal básica, ao nível, por exemplo, da utilidade que essa identidade pode ter para a sua vida prática. Por outras palavras, não sendo capaz de se identificar, nem com aquilo que lhe é dito pela pomba, nem com a construção mental que tem de si mesma, Alice reage, afirmando uma especificidade que não lhe é dada por um nome, mas por uma categoria particular que, eventualmente, poderá ser formulada em termos não muito distantes de: Alice é igual a alguém que não procura ovos, muito menos os da pomba.
Esta definição de Alice, no entanto, peca por ser redutora.
Ao longo da obra encontramos respostas incompatíveis entre si à pergunta “o que é a Alice?”, respostas que escapam àquilo que mais facilmente poderia ser dito: que simplesmente, Alice é algo que depende das circunstâncias. Neste sentido, Alice é mostrada em constante evolução. Uma evolução que a faz ser constantemente outra coisa. Deste modo, da resposta “depende” parece emergir a ideia de que Alice vai sendo isto ou aquilo e que, por esse motivo, a sua definição depende das circunstâncias e das criaturas com que se vai cruzando.
A partir daquilo que acontece a Alice, lembrei-me de uma passagem do Breviário de estética, em que Benedetto Croce afirma que “a vida ulterior do espírito, renovando e multiplicando os problemas, torna, já não falsas, mas inadequadas as soluções precedentes, parte das quais cai no número daquelas verdades que se subentendem, e outra parte deve ser retomada e integrada.” A impressão que sou tentado a registar é a de que, muito mais do que um problema para a Alice, o facto de existir uma dificuldade na sua descrição é um problema para quem pretenda encontrar um sentido para a obra, na medida em que, devido à necessidade de categorizarmos uma coisa, de a arrumarmos, corrermos o risco de não a chegar a intuir da forma mais adequada, que consiste em perceber a sua evolução e o modo como esta evolução, partindo de uma ocorrência, poderá ou não relacionar-se com o que a precedeu e com aquilo que se sucederá.
Afirmo que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte.
Platão, República, 338c

Esta afirmação de Trasímaco parece ecoar no modo como a justiça é exercida no capítulo 3 de Alice’s adventures in wonderland, no momento em que Dodó sugere que todos participem numa “Caucus-Race”. A sugestão de Dodó resulta do insucesso da proposta do Rato, que pressupunha que todos ficariam secos se ouvissem histórias enfadonhas. No texto, a identificação da autoridade, primeiro do Rato e depois do Dodó, resulta à primeira vista pouco explicada: o Rato porque “seemed to be a person of some authority among them”; o Dodó, porque fala num tom solene e se põe de pé. À partida, estas parecem ser razões pouco credíveis para que a alguém seja atribuído um estatuto de autoridade. Contudo, no contexto em que a acção decorre, estas razões são susceptíveis de ser entendidas como boas. Num certo sentido, o nível destas explicações não difere muito daquele em que o Gato define que é maluco, através da caracterização que apresenta do cão, ao afirmar que o cão não é maluco porque rosna quando está zangado e que dá ao rabo quando está feliz, enquanto ele, Gato, rosna quando está feliz e dá ao rabo quando está zangado. Esta definição de maluco, se lida à luz de uma ideia que pressupõe que a um maluco é permitido dizer tudo sem que se lhe exija um nexo, parece ser susceptível de ser associada àquilo que acontece no episódio da “Caucus-Race”, acima mencionado.
Esta situação aproxima-se também daquilo que acontece no capítulo VIII, durante o jogo de croquete, e adquire visibilidade maior no momento em que, lamuriando-se, Alice diz ao Gato que “não lhe parece que eles joguem como deve ser”. Alice tem a noção de que num jogo, como numa discussão, deve existir uma ordem, que devem existir regras claras, ao mesmo tempo que constata que não é isso que acontece no jogo em que ela participa naquele momento.
Alice sabe que a ordem natural de uma discussão pressupõe à partida a ideia de que existem regras e que o exercício dessas regras é executado pela justiça. Neste sentido, a justiça consiste numa prática de actuação que envolve várias partes, todas elas sujeitas a regras de debate, de organização. Ora, a partir do momento em que as regras são pouco claras, ou mesmo arbitrárias e sujeitas aos desejos de alguém que exerce a autoridade, deixa de haver um critério nítido de justiça, se enquadrado ao nível da experiência pessoal de Alice. É esta situação de arbitrariedade que a desconforta e que lhe frustra as expectativas, visto que os critérios de atribuição de sentido e de ordem se encontram postos em causa, partindo da experiência anterior da protagonista.
A “conveniência do mais forte” a que Trasímaco faz referência pode ser um meio de exercer um poder ilegítimo, assente na arbitrariedade das decisões, de acordo com os interesses daquele que exerce a autoridade.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Suspeito que Camilo Castelo-Branco não tivesse um projecto prévio em relação às Memórias do Cárcere. Pelo menos no sentido de pretender determinar certos padrões de comportamento, com o seu texto. Camilo conhecia demasiado intimamente os diferentes e imprevisíveis matizes do comportamento das pessoas, para ter a veleidade de pretender antecipar ou influenciar comportamentos. Por isso, o seu texto contém descrições intrincadas, finas, das pessoas que nomeia. Sabendo da impossibilidade de determinar um modo de agir particular nos outros, porque ele próprio era dado às flutuações do momento que a vida lhe oferecia, restava-lhe descrever, como se fosse "em carne viva", processos e situações que aconteciam nas vidas dos outros e também na sua. De vidas entregues à circunstância e ao acaso derivado da sua condição. O livre-arbítrio a que o homem tem de dar resposta em todos os movimentos do seu espírito é assumido como uma vantagem, mas também como um modo de dar resposta à liberdade de proceder a escolhas e de reconhecer as dificuldades que a elas muitas vezes são inerentes. É a liberdade do espírito, do seu próprio e dos outros que é mostrada ao longo de Memórias do Cárcere.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009


O que me intriga no episódio que decorre entre Alice e o Gamo, na floresta do esquecimento, não é tanto o facto de o Gamo reagir de forma brusca perante a visão de uma human child. O que me intriga é o facto de a memória, ou a ausência dela, ser selectiva. O facto de não haver memória, poderia implicar a amnésia absoluta e completa, inclusivamente em relação ao modo como se fala ou se raciocina. Contudo, não é disso que se trata quando lemos esta passagem de Through the Looking-Glass. Por assim ser, as personagens revelam-se impreparadas quando confrontadas com situações inesperadas. Refiro-me às criaturas que se vão sucedendo ao longo da obra, na sua generalidade, e não tanto em relação a Alice, em relação à qual, a este respeito, tenho algumas dúvidas.
Da sucessão de acontecimentos inesperados emerge uma forma particular de resolução de problemas que envolve a ideia de separação, que, por sua vez, conduz a resoluções. As personagens não se debatem com problemas existenciais quando têm de fazer escolhas. Perante o inesperado, reagem de forma a resolver o eventual problema que desse facto inesperado possa ter resultado. Assim acontece, por exemplo, com o bebé-porco e com a reacção do Gamo perante a human child. Em ambos os casos, a solução é encontrada de imediato, sem hesitações. Se pensarmos que uma das maneiras que temos para resolver situações imprevistas reside no modo como, a partir do nosso vocabulário particular, somos capazes de as descrever, estes exemplos não estão ao mesmo nível, na medida em que, enquanto o Gamo é capaz de imediatamente chamar pelo nome a human child, Alice não encontra no seu vocabulário particular um modo suficientemente eficaz para descrever aquilo que lhe aparece nos braços. Enquanto que o Gamo é capaz de identificar a coisa que tem diante de si através de uma categoria, que a descreve, com Alice não acontece o mesmo, perante o bebé-porco. As reacções das personagens, contudo, talvez possam ser explicadas à luz da ideia de “fazer de conta”, que podemos associar a Alice, mas não ao Gamo. Por outras palavras, o facto de não ser capaz de encontrar uma descrição susceptível de ser acomodada no seu vocabulário particular, não impede Alice de continuar o seu percurso. Pelo contrário, no caso do Gamo, a identificação da categoria a que pertence Alice, condu-lo à fuga. Será que, o facto de sermos capazes de nomear nos traz mais problemas do que vantagens? Não sei como responder a esta questão, mas, na medida em que, “fazer de conta” pode ser uma estratégia para contornar situações complicadas, Alice terá sempre uma maior capacidade de adaptação a situações novas do que o Gamo. Nas suas deambulações, Alice descobre aquilo que é, em si mesma, por oposição aos outros que vai encontrando e, na distinção daí resultante, vai sendo gradualmente capaz de se afirmar na sua especificidade.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Sou de um tempo em que no Liceu se estudava Português sem que fosse estritamente necessário ler as obras literárias contidas no programa da disciplina. O importante, nessa altura, era conhecer a história literária e, nesse sentido, mais importante do que ler Os Maias, Amor de Perdição, ou outra qualquer obra, convinha ler a História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes. Era mais importante conhecer a evolução da literatura do que os textos em si mesmos. No limite, um aluno podia concluir com uma boa classificação o Ensino Secundário, sem conhecer sequer as obras que enfeitavam o programa da disciplina de Português. Eu conhecera as obras do Programa com antecedência, porque gostava de ler. Mas propositadamente, entretido numa provocação adolescente, dei-me ao trabalho de não as ler naqueles anos, substituindo-as por um programa pessoal que incluía obras dos mesmos e de outros autores. Nessa altura constatei que, de facto, podemos não ler uma obra para dela falarmos, do mesmo modo que posso falar da dor de cabeça da minha vizinha do lado, por exemplo. Acontece que procedia desse modo sabendo da desonestidade intelectual em que incorria e levei-a até às últimas consequências, rejeitando mesmo ler aquelas obras no ano em que eram estudadas. Nesse ano eu não “aprendi” Eça de Queirós, nem Camilo Castelo-Branco, nem os outros autores, mas aprendi uma coisa muito mais importante para mim: quando falamos de alguma coisa, se queremos ser honestos, temos de a compreender nos seus cantinhos mais escondidos. Podemos ter menos para dizer, podemos ter menos margem para “delirar”, mas sabemos que, quando falamos de um livro é mesmo desse livro que estamos a falar e dos seus aspectos particulares. Aprendi a observar e a ser capaz de entender que, para falar de coisas genéricas, não poderei deixar de conhecer os seus elementos particulares, sob pena de nunca criar para mim um entendimento acerca da coisa observada, do livro, e não chegar a participar na sua discussão.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A leitura do diálogo entre Alice e Humpty Dumpty que ocorre no capítulo 6 de Through the Looking Glass, confrontou-me com o trabalho que esporadicamente faço de tradução e com aquilo de que não gosto quando traduzo. Com efeito, quando traduzo não posso deixar de ser um pouco como o Humpty Dumpty, devido ao facto de, chegado a um momento preciso, me ver obrigado a decisões que implicam uma certa forma de exercício de poder sobre um determinado texto. Acontece que o exercício da tradução é deflaccionário, na medida em que implica o recurso frequente a interrupções no processo de leitura, com vista a descobrir o sentido mais aproximado de palavras ou de frases e conjuntos de frases de um texto. No fundo, quando traduzo, não sou capaz de subalternizar a minha condição de leitor, habitualmente entretido em procurar adquirir o estatuto de participante em discussões nascidas de uma leitura. Em vez disso, quando traduzo, passo a ocupar o lugar de um poder de que não gosto, por não ser originariamente meu, e, por isso mesmo, sentir constantemente os grãos de areia escaparem entre os dedos da mão, com isso traindo a voz que se encontra presente no texto original. Do que acabo de dizer, resulta uma diferença fundamental entre mim e o Humpty Dumpty: ele sabe do poder que tem, eleva-o a uma dimensão superior e, desse modo, exerce a gosto o poder que lhe é conferido na determinação dos sentidos do texto. Apetece dizer que, no fundo, uma grande parte das pessoas é capaz de falar de tudo e a tudo se referir com “autoridade”, tal como a personagem.

sábado, 15 de agosto de 2009


sexta-feira, 14 de agosto de 2009

I

Falar de Job é falar de resignação. A resignação pressupõe a ideia de aceitação. Deus decide, Deus actua, Deus é o agente do destino a que, por via da sua condição, o homem está votado, apenas lhe restando o cumprimento de uma tarefa, ou a eventual aceitação do desígnio divino. É esta atitude de aceitação que Wagner repudia[1], considerando-a o grande mal da civilização ocidental. Contudo, será Job um ser resignado? Não creio que o seja, pelo menos nos termos de que aqui me sirvo. Na verdade, o homem feliz, que Job é, vai vendo a sua vida sofrer transformações sucessivas e surpreendentes, se entendidas à luz das suas crenças.
Em Arte e revolução[2], Richard Wagner aponta a resignação cristã como uma enfermidade civilizacional. Nesse texto, Wagner afirma o vigor da Arte, atribuindo-lhe como característica a alegria. Segundo este autor, à alegria provocada pela arte, enquanto entidade libertadora, opor-se-á aquilo que ele considera ser “o desprezo-próprio, a repulsa pelo carácter visível da existência, o horror face à sociedade”. Nesta perspectiva, Wagner coloca-se num ponto oposto àquele em que se situa o discurso do Eclesiastes e o próprio Livro de Job, na medida em que, ao assumir o vigor das acções humanas, ele recusa a ideia de que tudo esteja à partida concebido por acção divina.
À ideia de que a arte é alegria, corresponde a de que arte, no sentido de que Wagner se serve, é vida, a vida em si mesma, enquanto processo vital em permanente evolução e espaço em que se exercita o carácter festivo e luminoso da existência das coisas. No texto citado, Wagner considera que a resignação cristã é o mal maior dos homens, elevado mesmo a um mal civilizacional. Deste modo, para Wagner, o cristianismo impõe uma censura, impõe limites segundo os quais, ao homem, não é possível o entendimento da ideia de felicidade terrena. Enquanto contingência, ao homem apenas se permite o refrear as suas características naturais, a sua condição. Nestes termos, o homem apenas deve aspirar ao «bem» e ao «belo», sabendo que o contacto com qualquer destas circunstâncias lhe está vedado enquanto não ascender ao “Reino dos Céus”. Nesta premissa deverá a vida ser entendida como espaço de restrições.


II

Aquilo a que chamamos saber não é outra coisa do que perceber pela razão[3]

Sempre me intrigou a história de Job, o modo como em termos de exemplo a personagem se destaca pelo seu comportamento temente, mas incapaz de compreender os acontecimentos que se lhe vão deparando. O problema de Job, em grande parte, situa-se ao nível da descoberta da sua ignorância. Nos termos em que Santo Agostinho nos apresenta a ideia de sabedoria[4], poderemos pensar que o Job que tinha uma vida próspera e feliz, por isso sábia, encontra nos sucessivos desaires que o acometem a emergência da sua ignorância, da sua incapacidade para compreender, apenas diminuída pela fé que, apesar de tudo, nunca o abandona. O mistério de Job situa-se, então, no cruzamento entre uma razão que lhe mostra a desgraça e a sua fé que o acompanha e lhe permite uma certa forma de resignação. Por outras palavras, o seu mistério encontra expressão naquilo a que Harold Bloom chama “l’ironia del sublime ebraico, dove realtà assolutamente incommensurabili si scontrano senza soluzione possibile”[5]. Isto é, Job não encontra no seu passado razões para tão grande provação, para tão grande castigo. Por esse motivo se interroga:

De onde, pois, procede a sabedoria? E em que lugar se encontra a inteligência? Está vedado aos olhos de todos os viventes enxergá-la, até das aves do céu se oculta.[6]

Contudo, o próprio Job formula uma resposta reveladora de uma resignação, que apenas encontra na necessidade de compreender o que não é susceptível de ser compreendido senão pela fé, quando afirma que Ele então a viu [a sabedoria] e a deu a conhecer. Estabeleceu-a e esquadrinhou-a. Ao homem proclamou: “O temor do Eterno é a sabedoria, e saber apartar-se do mal é a inteligência.”[7] De qualquer modo, Job não compreende o motivo de sobre ele se ter verificado a alteração do modelo da relação entre pecado e punição em que julgava assentar a vida dos homens, perante o facto de sobre ele próprio ser exercida uma variante nova desta relação, segundo a qual ao protagonista não basta ser um homem honesto, temente a Deus e cumpridor da Sua vontade[8]. Job não sabe que os acontecimentos que sobre ele vão sendo lançados decorrem de um acordo feito no céu. Esta circunstância, não apenas abre uma leitura diferente acerca da vida e das regras de conduta a seguir, não apenas para Job, entendido individualmente, mas também para o leitor do texto e, apesar de para o protagonista a resposta, tal como vimos anteriormente, residir na obediência às regras reveladas por Deus, o facto é que até a própria Bíblia revela noutros textos respostas diferentes para o modo de encarar a vida e o sofrimento dela decorrente.
O exemplo de Job pode ser entendido no âmbito de um processo que decorre da sua especificidade em lidar com o infortúnio. Job, embora assediado naquilo que são as suas qualidades mais profundas, não desiste de acreditar, não desiste de pensar que não é iníquo, mesmo quando recorre à memória. É deste modo que Job aceita o desafio que lhe é lançado por Deus e, num certo sentido, se insere numa tradição que encontra, por exemplo em Abraão e em Jacob, os seus antecedentes[9].

III

Em Dia, de Elie Wiesel, parece dar-se uma actualização de Job, centrada na figura do protagonista. Com efeito, Eliezer, a personagem central, depois de ouvir o médico que o assistia dizer-lhe que era “preciso agradecer a Deus”, em virtude da recuperação favorável que tinha manifestado a um acidente, afirma: - Como se faz para agradecer a Deus?, e pensa: agradecer-lhe porquê? Já há muito tempo que eu deixara de compreender o que é que ele, o bom Deus, tinha feito para merecer o homem[10]. Acontece, porém, que esta actualização de Job, no sentido em que, enquanto neste a incompreensão perante os acontecimentos não perturba a sua fé, dá-se na exacta medida em que o protagonista de Dia encontra na experiência da memória a sua adequação ao silêncio. No caso de Eliezer, a incompreensão manifesta-se perante o facto de serem os homens os capatazes de um Deus adormecido, que, deste modo, abandona os seus, deixando-os à mercê de uma dupla punição: a que lhes é infligida pelos seus carrascos; e aquela que deriva da vergonha de ter sido escolhido pelo destino[11]. A ideia do protagonista do livro de Elie Wiesel é a de que Deus precisa do homem[12], na medida em que é necessário o exemplo para determinar uma espécie de aprendizagem do sofrimento e do modo como ao sofrimento o homem pode reagir. No caso de Job, a imagem é a da resistência absoluta na adversidade. Contudo, a experiência do protagonista de Dia é a de quem observou a luta sem tréguas pela sobrevivência e que a tudo se prestou para obter um naco de pão[13]. Por isso, Os outros, os que vão até ao fim do seu destino, já não ousam olharem-se no espelho, com medo que ele reflicta a sua imagem interior: a de um monstro que ri das mulheres infelizes e dos santos que estão mortos…[14]
É deste modo que Eliezer se considera um morto-vivo. Tal como aqueles que sobreviveram, enfrenta as penas de um sofrimento que não encontra forma de terminar. Os que já não ousam olharem-se no espelho são os mesmos que, tendo sido vítimas, participaram do sofrimento daqueles a cuja morte assistiram. O momento em que o médico pergunta a Eliezer a razão pela qual ele não quer viver corresponde à apresentação da personagem diante de si própria, visto que, reconhecendo a sua incapacidade para fazer compreender os segredos que guarda consigo, ele não deixa de escutar o apelo doloroso da sua memória e de acontecimentos que só podem ser compreendidos por alguém que os tenha vivido[15]. É este o estigma que marca Eliezer e os outros mortos-vivos, o seu segredo e a razão para que o protagonista se refugie na mentira piedosa para responder ao médico que o assiste. De qualquer modo, a matéria surpreendente que daqui decorre resulta do facto de a vítima que sobrevive à tragédia carregar consigo a marca do remorso.
Em The Discovery of the mind[16], ao afirmar que “de acordo com a teoria eudaimonística de ética, a consciência de culpa prova que a conduta moral pode com segurança fundar-se numa compreensão requintada e inteligente da felicidade e da infelicidade”, Bruno Snell sugere que à ideia de felicidade pode associar-se, não apenas uma ética, mas também uma necessidade de fazer escolhas e de estabelecer estratégias. Com efeito, quando defende que, “de acordo com a teoria eudaimonística de ética, a consciência de culpa prova que a conduta moral pode com segurança fundar-se numa compreensão requintada e inteligente da felicidade e da infelicidade”, não será estranho imaginar que ao conceito de remorso se encontre associado o de culpa, na perspectiva de Bruno Snell. O conceito de uma culpa, cuja consciência permite estabelecer os limites da felicidade e da infelicidade.

IV

A mentira provocada pela necessidade de sobrevivência ao medo está presente também em textos como as pequenas narrativas de Ida Fink, em A Scrap of time[17]. È esse o motivo central do conto «The Key Game», concretizado na resposta final da criança ao jogo que decorria em família. Com efeito, aquela família que nos é apresentada na aparência de uma normalidade, vive escondida tendo como único objectivo a sobrevivência dos seus membros. É também de sobrevivência e do medo permanente e silencioso que nos fala Lawrence L. Langer[18], quando cita Dawid Sierakowiak:

What kind of world is this and what kind of people are these who are able to inflict such unbelievable and impossible suffering on living beings?
Our nearest ones have been murdered, some by starvation, some by deportations (modern civilian death). In a manner unheard of in history, we’ve been crippled physically, spiritually, emotionally – in our whole personality. We vegetate in the most horrible misery and need; we are slaves who, deprived of our own will, feel happy when we’re being trodden upon, begging only that we not be trodden to death. I don’t exaggerate: we are the most wretched beings the sun has ever seen – and all this is not enough for the “strong man”: they continue deporting and tearing our hearts to pieces – while we’d be happy to live even as enslaved, wretched insects, as abject, creeping reptiles – only to live… live…
[19]

Num certo sentido, a voz de Job ecoa nas palavras de Sierakowiak. O sofrimento que aqui é descrito tem paralelo com o da personagem bíblica e reflecte a incapacidade de compreender, pondo em questão o conceito de sabedoria. Apesar de em ambos os textos existirem dimensões diferenciadas de esperança, o facto é que, tanto num como no outro, parece ser a fé a instância capaz de fazer acreditar que o sofrimento pode abrir a janela de uma eventual redenção. Em Job, porque, apesar de submetido a tanto suplício, ele não cede à tentação de afrontar Deus; em Sierakowiak, na medida em que as reticências finais desta passagem e o facto de em nenhum momento o sofrimento ser atribuído a Deus, mas sim aos homens, permitem, pelo menos no domínio das probabilidades, considerar a possibilidade de uma saída, por mais remota que seja.
O medo não acompanha, contudo, Job. Movido pela sua fé, Job apenas procura uma explicação. No entanto, nos textos de Sierakowiak, de Elie Wiesel, ou de Ida Fink é o medo em diferentes formas de se exprimir que conduz as personagens e as situações. É o medo que move a criança, quando responde “He’s dead”, depois de a interpelarem acerca do seu pai. É o medo de o sofrimento não ter fim que move as personagens no texto de Sierakowiak. É o medo de agitar o passado que faz com que esse mesmo passado permaneça, em silêncio, em Eliezer.

No fundo, todas estas personagens parecem ter sido de facto abandonadas por Deus. O Deus que soube remediar o que tinha feito a Job. No fundo, apenas Job encontra a redenção, cumprindo o seu percurso em direcção ao saber[20]. A recompensa final que Job recebe é o reconhecimento da sua virtude. Contudo, o mesmo não acontece com as outras personagens, nomeadamente com Eliezer, a quem nem sequer a perspectiva de uma indemnização é capaz de o fazer esquecer o passado. Um passado em que a criança que ele foi está sempre presente e que apenas num momento de Dia é resgatada: quando, a propósito do nome da sua mãe, o protagonista, dirigindo-se a Kathleen, afirma:

(…) criança, vivi no receio constante de esquecer o nome da minha mãe depois da morte. Na escola, o meu mestre tinha-me dito: três dias após o teu enterro, um anjo virá bater três vezes na tua sepultura. Ele perguntar-te-á o teu nome. Tu responder-lhe-ás: «Eu sou Eliezer, filho de Sarah.» Infeliz se te esqueces dele! Alma morta, tu ficarás na terra por toda a eternidade.[21]

O retrato cruel do despojamento absoluto encontra deste modo a resistência das raízes que prendem o protagonista à terra e que, através da memória, lhe permitem emergir dos escombros de si próprio em busca de uma redenção.
[1] WAGNER, Richard, A Arte e a revolução, Edições Antígona, Lisboa, 1990, pp.47-48.
[2] idem.
[3] AGOSTINHO, Diálogo sobre o livre arbítrio, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Col. «Estudos Gerais», Lisboa, 2001, página 107.
[4] AGOSTINHO, ob. cit., “considerando-se o ser humano absolutamente infeliz se lhe for tirado o brilho da boa reputação, as riquezas, ou qualquer tipo de bens corporais, não julgarás tu que ele é absolutamente infeliz, se nele residir aquilo que, com toda a facilidade, se lhe pode tirar, e que não tem quando quer, ainda que abunde em todas aquelas outras coisas, carecendo, no entanto, da boa vontade, que não tem comparação com esses bens, e que, sendo um bem tão grande, basta tão-somente que se queira para se possuir? (…) Portanto, é com razão e justiça que os homens estultos sofrem tal infelicidade, embora nunca tenham sido sábios – o que não é certo e é uma questão muitíssimo obscura.” (páginas 121-123).
[5] BLOOM, Harold, Rovinare le sacre verità, Poesia e fede dalla Bibbia a oggi, Garzanti Editore, Milão, 1992, página 14.
[6] Job, 28: 20-21.
[7] Job, 28: 27-28.
[8] Job, 30: 24-26 e 31: 3-4.
[9] BLOOM, Harold, ob. cit. p. 31.
[10] WIESEL, Elie, Dia, Texto Editora, Col. «Grandes Autores», Lisboa, 2004, p. 18.
[11] idem, p. 40.
[12] idem, p. 41
[13] idem, p. 47
[14] idem, p. 48.
[15] idem, p.74: “Eram uma dezena no bunker. Noite após noite, eles ouviam os cães-polícia alemães que, nas ruínas, procuravam os judeus escondidos nos seus esconderijos subterrâneos. Shmuel e os outros viviam quase sem água nem pão, quase sem ar. Eles resistiam. Eles sabiam que, ali em baixo, na sua prisão estreita, eram livres: lá em cima, era a morte. Uma noite, esteve a ponto de se dar uma catástrofe. A culpa era de Golda. Ela tinha levado o seu filho com ela. Uma criança de mama com poucos meses. O bebé começou a chorar, colocando assim a vida de todos em perigo. Golda tentou acalmá-lo, adormecê-lo. Em vão. Então, os outros, aos quais Golda também se tinha juntado, voltaram-se para Shmuel e disseram-lhe: «Fá-lo calar--se. Trata dele, tu cuja profissão é degolar pintos. Saberás fazê-lo sem que ele sofra muito.» E Shmuel rendeu-se à razão: a vida de um bebé contra a vida de todos. Ele agarrou na criança. No escuro, os seus dedos tacteantes tinham procurado o pescoço. E tinha-se feito silêncio no céu e sobre a terra. Só os cães tinham continuado a ladrar, ao longe.”
[16] SNELL, Bruno, The Discovery of the mind in greek philosophy and literature, Dover Publications, Inc, New York, 1986, pp.163-164.
[17] FINK, Ida, «The Key Game», in A Scrap of time and other stories, New York, Pantheon, 1987, páginas 35-38.
[18] LANGER, Lawrence L., «Opening Locked Doors, Reflections on Teaching the Holocaust», in Preempting the holocaust, Yale University Press, Yale, 1998, páginas 187-198.
[19] idem, página 192.
[20] Job, 42: 2-3: “Sei que podes fazer tudo e que nenhum propósito de Ti pode ser oculto. Quem negaria Tua justiça sem conhecê-la? Por isto falei do que não compreendia, coisas, para mim, por demais prodigiosas, e que eu ignorava.”
[21] WIESEL, Elie, ob. cit., página 84.

sábado, 8 de agosto de 2009

Existe uma inevitabilidade que percorre o seu caminho. Uma inevitabilidade que nos mantém a todos ligados, mesmo que apenas pelas recordações que experimentamos. Existe a inveitabilidade de querer ser outro sendo o mesmo, de fugir, mesmo quando a dor provocada pelo corte se revela imensa e ao mesmo tempo delicada. Fugir à inevitabilidade parece ser a ilusão suprema, a ilusão. Contudo, não se pode fugir da ilusão, do mesmo modo que não se pode fugir dos laços que vamos criando sem dar conta, com as pessoas que nos acompanham, mesmo quando fisicamente distantes, com as nossas histórias particulares. Há quem cresça até à adolescência... há quem nunca consiga parar de crescer... há mesmo quem nunca cresça... Mas nunca se cresce sozinho.
A paisagem não nos permite crescermos sozinhos e isso é bom. O importante é a palavra, mesmo que não seja dita. O importante é trazermos a palavra dentro de nós, para que possamos tornar a ilusão menos penosa.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Para o Professor M. S. Lourenço, que me ensinou a ouvir Richard Wagner.

Siegfried Funeral March

Acabou o Sol & o sino da tarde leva
Os deuses, um a um, a um passeio provisório,
Donde irão emergir para o grande cisma
Do Inverno, o primeiro sopro do qual
Já se ouve subir os píncaros da serra.
Para a deusa branca chegou o fim do seu enigma,
A sua ruína coroa agora as ruínas do castelo:
Aqui morrem os deuses & as borboletas.
Rejeitados olhamos apenas,
Recíproco, um brilho no vazio.

M. S. Lourenço, in Nada Brahma

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Aos 44 anos constato que a minha cabeça não acompanha o meu corpo e que o meu bilhete de identidade está marado. Ao ouvir certas músicas, percebo melhor como o envelhecimento é a palavra de que dispomos para dizer que estamos em permanente upgrade...

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Oceano Mare




Às vezes tentamos ser certinhos. Ao fim de algum tempo, percebemos que o sangue sofreu uma diminuição do seu fluxo. Ser certinho é simpático, mas não chega. É preciso correr sobre os limites, seguir os desejos e deixar correr. Mesmo que nos faça mal. Apenas correr...

Ravel - Le Tombeau de Couperin (I)

Viver é ser outro[1]


A única atitude digna de um homem superior é o persistir tenaz de uma actividade que se reconhece inútil, o hábito de uma disciplina que se sabe estéril, e o uso fixo de normas de pensamento filosófico e metafísico cuja importância se sente ser nula.[2]

O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, apresenta-se como um livro acerca de aborrecimentos[3]. À partida, quando alguém afirma que o seu lugar é onde a imaginação pode permitir uma existência concreta, onde o significado de “agir” se apresenta do avesso, aquilo que pode ser expectável será muito mais uma espécie de não existência em que a acção não tem lugar. Contudo, o problema que a este respeito o autor nos coloca situa-se ao nível do desfiar de um novelo, só que em vez de o fazermos de fora para dentro, necessitamos de descobrir, a partir do seu interior, a ponta que nos possa ajudar a chegar à superfície. Uma superfície que, tal como um novelo, se vai desfiando, até se revelar em contornos pouco definidos.
Ao ler o Livro do Desassossego, vem-me à lembrança uma passagem de um texto de Otto Fenichel[4] em que o autor afirma que “boredom […] is not just a lack of impulse, but also a ‘need for intense mental activity”. Com efeito, o texto de Bernardo Soares parece ser uma maneira de o autor combater o seu estado de “aborrecimento”. Ou será melhor dizer uma maneira de o autor assumir o seu estado de “aborrecimento”, como coisa boa em sim mesma? Confesso que me parece muito mais atraente esta segunda possibilidade, não apenas porque considero realmente que um estado de “aborrecimento” não tem que ser necessariamente uma coisa desagradável, mas também porque o desfiar do novelo, para além de ser um trabalho de paciência, pode ser feito apenas para ocupar o tempo. Apesar de preferir a segunda sugestão que apresento, não creio que ela possa ser tida em consideração independentemente da primeira, antes colaborando com ela, na medida em que o exercício de escrever ocupará o lugar onde o vazio (seja ele o que for) vai sendo ocupado. Nem que seja com matizes diferenciados.

“Agir” é, em Bernardo Soares, o resultado de uma vontade, uma determinação em perseguir uma ideia, e exerce-se por via de uma particular forma de entender a noção de desejo, de gerar uma vitalidade que parece estar em falta. Ora, esta necessidade vital de preencher um tempo corrosivo no seu fluir, acaba por se cumprir através da escrita, de um modo que pode encontrar algum eco nas palavras de Patricia Meyer Spacks, quando afirma que “the act of writing both draws on and generates vitality”[5].
A ideia de vitalidade pode resultar, então, como modalidade susceptível de permitir o encontro com a noção de fuga. A fuga, tal como aqui me pretendo referir, indicia um caminho em direcção ao conceito de desobediência, na medida em que, ao falarmos de fuga, parece existir muitas vezes, em associação, uma maneira particular de assumir uma necessidade de sair de si, bem como uma vontade de libertação, espiritual ou não. Contudo, fugir é muitas vezes um acto condenado ao fracasso, visto que, só na aparência, ele pode ser consequente. Um caso paradigmático desta ideia pode ser tomado a partir do exemplo de Jonas. Com efeito, no «Livro de Jonas», esta personagem bíblica, através da sua desobediência a Deus, pode ser tomada como exemplo do modo como, sendo próprio dos homens a sua incapacidade para fugirem em absoluto de si próprios, mesmo sabendo intimamente que esta é uma característica da sua condição, se manifesta constantemente essa ilusão de que é possível partir em direcção a um lugar diferente. Se na maioria dos casos esta situação se revela em relação a aspectos exteriores, o facto é que o caso de Bernardo Soares adquire, nestas circunstâncias aspectos específicos, na medida em que se dirige para o interior do sujeito. É nesta característica particular do seu texto que reside o nó central do seu percurso. Com efeito, Bernardo Soares “foge”, mas para dentro de si, de forma a explorar uma interioridade que é a sua.
É este movimento particular do espírito que é visível no Livro do Desassossego, no seu conjunto, mas que se manifesta, por exemplo, na secção 268. Atentemos na seguinte passagem:

O olfacto é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes. Passo numa rua. Não vejo nada, ou antes, olhando tudo, vejo como toda a gente vê. Sei que vou por uma rua e não sei que ela existe com lados feitos de casas diferentes e construídas por gente humana. Passo numa rua. De uma padaria sai um cheiro a pão que nauseia por doce no cheiro dele: e a minha infância ergue-se de determinado bairro distante, e outra padaria me surge daquele reino das fadas que é tudo que se nos morreu. Passo numa rua. Cheira de repente às frutas do tabuleiro inclinado da loja estreita; e a minha breve vida de campo, não sei já quando nem onde, tem árvores ao fim e sossego no meu coração, indiscutivelmente menino. Passo numa rua. Transtorna-me, sem que eu espere, um cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó meu Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei, pela recordação, à única verdade, que é a literatura.[6]

O exercício de Bernardo Soares consiste sistematicamente em lançar um tópico, sugerir um percurso de leitura, de forma a, mais adiante, inverter o seu sentido. É nesta inversão de sentido, que se processa regularmente ao longo do texto, que se manifesta a noção de fuga a que me refiro. Com efeito, o início do texto parece remeter para uma memória de factos concretos, associados ao olfacto ou à visão, por exemplo. Contudo, o movimento descritivo que se realiza de seguida não tem como elemento central a paisagem observada, mas sim a paisagem para onde se escapa a imaginação do autor. Por esse motivo as “frutas de tabuleiro” não evocam as “frutas de tabuleiro”, mas o “menino”, ou a figura do autor numa espécie de momento inaugural do cheiro das “frutas de tabuleiro”, ou, através da sensação daquele cheiro, a infância e a figura que agora o autor constrói de si próprio no tempo em que, enquanto menino, experimentava aquele cheiro. Num certo sentido, este movimento mental remeterá para uma ideia de desobediência, ou de não aceitação daquilo que é visível em si mesmo, do concreto. É deste modo que poderemos compreender o sentido do final da passagem, quando se afirma que “a única verdade é a literatura”. O texto coloca ao mesmo nível as recordações que resultam de sensações do autor ao passar numa rua e recordações de leituras de Cesário Verde, assumindo, assim, que tudo pode ser considerado como elemento central da cogitação e, por esse motivo, são tão importantes na vida as recordações de momentos concretos como as recordações de leituras e que a literatura assume, então, um lugar ainda mais central do que a vida, porque mais verdadeiro.
A desobediência a que me refiro resulta de uma construção particular que impõe uma recusa de aceitação do concreto como elemento decisivo e primordial da reflexão[7]. A esta ideia de desobediência associa-se um tom subversivo provocado pelo modo como, em outros momentos da obra, é feita, por exemplo, a caracterização da mentira.

A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos das palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer.[8]

A mentira, tal como é referida nesta passagem, ocupa o lugar daquilo que não é visto, aproximando-se, então, da cegueira a que o autor alude ao mesmo tempo que afirma que olha tudo[9]. Isto é, quando afirma a sua cegueira, o autor enuncia o princípio que o distancia de toda a gente, sendo que o nada que ele afirma não ver, acaba por consubstanciar uma ideia segundo a qual a única verdade reside naquilo que não se vê e que, por esse motivo, e na perspectiva de que é esse espaço nebuloso que o ocupa prioritariamente, é aí que ele “vive” e encontra a explicação para a mentira e para a felicidade de encontrar “a única verdade, que é a literatura”.
Apesar de todo este procedimento mental, que, em si mesmo se assume como uma forma de acção em Bernardo Soares, o facto é que encontramos frequentemente ao longo da obra uma assumpção por parte do autor de uma incapacidade em compreender os mecanismos mais íntimos que precedem as deambulações do seu espírito, nomeadamente em passagens em que descreve acontecimentos, sem que, contudo, seja capaz de identificar os impulsos imediatos que os originam. Num certo sentido, porque somos imperfeitos por passarmos pelas coisas sem nos fixarmos nelas[10].

E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei.[11]

Numa outra passagem, o autor afirma que “O poder de criar precisa de um ponto de apoio, da muleta da realidade”[12]. Se atendermos ao modo como se vão sucedendo, em cadência, os desenvolvimentos do processo mental do autor, poderemos dizer que, não apenas perante uma conversa ocasional, mas também num passeio a pé pelas ruas, ou noutra situação qualquer, tudo pode ser absorvido por ele, toda a realidade pode ser encontrada, assimilada, digerida, mas sempre em função de outra coisa, de algo que pode ser encontrado na referência à literatura, à mentira, lugares onde a vida se manifesta na sua mais vincada exuberância. E onde o patrão Vasques não entra.
Aliás, a explicação para este facto parece estar próxima da relação que se pode estabelecer entre duas palavras utilizadas pelo autor em momentos particulares da obra: as palavras “nada” e “tudo”. A propósito de uma passagem em que nos fala do patrão Vasques, o autor afirma que “ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora”[13]. A Vida que o patrão Vasques representa é o lado concreto da existência, das coisas comezinhas, daquilo que aproxima o autor dos outros, o espaço onde, apesar de tudo, existe a possibilidade de uma comunhão. Só que, em Bernardo Soares, esse é o lugar que contrasta com a profundidade para que o nada remete, na medida em que ao nada se associa constantemente a imagem de essencialidade. Deste modo, quando afirma “Tudo me interessa e nada me prende”, o autor apenas materializa, embora de uma forma paradoxal, o lugar invisível onde os grandes acontecimentos se verificam e quando a certa altura considera que “não sei nada”, ele realmente constata que o universo de referências prioritário que é o seu, só se manifesta e encontra no lugar da literatura e da mentira, nos termos enunciados anteriormente.
Ao afirmar que “A única arte verdadeira é a da construção”, o autor assume, então, que o único lugar onde verdadeiramente existe e onde poderá aspirar a uma possível consolação é o da literatura e da obra assim entendida emergirá um caminho para uma leitura do seu subtítulo, bem como das implicações que encerra. A Autobiografia sem factos assumirá por isso a forma como o autor se descreve por dentro e assume uma busca: a do conhecimento de si próprio. Mesmo sabendo tratar-se de uma tarefa cujos resultados nunca serão definitivos, ele põe-se a caminho e foge. Na desobediência que então parece manifestar perante esse fracasso ele encontra no seu espaço interior o ambiente propício para uma contenção dos eventuais danos.

Se alguma coisa há que esta vida tem para nós, e, salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses, é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros[14].


[1] SOARES, Bernardo, Livro do desassossego, Assírio & Alvim, Col.«Obras de Fernando Pessoa», nº4, 7ª edição, Lisboa, 2007. Secção 94, pág.121.
[2] ob. cit., Secção 89, pág.116.
[3] Cf. SPACKS, Patricia Meyer, Boredom, The University of Chicago Press, Chicago, 1995.
[4] FENICHEL, Otto, «On The Psychology of Boredom», in The Collected papers of Otto Finichel, First Series, W.W. Norton & Company, New York, 1953, pp.292-302.
[5] SPACKS, Patricia Meyer, «Reading, Writing, and Boredom», in Boredom, The University of Chicago Press, Chicago, 1995, pág.1.
[6] SOARES, Bernardo, Livro do desassossego, Assírio & Alvim, Col. «Obras de Fernando Pessoa», nº4, 7ª edição, Lisboa, 2007. Secção 268, pág.255.
[7] ob. cit., Secção 138, p.151: “A erudição da sensibilidade nada tem a ver com a experiência da vida. A experiência da vida nada ensina, como a história nada informa. A verdadeira experiência consiste em restringir o contacto com a realidade e aumentar a análise desse contacto.”
[8] idem, secção 268, pág.255.
[9] idem.
[10] idem,secção 94, pág.122: “(…) Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção – isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.”
[11] idem, secção 10, pág.53.
[12] idem, secção 250, pág.237.
[13] idem, secção 9, pág.53.
[14] idem, secção 255, p.243.
Um Camões


“… la fortuna, come sempre fu, cosi è ancor oggidì contraria alla virtù”[1]

O verso de abertura de Os Lusíadas parece anunciar uma história de vitórias incomparáveis e únicas. Com efeito, o anúncio de uma epopeia protagonizada por “barões assinalados”, capazes de cometerem façanhas únicas que, inclusivamente, encontram raízes na sua própria história colectiva e irão rivalizar com os feitos praticados por heróis da Antiguidade, sugere que é realmente de sucessos que se trata quando lemos a obra. Contudo, mais do que outra coisa, aquilo que Camões indicia no início da sua obra faz parte de uma estratégia que ele próprio vai desenvolver e aperfeiçoar ao longo dos dez Cantos que a constituem. Com efeito, contrariamente àquilo que seria de supor, Os Lusíadas constituem um exemplo de como, sob o efeito de uma pretensa sucessão de êxitos, se expõem, muito mais, uma sucessão de desgraças, nomeadamente pessoais.
Desde muito novo, habituei-me a pensar por que motivo, apesar de me terem apresentado sempre Os Lusíadas como uma obra patriótica, em que os grandes acontecimentos dos portugueses se encontravam espelhados, contém tantas estrofes em que o Poeta faz um contraponto a esses feitos, apresentando reflexões pessoais acerca da vida e da condição humana. É verdade que essas considerações são incorporadas na obra e apresentadas no enquadramento das acções. Ainda assim, o seu âmbito geral ultrapassa a simples condição nacional e projecta a obra numa dimensão mais ampla. Deste modo, quando leio Os Lusíadas, embora, à partida, seja Portugal e os portugueses o centro literal das acções, aquilo que me tem sido dado a observar, muito mais do que um cantinho de gente, é toda a humanidade no seu conjunto.
Na prossecução deste fim encontra-se, por exemplo, o facto de, ao longo da obra, os episódios se sucederem como um conjunto de alusões a circunstâncias que, pelo menos em parte, são ilustrativas. A regra parece, então, consistir no facto de o Poeta propor ilustrações que, de seguida, são explicadas, não necessariamente em termos de nacionalidade, mas principalmente naquilo que dessas ilustrações resulta enquanto análise do comportamento dos homens perante as situações que a vida lhes pode oferecer. Daqui resulta que parece existir em Camões uma descrença no mundo, tal como ele no-lo descreve.
Com efeito, se ao longo da obra o Poeta ainda resiste de algum modo, e apesar de tudo, a mostrar esse mundo em que descrê, a circunstância de a obra não terminar em apoteose, no Canto IX, mas em “tristeza”, no Canto X, é, em si mesma, facto a ter em consideração. Nomeadamente porque o tom “alto e sublimado” que Camões pede às ninfas do Tejo no Canto I, resulta contrariado no final da obra (porque a obra termina num tom de decepção) e, além disso, parece não se coadunar com o registo que inicialmente o Poeta anuncia no Canto I. De qualquer modo, o Canto IX vai constituir o espaço em que, na obra, o Poeta descobre a única harmonia possível. Partindo das palavras de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, citando Karl Manheim, segundo as quais, num “sentido fraco”, as utopias podem ser caracterizadas como «todas as ideias (e não apenas projecções de desejos) que transcendem uma dada situação e que, de algum modo, têm um efeito transformador em relação à ordem histórico-social existente»[2], o episódio da “Ilha dos Amores” pode constituir esse tópico onde a transformação é susceptível de vir a concretizar-se. Transformação que decorre num lugar em que se desenvolve uma diferente dimensão da viagem e que apenas se torna possível enquanto resultado de uma profanação[3]. Com efeito, ao restituir ao livre uso dos homens algo que apenas aos deuses é concedido, aquilo que Camões faz, independentemente da ideia de prémio que possa estar intuída, é violar uma regra e, simultaneamente, uma condição: a regra da sacralidade e a condição humana. Para mais, sabendo o Poeta que é próprio do homem o exercício do erro, tão significativamente mostrado ao longo do Poema. Talvez seja esta uma das razões pelas quais o Canto X serve de contraponto ao delírio amoroso apresentado na ínsula divina. Com efeito, Camões sabe que a vida e a felicidade têm um preço e que esse preço deve ser pago, nem que seja através de uma espécie de assumpção de uma infracção cometida anteriormente. A este respeito pode ser importante referir aquilo que constituem as referências ao mito de Acteon ao longo da obra e o recurso que a ele é feito por parte de Camões. Acteon aparece em alguns momentos da obra como um exemplo de uma espécie particular de transgressor: o que ultrapassa a sua condição, desrespeitando aquilo que é do domínio do divino. Ao desrespeitar uma ordem celeste, Acteon sofre a pena resultante dos actos que pratica. Ora, mesmo que involuntariamente o faça, Acteon desafia essa ordem no momento em que a transgride. Camões, conhecedor das penas de Acteon, sabe que o desafio e a transgressão que apresenta no Canto IX, terá repercussões e que essas repercussões se tornarão visíveis numa pena a cumprir. A diferença fundamental que parece aqui estar presente consiste, no entanto, no facto de, ao contrário do que acontece com Acteon, em Camões existe um conhecimento anterior em relação aos limites, bem como em relação às penas e, desse modo, o Poeta como que se oferece ao sacrifício que ele a si próprio atribui ao longo do Canto X e que, no fundo, não é mais do que uma concretização de um percurso que se adivinha ao longo da obra.
Em Dos Delitos e das Penas, Cesare Beccaria identifica três “fontes das quais derivam os princípios morais e políticos que regem os homens: a lei revelada, a lei natural, as convenções não naturais da sociedade”, considerando que se assemelham “na medida em que todas […] conduzem à felicidade desta vida mortal”[4]. Não sei se Camões segue o rasto de uma felicidade pressentida, mas, à partida, na medida em que, apesar de tudo, na última estrofe do Poema, ele se propõe a compor uma outra epopeia e a enaltecer a figura de D. Sebastião, aparentemente, aquilo em que parece centrar as suas indagações, passa a ser, mais do que uma qualquer narrativa de feitos eventualmente históricos, o seu percurso pessoal, o que não deixa de constituir uma confirmação daquilo que acontece ao longo do Poema. Sendo assim, Camões assume a sua pena como algo que subjaz a toda a sua obra, apenas interrompida no momento em que desloca a sua narrativa para o domínio da utopia.
No fundo, Camões reconhece a sua incapacidade para superar aquilo lhe é oferecido pelo mundo que o rodeia, para mais quando, nem mesmo do ponto de vista pedagógico a sua obra se consegue cumprir. O regresso a uma idade de ouro, no Canto IX, mesmo que idealizada, não deixa de constituir o cúmulo das suas façanhas pessoais, aquelas que estarão sempre para além dos limites da temporalidade e da circunstância.
Deste modo, os dois Cantos finais de Os Lusíadas, se lidos à luz das afirmações do Velho do Restelo, não deixam de constituir uma espécie de concretização das palavras, diria proféticas, do Velho quando afirma a respeito dos homens a sua “Mísera sorte” ou a sua “estranha condição”. Com efeito, depois de ter aspirado ao Olimpo, aquilo que permanece é um Camões que, embora supere Ícaro ou Dédalo, reconhece a sua impossibilidade em permanecer na idade de ouro mítica que a ilha lhe sugere e que só nela ele pode encontrar.
Habituámo-nos a identificar através do nome (“Ilha dos Amores”) uma condição para a recompensa, um lugar último da investigação, lugar onde se concretizaria a consagração dos heróis. Ao identificar o nome, a procura de soluções para o problema parece ter-se estabilizado. Isto é, ao termos encontrado o modo de nomear uma ideia a priori o problema da constituição de um sentido para o Canto IX, ter-se-ia deixado de colocar e os nossos corações descansariam em paz. Na paz das verdades apenas intuídas, no entanto. Ora aquilo que uma leitura mais atenta nos sugere é que o texto encerra muito mais do que uma interpretação susceptível de ser pacificada através de uma leitura desta natureza.
Em relação ao final do Canto X, e ao facto de, pelo menos aparentemente, o Poeta deixar em aberto um reinício para a sua obra, recordo um texto de Giorgio Agamben[5], no qual o autor estabelece a constituição de um modelo de investigação que propõe um caminho para além da ideia de eterno retorno. Considerando que, uma vez atingido o limite da nomeação, um objecto atinge a experiência da ausência de objecto último, o autor considera que, ao nomearmos, passaremos a substituir o objecto que nomeamos, pela forma através da qual o nomeamos e, assim, resolveríamos o problema da procura do conhecimento último das coisas. Contudo, segundo Giorgio Agamben, ao atingirmos este estádio, estaríamos a ocupar o terreno de uma condenação, que se reflectiria, uma vez atingida “a verdade”, numa espécie de fechamento. A solução apresentada por este autor em relação a este problema, embora possa parecer, à partida contraditória, é, no entanto, uma porta para que possamos escapar sistematicamente a este género de fechamento. Defende Agamben que Nietzsche terá encontrado na ideia do eterno retorno a solução para evitarmos o fechamento provocado pelo alcance de uma ideia de verdade. Ainda assim, Nietzsche terá ficado aquém de uma resolução consensual, na medida em que, nas palavras de Giorgio Agamben, o eterno retorno é uma última coisa, mas ao mesmo tempo também a impossibilidade de uma última coisa, visto que a eterna repetição do fechamento da verdade é, enquanto repetição, também a impossibilidade desse fechamento.
Pretendendo instaurar um recomeço, Camões, nos termos de Agamben, acabará por, de algum modo, estar a incorrer numa impossibilidade.
Embora a descrença esteja presente na obra, nomeadamente no seu final, uma descrença em relação à condição dos homens, Camões, a partir do momento em que reage, em que se propõe retomar a sua narrativa e continuar, no fundo, a escrever, parece ser movido por aquilo que Beccaria identifica como “honra”. A propósito da ideia de honra, este autor considera que “a honra é […] um dos princípios fundamentais daquelas monarquias que são uma forma moderada de despotismo e que são nelas o que são nos estados despóticos as revoluções: um momento de retorno ao estado de natureza e uma lembrança, para o senhor, da antiga igualdade”[6]. Não sei se Beccaria terá lido alguma vez Camões, no entanto, a ideia de revolução aqui referida poderá não estar longe daquilo que acontece no final de Os Lusíadas. Por outras palavras, perante tudo aquilo que o Poeta sente perder-se à sua volta, a proposta final e reactiva contida nos versos finais da obra parecem exemplificar o recurso à única instância nunca perdida: a honra. Num certo sentido, será por via dessa honra, que também em muitas outras partes da obra se manifesta, que a ideia de um possível reinício se verifica, deixando em aberto uma possibilidade de continuação da obra.
De qualquer modo, esta revolução, interior, porque insusceptível de vir a ocorrer de outro modo, parece resultar de uma necessidade de compensação perante um erro. O erro que consistiu no facto de, ao estabelecer o contacto entre homens e ninfas, o Poeta, por aquilo que acontece no Canto X, reconhecer que se terá condenado à infelicidade, na medida em que, citando Giorgio Agamben acerca de “profanações”, a “ única hipótese de felicidade [consiste em] acreditar no divino e não aspirar alcançá-lo”[7]. Por outras palavras, o encontro entre homens e ninfas assumir-se-á como a profanação que humaniza aquilo que pertence a uma outra esfera, a do sagrado. Assim sendo, Camões encontra um caminho para a superação do exílio a que se sente votado, quando manifesta o seu desajustamento em relação aos valores que predominam no mundo que o rodeia. Contudo, na sua vidência, ele é aquele que é capaz de contemplar os erros e de lhes apresentar soluções, ainda que essas soluções só possam ser encontradas e concretizadas no domínio das coisas não visíveis. Por ser conhecedor da incapacidade de reconhecimento efectivo do mérito, a que os homens (e ele próprio) estão votados, o Poeta parece viver uma espécie de agonia, pouco adequada ao género em que se inclui a sua obra. Com efeito, a agonia a que me refiro, está presente em momentos que emergem ao longo da obra como marcas de um desconcerto, de uma inadaptação às coisas da vida, e, no final da obra, parece ser reveladora de uma ideia de culpa “pelo conhecimento de uma fatal inverdade – o que roubou o fogo divino e comeu o fruto da árvore do conhecimento para constatar, ao contrário do herói antigo, que não se aquece nem sacia a fome”[8]. Camões sabe que nunca saciará a sua fome e, no entanto, esboça uma reacção. A sua reacção, contudo, será débil, na medida em que ele sabe que o mundo em que vive não é o seu. Num certo sentido, de nada vale reagir num mundo em que os valores corteses não têm lugar[9] e onde o ruído de fundo não deixa que se ouça a discrição. A reacção que Camões manifesta no final da obra revela-se, então, não exactamente como uma verdadeira vontade de continuar, ou de recomeçar a sua narrativa, mas, muito mais do que isso, um modo de o Poeta exprimir um desejo de fugir, simplesmente para um sítio que tenha como característica fundamental o facto de, simplesmente, não ser o lugar em que ele se encontra e de ser apenas um outro lugar. Mesmo que esse lugar apenas exista na imaginação.

[1] CASTIGLIONE, Baldassare, Il Cortegiano, Mondadori, Col. «Oscar Classici», nº 214, 1991, Milão, p.7.
[2] AGUIAR e SILVA, Vítor Manuel, «Imaginação e Pensamento Utópicos», in Camões: Labirintos e Fascínios, Edições Cotovia, 2ª Edição, Fevereiro de 1999.
[3] AGAMBEN, Giorgio, Profanações, Edições Cotovia, Lisboa, 2006, p. 103: “Sacrílego era qualquer acto que violasse ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (e, então, eram chamadas propriamente [coisas] “sagradas”) ou ínferos (neste caso, diziam-se [coisas] simplesmente “religiosas”). E se consagrar (sacrare) era o termo que designava a retirada das coisas da esfera do direito humano, profanar significava, por oposição, restituí-las ao livre uso dos homens”.
[4] BECCARIA, Cesare, Dos Delitos e das Penas, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007, p. 58.
[5] AGAMBEN, Giorgio, «Ideia da Verdade», in Ideia da Prosa, Edições Cotovia, Lisboa, 1999, pp. 46-48.
[6] BECCARIA, Cesare, op. cit., p. 81.
[7] AGAMBEN, Giorgio, Profanações, Edições Cotovia, Lisboa, 2006, p.28.
[8] GUERREIRO, Ricardina, De Luto por existir, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 188.
[9] CASTIGLIONE, Baldassare, Il Cortegiano, Mondadori, Col. «Oscar Classici», nº 214, 1991, Milão, p.34: “Ma delle diversità nostre e gradi di altezza e di bassezza credo io che siano molte altre cause, tra le quali estimo la fortuna esser precípua; perchè in tutte le cose mondane la veggiamo dominare e quasi pigliarsi a gioco d’alzar spesso fina l cielo chi par a lei, senza mérito alcuno, e sepellir nell’abisso i più degni d’esser esaltati.”; e p. 47: “Però si po dir quella esser vera arte, che non appare esser arte; né più in altro si há da poner studio che nel nasconderla: perché, se è scoperta, leva in tutto il credito e fa l’omo poço estimato.”