Roma revê-se nos seus mártires cristãos, da mesma forma que se olha ao espelho da glória pagã do Império. Nenhuma outra cidade é tão ostensivamente narcísica em relação ao seu passado; mas nenhuma outra, é verdade, se construiu em tão íntima sobreposição de heranças e testemunhos, pedras e memórias, mitos e crenças. A organicidade de Roma faz com que haja igrejas barrocas construídas sobre ruínas de basílicas paleocristãs, estas, por sua vez, erguidas sobre o que restava de templos pagãos de culto romano. E o apogeu papal, nos séculos XVI e XVII, reforçado pela reacção anti-luterana, fez todo o possível (e, até, os impossíveis, que só a arte ou a lenda tornam verosímeis) para vincar esta dupla legitimidade, a de um poder temporal que não conheceu rivais, a de um poder espiritual que se estendeu por todo o mundo.
Mártires, há-os em Roma para todos os gostos e de todas as proveniências. Mas os mártires romanos são os das origens, os que morreram em defesa da sua fé, às mãos das tropas de Nero, Vespasiano e Diocleciano, durante os três séculos que a fé cristã levou a afirmar-se na sede do império. Rasto singular este, só começado a descobrir em finais do século XVI, muito convenientemente, quando se expandia o movimento de contra-reforma desencadeado pelo concílio de Trento: em 1578, quase por acaso, encontra-se um cemitério subterrâneo na Via Salaria, com inscrições dedicadas à memória da mártir Priscila, que teria sido uma diaconisa martirizada em Roma no ano de 228.»
António Mega Ferreira, Roma, exercícios de reconhecimento
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