«Kien detestava a mentira. Desde a sua meninice tinha-se mantido fiel à verdade. Não se recordava de qualquer mentira, exceptuando aquela que, de resto, se censurava. Apenas a conversa com o rapazito - seu vivo retrato nessa idade - lha tinha feito evocar. Basta por agora, pensou, são quase oito horas. Às oito em ponto começava o seu trabalho, o seu labor ao serviço da verdade. Ciência e verdade eram para ele conceitos idênticos. Uma pessoa aproxima-se da verdade quando se afasta dos homens. A vida quotidiana é uma teia superficial de mentiras. Cada transeunte era um mentiroso. Por isso, nem sequer os olhava. Quem, entre os péssimos actores que integravam a massa, tinha um rosto capaz de o interessar? Mudavam de cara a cada momento; não representavam o mesmo papel o dia inteiro. Desde um determinado momento soube que qualquer experiência era, nestes casos, supérflua. Desejava perseverar tenazmente na sua própria essência. Não apenas um mês, nem apenas um ano: toda a sua vida permaneceria igual a si mesmo. O carácter, quando alguém o possui, determina também o aspecto físico. Recordava-se de ter sido sempre um homem alto e magro. Apenas conhecia a sua cara fugazmente, por vê-la reflectida nos vidros das montras das livrarias. Em casa não tinha um único espelho; não sobrava espaço entre tantos livros. Contudo, sabia que era magro, severo e ossudo; isso bastava-lhe.
Como não tinha qualquer desejo de observar quem quer que fosse, mantinha os olhos baixos ou olhava por cima das pessoas.Adivinhava com exactidão onde havia livrarias. O seu instinto nunca falhava. Nesses casos, guiava-o a mesma força que guia os cavalos de regresso ao estábulo. Saía a passear a fim de respirar o ar de outros livros; estes provocavam o seu desacordo ou reanimavam-no um pouco. Na biblioteca, tudo se passava no melhor dos mundos. Entre as sete e as oito horas da manhã concedia a si próprio uma daquelas liberdades que parecem constituir toda a vida dos outros.»
Elias Canetti, Auto de Fé
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