Fui convidado amavelmente pelo Tomás Castro e pelo meu colega Carlos Lopes para participar num encontro que eles próprios pretendiam organizar, tendo como motivo central o livro e a leitura. Por dever, de profissional e de estudante, bem como por consideração às pessoas que tão amavelmente se dispuseram a ser pacientes para comigo, aceitei a proposta, agradecido, e espero não defraudar as suas expectativas.
Confesso que, apesar de a minha vida ter conhecido desde sempre e em permanência essa coisa a que chamamos livro, sempre que me pedem que exponha uma ideia que seja sobre a leitura, é sempre com algum cuidado que me refiro a este objecto, como se se tratasse de lidar com uma pessoa muito querida, por quem tenho estima e consideração e, por esse motivo, não ser capaz de a ele me dirigir sem a reverência e o respeito que considero serem-lhe devidos.
A leitura democratizou-se nos últimos anos. É um facto. O número de livros vendidos, bem como os resultados dos inquéritos sobre a leitura que têm sido divulgados, são uma prova irrefutável disso mesmo. Quero deixar desde já claro que me congratulo vivamente com este facto. No entanto, dou comigo por vezes a pensar se o simples facto de se ler mais, e, por conseguinte, de os livros se terem tornado mais acessíveis aos cidadãos, pode ser, em si mesmo, um factor que serve para aliviar os espíritos mais inquietos daqueles que, do livro e da leitura, não são capazes de dissociar uma vertente diacrónica na sua abordagem.
Por outras palavras, lê-se de facto muito mais, mas será que se lê e que as pessoas são incentivadas a ler aquilo que interessa? Ou seja, aquilo que se repercute mais vivamente nas nossas vidas, como sejam, por exemplo, estratégias para se pensar, para se exercer um espírito crítico vivo e susceptível de formar cidadãos que sejam capazes de estruturar raciocínios e apresentar argumentos complexos, que sejam capazes de desenvolver o espírito imaginativo nos leitores. Um espírito imaginativo de onde mane uma capacidade que permita a quem lê aceder a novos lugares, a novos pontos de observação de uma mesma paisagem. Ou seja, que permita a quem lê a possibilidade de, perante uma dada realidade, que pode ser apresentada como coisa acabada, encontrar outros focos de interesse e, a partir daí, reconstruir a paisagem, porque, tendo passado a ser observada a partir de outro ângulo, se torna, entretanto, outra. Será que as nossas maneiras de ler envolvem a noção de tempo, e, por conseguinte, que lemos um livro adivinhando nele, por exemplo, um determinado espírito de época? Será que somos capazes de ler o nosso tempo devidamente, no pressuposto de que um conhecimento que envolva uma dimensão histórica permitirá alargar a nossa capacidade de apropriação daquilo que é actual, através das lições que o tempo nos pode ser capaz de oferecer?
Não estou certo que assim aconteça. E receio que não aconteça mesmo, até porque nos últimos anos se tem vindo a fomentar a ideia, em meu entender perversa, de que ler é uma actividade “fácil”. Não deixa de ser contraditório o facto de, sob o pretexto da “empregabilidade” se insistir, por um lado, na ideia de que ler é uma coisa boa, mas, no momento em que, por exemplo, os alunos devem escolher uma área de estudos para a frequência do ensino secundário, quem lê passe a ser entendido como alguém que, não tendo jeito para outras coisas, se refugia na área do saber que sempre lhe terá sido apresentada como a mais fácil. Estranho mundo este em que, debaixo do guarda-chuva de uma coisa a que chamam empregabilidade se cria a ilusão de que ainda existem empregos e trabalhos à espera de alguém num qualquer lugar, apenas por não ser na área de letras. Estranho mundo este onde emerge o totalitarismo utilitário a mostrar aos homens de boa vontade que, afinal de contas, a sua liberdade individual não se encontra naquilo que eles são em si mesmo, mas no modo como se relacionam com os outros e se inserem na sociedade. Pensamento perverso…
Relembro agora aquilo que nunca deixo de dizer aos meus alunos: a leitura é um trabalho, só que é um trabalho com características específicas. Com efeito, a leitura é uma actividade que leveda, que, por mais que pensemos que a teremos abandonado, ela volta sempre, mostrando-nos o quanto nos podemos ir construindo a partir das sempre renovadas lembranças de um livro que tenhamos lido há muito tempo.
Nós não precisamos de estar num escritório para trabalhar quando trabalhamos com livros. Apenas precisamos de os pensar, nesse modo ocioso e simultaneamente produtivo de o fazer. Para que isto aconteça é necessário que sejamos capazes de lidar com a instância temporal e de compreender a importância de coisas aparentemente tão simples, como a paciência ou a capacidade de concentração, que dela advém.
Durante este ano lectivo, depois de apresentar a uma turma a proposta de leitura de um livro, fui interrompido por um aluno que afirmou: “eu não consigo ler um livro inteiro porque não me consigo concentrar, porque, ao mesmo tempo que os meus olhos passam pelas linhas da página, eu não estou a pensar nas palavras que leio mas sim noutra coisa qualquer, simplesmente outra coisa, não interessa que coisa seja.” Acontece que felizmente me apareceu uma resposta pronta para lhe dar. Comecei por lhe perguntar se ele gostava de jogar na PS3. De seguida, fi-lo compreender que, na medida em que era capaz de obter períodos alargados de concentração enquanto joga, ele poderia servir-se dessa sua experiência pessoal para a estender a outras actividades que pratique, nomeadamente à leitura. De facto, eu não acredito que os alunos não sejam capazes de se concentrarem na leitura, apenas não estão afinados para se concentrarem diante de um livro, apesar de o serem capazes de fazer em relação a outras coisas.
Afinal de contas, por mais Planos Nacionais de Leitura que se façam, haverá sempre quem não tenha essa paciência particular que envolve um leitor no acto de ler. Sendo a leitura o resultado de uma motivação interior, de uma espécie de chamamento, não estou certo que o facto de se elaborarem Planos Nacionais de Leitura venha a ser razão incontornável para se dizer que se lê mais. Até porque, segundo me parece (e se estiver enganado gostaria de ser corrigido), a forma de se medir a leitura (se isso é possível) numa biblioteca, por exemplo, resulta do somatório de visitas, ou do número de requisições de livros efectuadas por um leitor. Que ideia é esta de se medir a leitura? Como posso garantir que alguém que requisitou 10 livros os tenha lido todos? E o que importa isso?
Às vezes fico com a impressão de que o tratamento dos dados assim efectuado é suficiente para se acreditar que temos leitores. Contudo, nenhum destes dados me satisfaz. Por isso suspeito. Suspeito que o modo como o mundo está organizado ou então o modo como nos pretendem fazer crer que se organiza, sem a apropriação devida e necessária de aspectos relacionados com a busca de visões de conjunto, em vez de visões parcelares do mundo, resulta de um sinal dos tempos em que vivemos, em que, apesar de se pretender iludir os homens para a sua dimensão de liberdade, apenas se releva aquilo que neles se considera ser susceptível de os tornar menos autónomos, porque cada vez mais expostos e dirigidos, na sua formação individual, não para aquilo que a sua natureza lhes pede, mas para aquilo que a sociedade pode vir a pretender deles, na perspectiva de que ao fazer certas escolhas em detrimento de outras eles terão mais possibilidades de garantir o seu sustento. Tudo isto acontece, hoje em dia, perante um cenário em que a chamada empregabilidade se tornou um conceito quase exotérico, na medida em que, mesmo que sigamos por aí, em quase nenhuma área profissional é garantido que se obtenha lugar imediato.
Pediram-me que falasse de livros e de leitura. Começo pelo princípio. Existem pessoas em relação às quais ficamos devedores para o resto da vida. Eu sou devedor em relação a muitas pessoas, mas em relação à leitura, a minha primeira e definitiva dívida é para com o meu irmão mais velho, que, tendo entrado na primeira classe, ao mesmo tempo que aprendia as primeiras letras, vinha para casa mostrar-me as coisas novas que lhe eram mostradas. Sem dar por isso, e como se se tratasse de um jogo, foi ele que me ensinou a ler e a escrever. O certo é que a leitura colou-se-me à pele e não mais me largou. Lembro-me de ter começado a ler desde muito novo os Evangelhos e a entendê-los para além daquilo que deles se dizia nas eucaristias em que participava ao domingo.
Mais tarde passei por aquilo a que poderei chamar um momento decisivo da minha vida. Acontece que, na passagem para o 1º ano do ciclo preparatório, actual 5º ano de escolaridade, foi-me diagnosticada uma hepatite, que me obrigou a permanecer em casa durante três meses. Aproveitei essa altura para percorrer as filas de livros que havia em casa. Foi então que li Carles Dickens, adaptações da Ilíada, da Odisseia, da Eneida, romances de Walter Scott, bem como os meus primeiros livros de Camilo Castelo-Branco. Pelo meio havia mais, até porque a leitura era a minha maneira de ocupar o tempo de uma forma muito agradável.
Pediram-me que escolhesse alguns livros para deles vir aqui falar. Aproveitei para trazer alguns dos meus amigos: Cesare Pavese, Hermann Broch, Baldassare Castiglione, Maria Filomena Molder, Camilo Castelo-Branco, Horácio e o meu autor de referência, Benedetto Croce. A todos eles associo fases importantes da minha vida.
Pavese que apresenta a sua vida e a sua obra como elementos constitutivos um do outro, de tal modo que as páginas finais do seu diário, quando lidas à luz dos factos históricos da sua vida pessoal, nos interpelam directamente para o facto de, enquanto “seres do meio”, nas palavras de Maria Filomena Molder, não podermos aceder ao controlo das nossas existências.
Broch, que, a partir da biografia de Virgílio, apresenta uma reflexão acerca dos problemas do homem contemporâneo e da sua posição perante a incomensurabilidade do mundo.
Castiglione, porque, ainda hoje nos ensina que o bom cortesão é aquele que possui um espírito nobre assente em critério de equilíbrio, gentileza, harmonia com os outros e com o mundo.
Maria Filomena Molder, enquanto autora de uma sensibilidade profunda no modo como lê os outros, bem como pela maneira como nos mostra os percursos de autores que foram capazes de, com paciência e tenacidade, perseguirem os seus objectivos mesmo quando envolvidos em ambientes extraordinariamente adversos.
Horácio, porque tem um dos meus poemas preferidos, o terceiro poema da terceira Ode, em que destaca a atitude do homem determinado que, quando firme nos seus propósitos, não se perturba com o furor dos outros cidadãos.
O meu Camilo é o das Memórias do Cárcere. O homem que, mesmo entregue à sua sorte e ao abandono, não deixa de estudar os recantos mais escondidos da alma humana.
Por fim, o meu autor, aquele que me acompanha há quase vinte anos: Benedetto Croce, de um livro aparentemente muito simples, mas extraordinariamente amplificado através das ramificações que em cada página, escondidas, vão sendo reveladoras de um espírito que, por via de um conceito de bem e de bondade, é capaz de superar o acantonamento a que é votado por questões políticas, e, ainda assim, num momento em que volta a fazer parte do círculo do poder no estado italiano, não deixa de exercer a sua magnanimidade, procedendo olimpicamente em relação àqueles que o isolaram durante quase vinte anos.
Em todos estes autores preside aquilo que é para mim, o objecto mais louvável de uma vida ética, e, por conseguinte, da literatura: a bondade. Quando escolhi estes livros foi segundo o critério da bondade que o fiz.
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