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Oeiras, Portugal
Aluno e Professor. Sempre aluno.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Nothing Gold Can Stay

Nature's first green is gold,
Her hardest hue to hold.
Her early leaf's a flower;
But only so an hour.
Then leaf subsides to leaf.
So Eden sank to grief,
So dawn goes down to day.
Nothing gold can stay.

Robert Frost

sábado, 25 de setembro de 2010

Giorgio de Chirico, O Filósofo e o Poeta

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O olfacto é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes. Passo numa rua. Não vejo nada, ou antes, olhando tudo, vejo como toda a gente vê. Sei que vou por uma rua e não sei que ela existe com lados feitos de casas diferentes e construídas por gente humana. Passo numa rua. De uma padaria sai um cheiro a pão que nauseia por doce no cheiro dele: e a minha infância ergue-se de determinado bairro distante, e outra padaria me surge daquele reino das fadas que é tudo que se nos morreu. Passo numa rua. Cheira de repente às frutas do tabuleiro inclinado da loja estreita; e a minha breve vida de campo, não sei já quando nem onde, tem árvores ao fim e sossego no meu coração, indiscutivelmente menino. Passo uma rua. Transtorna-me, sem que eu espere, um cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó meu Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei, pela recordação, à única verdade, que é a literatura.

Livro do Desassossego

Trailer #7 Filme do Desassossego

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Há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua. Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher. Há frases literárias que têm uma individualidade absolutamente humana. Passos de parágrafos meus há que me arrefecem de pavor, tão nitidamente gente os sinto, tão recortados de encontro aos muros do meu quarto, na noite, na sombra. Tenho escrito frases cujo som, lidas alto ou baixo - é impossível ocultar-lhes o som - é absolutamente o de uma coisa que ganhou exterioridade absoluta e alma inteiramente.
Por que exponho eu de vez em quando processos contraditórios e inconciliáveis de sonhar e de aprender a sonhar? Porque, provavelmente, tanto me habituei a sentir o falso como o verdadeiro, o sonhado tão nitidamente como o visto, que perdi a distinção humana, falsa, creio, entre a verdade e a mentira.
Basta que eu veja nitidamente, com os olhos ou com os ouvidos, ou com outro sentido qualquer, para que eu sinta que aquilo é real. Pode ser mesmo que eu sinta duas coisas inconjugáveis ao mesmo tempo. Não importa.

do Livro do Desassossego

Purcell - March / Music for the Funeral of Queen Mary (Funeral Sentences) Z. 860

Sobre o que podemos não fazer

Deleuze definiu uma vez a operação do poder como um separar os homens daquilo que podem , isto é, da sua potência. As forças activas são impedidas no seu exercício ou porque são privadas das condições materiais que o tornam possível, ou porque uma proibição torna esse exercício formalmente impossível. Nos dois casos o poder - e é esta a sua figura mais opressiva e brutal - separa os homens da sua potência e, desse modo, torna-os impotentes. Há, todavia, uma outra e mais dissimulada operação do poder, que não age imediatamente sobre o que os homens podem fazer - sobre a sua potência -, mas antes sobre a sua impotência, isto é sobre o que não podem fazer ou, melhor, podem não fazer.
Que a potência seja sempre constitutivamente também impotência, que todo o poder fazer seja já sempre um poder não fazer é a aquisição decisiva da teoria da potência que Aristóteles desenvolve no livro IX da Metafísica. «A impotência», escreve ele, «é uma privação contrária à potência. Toda a potência é impotência daquilo mesmo e por referência àquilo mesmo [de que é potência]». «Impotência» não significa aqui somente ausência de potência, não poder fazer, mas também e sobretudo «poder não fazer», poder não exercitar a potência própria. E é precisamente esta ambivalência específica de toda a potência, que é sempre potência de ser e de não ser, de fazer e de não fazer, que define em primeiro lugar a potência humana. O homem é, por conseguinte, o ser vivo que, existindo sob o modo da potência, pode tanto uma coisa como o seu contrário, trate-se de fazer ou de não fazer. O que o expõe, mais do que qualquer outro ser vivo, ao risco do erro, mas, simultaneamente, lhe permite acumular e possuir livremente as suas capacidades, transformá-las em «faculdades». Uma vez que é não só a medida do que cada um pode fazer, mas também e antes do mais a capacidade de se manter em relação com a sua possibilidade de o não fazer, o que define o estatuto da sua acção. Enquanto o fogo só pode queimar e os outros seres vivos podem somente a sua potência específica, podem somente este ou aquele comportamento inscrito na sua vocação biológica, o homem é o animal que pode a sua própria impotência.
É sobre esta outra faze mais obscura da potência que hoje prefere agir o poder que se define ironicamente como «democrático». Separa os homens não só e não tanto daquilo que podem fazer, mas antes do mais e as mais das vezes daquilo que podem não fazer. Separado da sua impotência, privado da experiência do que pode não fazer, o homem de hoje crê-se capaz de tudo e repete o seu jovial «não há problema» e o seu irresponsável «pode fazer-se», precisamente quando deveria antes dar-se conta de ser entregue numa medida inaudita a forças e processos sobre os quais perdeu qualquer controle. Tornou-se cego não às suas capacidades, mas às suas incapacidades, não ao que pode fazer, mas ao que não pode ou pode não não fazer.
Daqui o confundir-se definitivo, no nosso tempo, das profissões e das vocações, das identidades profissionais e dos papéis sociais, sendo cada um destes encarnadopor um personagem cuja arrogância é inversamente proporcional à provisoriedade e à incerteza do seu papel em cena. A ideia de que cada um pode fazer ou ser indistintamente seja o que for, a suspeita de que, não só o médico que me examina poderia ser amanhã um artista de vídeo, mas que até mesmo o algoz que me mata seja na realidade, como em O Processo de Kafka, um cantor, não são mais do que o reflexo da consciência de que todos se estão simplesmente a vergar a essa flexibilidade que é hoje a primeira qualidade que o mercado exige de cada um.
Nada rende tantos pobres e tão pouco livres como este estranhamento da impotência. Aquele que é separado do que pode fazer, pode, todavia, resistir ainda, pode ainda não fazer. Aquele que é separado da sua impotência perde em contrapartida, antes do mais, a capacidade de resistir. E como é somente a calcinante consciência do que não podemos ser a garantir a verdade do que somos, assim também é somente a visão lúcida do que não podemos ou podemos não fazer a dar consistência ao nosso agir.

Giorgio Agamben

Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral

Num certo canto remoto do universo cintilante vertido em incontáveis sistemas solares havia uma vez um astro onde animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e hipócrita da «história mundial», mas foi apenas um minuto. Depois de a natureza ter respirado umas poucas vezes, o astro enregelou e os animais inteligentes tiveram de morrer. Assim, alguém poderia inventar uma fábula como esta e, no entanto, não ficaria suficientemente esclarecido quão lastimável, quão obscuro e fugidio, quão desprovido de finalidade e arbitrário se apresenta o intelecto humano no interior da natureza. Eternidades houve em que ele não existia; quando ele tiver de novo desaparecido, nada se terá alterado. Pois para este intelecto não há outra missão que transcenda a vida humana. Antes pelo contrário ele é humano, e só o seu dono e progenitor o encara tão pateticamente como se ele fosse o eixo à volta do qual gira o mundo. Mas se nós conseguíssemos comunicar com um mosquito, saberíamos que também ele paira neste ambiente com a mesma presunção e se sente como centro voador deste mundo. Na natureza não há nada de tão censurável e limitado que não se inchasse qual tubo insuflável por meio de um pequeno sopro dessa força do conhecimento; e tal como todo e qualquer carregador ambiciona ter o seu admirador, assim o homem mais orgulhoso, o filósofo, julga ver de todos os lados os olhares do universo, quais telescópios dirigidos para o seu agir e pensar.

Fr. Nietzsche

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Lucian Freud's portrait of Francis Bacon

Giorgio Agamben

Aquele que pertence deveras ao seu tempo, que é deveras contemporâneo é alguém que não coincide perfeitamente com ele nem se adapta às suas exigências e é por isso, nesse sentido, inactual; mas, precisamente por isso, precisamente através do seu distanciamento e do seu anacronismo, é capaz de perceber e captar o seu tempo melhor do que os outros.
Esta não-coincidência, esta discronia, não significa, naturalmente, que o contemporâneo seja aquele que vive num outro tempo, um nostálgico que se sinta mais em casa na Atenas de Péricles ou na Paris de Robespierre e do Marquês de Sade do que na cidade e no tempo em que lhe foi dado viver. Um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe em todo o caso que lhe pertence irrevogavelmente, sabe que não pode fugir ao seu tempo.
A contemporaneidade é, assim, uma relação singular com o nosso próprio tempo, que a ele adere e dele se distancia em simultâneo; mais precisamente, é essa relação com o tempo que a ele adere através de um desfasamento e de um anacronismo. Os que coincidem demasiado plenamente com a época, que condizem em todos os pontos perfeitamente com ela, não são contemporâneos, porque, precisamente por isso, não conseguem vê-la, não podem fixar o olhar sobre ela.

Nudez

domingo, 19 de setembro de 2010

O Cortesão

Però voglio che 'l cortigiano descenda qualche volta a più riposati e placidi esercizii e, per schivar la invidia e per intratenersi piacevolmente con ognuno, faccia tutto quello che gli altri fanno, non s'allontanando però mai dai laudevoli atti e governandosi con quel bon giudicio che non lo lassi incorrere in alcuna sciocchezza; ma rida, scherzi, motteggi, balli e danzi, nientedimeno con tal maniera che sempre mostri esser ingenioso e discreto ed in ogni cosa che faccia o dica sia aggraziato.

Baldassare Castiglione

É por isso que quero que o cortesão se dedique por vezes a exercícios mais tranquilos e pacíficos e, para evitar a inveja e ter relações agradáveis com todos, que faça tudo o que os outros fazem, sem no entanto se afastar dos actos louváveis, e que se governe por um bom juízo que não o deixe cair em nenhuma fatuidade; mas que se ria, que brinque, graceje, que vá ao baile e que dance, mas de tal maneira que mostre ser um homem inteligente e discreto e que tenha graça em tudo o que faz ou diz.

Carlos Aboim de Brito (tradução)

sábado, 18 de setembro de 2010

Velhice

Na velhice seria necessário aproveitar a aparente carência de tempo quantitativo para recuperar uma abordagem qualitativa e significativa ao próprio tempo. Talvez esta prática possa reavaliar a importância da velhice na vida do ser humano e subverta o curso da crescente crise que está invadindo a um nível social a figura do ancião.

Pranzo di Ferragosto

É humano lamentarmo-nos, é humano chorarmos com os que choram, mas é maior acreditar, é mais ditoso contemplar o crente.

Soren Kierkegaard, Temor e Tremor

E DISSE-ME

O meu amor pelo que é antigo. A minha casa foi
a casa dos meus pais,
tem hoje mais de trezentos anos. Aqui, quase toda a gente
vive em casas muito velhas, que
são estimadas e ao mesmo tempo recebem novas
formas de vida. Quando as renovamos e aproximamos a sua
velha existência dos dias de hoje, sentimos como é difícil
manter vivos valores que já pertencem à distância

aqueles que atravessam a aldeia percebem
como valeu a pena e como devo sentir-me feliz (o termo não
faz sequer muito sentido, permitam-me ao menos por um
momento
dizer feliz) por poder levar comigo
as ruas e as casas, antigas e perfeitas, úteis
ainda. É como guardar um livro desde sempre amado
no segredo do quarto
e fixar cada palavra
sílaba a sílaba as distinguimos, uma cor diversa.
Permitam-me viver com o mais desconhecido: o antigo, o passado.

João Miguel Fernandes Jorge

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Solilóquio

Por vezes, aos amigos que me dirigem a pergunta comum: «Como estás?», respondo com as palavras que Salvatore di Giacomo ouviu do velho duque de Maddaloni, o famoso epigramista napolitano, quando, numa das suas últimas visitas, o encontrou enquanto se aquecia ao sol e lhe respondeu em dialecto: «Não vês? Estou morrendo». No entanto, este já não é um lamento que me sai do peito, mas, pelo contrário, é uma das habituais reminiscências de anedotas literárias que, curiosamente, me assaltam a memória e me alegram. Por mais melancólica e triste que possa parecer a morte, sou demasiado filósofo para não ver claramente que terrível seria se o homem não pudesse nunca morrer, encerrado no cárcere que é a vida, a repetir sempre o mesmo ritmo vital que ele, enquanto indivíduo, possui apenas nos confins da sua individualidade, e ao qual é atribuída uma tarefa que se esgota.
Contudo, outros crêem que num qualquer momento da vida este pensamento da morte deve regular aquele que permanece da vida, que se torna, assim, uma preparação para a morte. Ora, a vida inteira é preparação para a morte, e não resta fazer até ao seu fim senão continuá-la, correspondendo com zelo e devoção a todos os deveres que dela se esperam. A morte chegará de forma a meter-nos em repouso, a retirar-nos das mãos a tarefa a que procurávamos corresponder, mas não pode fazer outra coisa que não seja interromper-nos, do mesmo modo que nós não podemos fazer mais do que deixarmo-nos interromper, porque ela não nos pode encontrar em ócio estúpido.
Na verdade, esta preparação para a morte é entendida por alguns como um recolhimento necessário da nossa alma em Deus, mas, também neste caso, ocorre observar que, com Deus, estamos e devemos estar em contacto durante toda a vida e nada de extraordinário agora acontece que nos imponha uma prática incomum. As almas piedosas, frequentemente, não pensam assim, e esforçam-se por obterem os favores de Deus, através de uma série de actos que deveriam corrigir o habitual egoísmo da sua vida precedente e que, pelo contrário, constituem a expressão última deste egoísmo.

Benedetto Croce, in Dal Libro dei Pensieri