Uma vez em casa, o homem diz a si mesmo que não falou de amor por causa da sua mulher morta cuja memória ele não podia trair. Mas nós sabemos bem: é uma justificação falsa que ele só invoca para se consolar. Para se consolar? Sim. Pois resignamo-nos por perdermos um amor por uma razão. Nunca nos perdoamos por o termos perdido sem qualquer razão.
Este pequeno episódio muito belo é como a parábola de uma das maiores descobertas de Anna Karenina: o pôr em evidência o aspecto a-casual, incalculável, mesmo misterioso, da acção humana.
O que é a acção: eterna questão do romance, a sua questão, por assim dizer, constitutiva. Como nasce uma decisão? Como é que se transforma em acto e como é que os actos se encadeiam para se tornarem aventura?
Da matéria estranha e caótica da vida, os antigos romancistas tentaram abstrair o fio de uma racionalidade límpida; segundo eles, o móbil racionalmente apreensível faz nascer o acto, este provoca um outro. A aventura é o encadeamento, luminosamente casual, dos actos.»
Milan Kundera, A Arte do romance
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