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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Sonho de Fernando Pessoa, poeta e fingidor

Na noite de sete de Março de 1914, Fernando Pessoa, poeta e fingidor, sonhou que acordava. Tomou o café no seu pequeno quarto alugado, fez a barba e vestiu-se com esmero. Enfiou a gabardina, porque lá fora chovia. Quando saiu faltavam vinte minutos para as oito, e às oito em ponto estava na estação do Rossio, na plataforma do comboio com destino a Santarém. O comboio partiu pontualmente às oito e cinco. Fernando Pessoa tomou lugar num compartimento onde estava sentada uma senhora aparentando cinquenta anos, que lia. Era a sua mãe e não era a sua mãe, e estava imersa na leitura. Fernando Pessoa pôs-se também a ler. Naquele dia tinha de ler duas cartas que lhe tinham chegado da África do Sul e lhe falavam de uma infância longínqua.
Fui como uma erva e não me arrancaram, disse a certo ponto a senhora que aparentava cinquenta anos. A frase agradou a Fernando Pessoa, que a anotou num caderninho. Entretanto, diante deles, passava a paisagem plana do Ribatejo, com arrozais e campinas.
Quando chegaram a Santarém, Fernando Pessoa apanhou a tipóia. Sabe onde fica uma casa isolada caiada de branco?, perguntou ao cocheiro. O cocheiro era um homenzinho anafado, com o nariza vermelho do álcool. Claro, disse, é a casa do senhor Caeiro, conheço-a bem. E fustigou o cavalo. O cavalo começou a trotar na estrada principal ladeada de palmeiras. Nos campos viam-se palhotas com um ou outro preto à porta.
Mas onde estamos nós?, perguntou Pessoa ao cocheiro, para onde me leva?
Estamos na África do Sul, respondeu o cocheiro, e estou a levá-lo a casa do senhor Caeiro.
Pessoa tranquilizou-se e apoiou-se às costas do assento. Ah, estava então na África do Sul, era mesmo isso que queria. Cruzou as pernas com satisfação e viu os seus tornozelos nus, dentro de umas calças à marinheiro. Compreendeu que era um rapazinho, o que muito o alegrou. Era bom ser um rapazinho que viajava para a África do Sul. Pegou num maço de cigarros e acendeu um com volúpia. Ofereceu um ao cocheiro, que aceitou avidamente.
Caía o crepúsculo quando avistaram uma casa branca que ficava numa colina ponteada de ciprestes. Era uma típica casa ribatejana, comprida e baixa, com as telhas vermelhas com beirais. A tipóia entrou na alameda de ciprestes, o cascalho rangeu debaixo das rodas, um cão ladrou no campo.
À porta da casa estava uma velhota com óculos e uma touca branca. Pessoa percebeu subitamente que se tratava da tia-avó de Alberto Caeiro, e erguendo-se em bicos de pés, beijou-a nas faces.
Não me canse muito meu Alberto, disse a velhota, tem uma saúde tão fraca.
Afastou-se para o lado e Pessoa entrou na casa. Era uma sala ampla, mobilada com simplicidade. Havia um fogão de sala, uma pequena estante, um aparador cheio de pratos, um sofá e duas poltronas. Alberto Caeiro estava sentado numa poltrona e tinha a cabeça inclinada para trás. Era o Headmaster Nicholas, o seu professor da High School.
Não sabia que Caeiro fosse o senhor, disse Fernando Pessoa, e fez um ligeiro cumprimento com a cabeça. Alberto Caeiro fez-lhe um gesto fatigado para entrar. Entre, caro Pessoa, convoquei-o aqui porque queria que soubesse a verdade.
Entretanto a tia-avó chegou com uma bandeja com chá e bolinhos. Caeiro e Pessoa serviram-se e pegaram nas chávenas.
Pessoa lembrou-se de não espetar o dedo mindinho, porque não era elegante. Ajeitou a gola do seu fatinho à marinheiro e acendeu um cigarro. O senhor é o meu mestre, disse.
Caeiro suspirou, e depois sorriu. É uma longa história, disse, mas é inútil contar-lha de fio a pavio, você é inteligente e compreenderá mesmo se eu saltar algumas passagens. Saiba apenas isto, que eu sou você.
Explique-se melhor, disse Pessoa.
Sou a sua parte mais profunda, disse Caeiro, a sua parte obscura. Por isso sou o seu mestre.
Um campanário, na aldeia vizinha, deu as horas.
E eu, o que devo fazer?, perguntou Pessoa.
Deve seguir a minha voz, disse Caeiro, ouvir-me-á na vigília e no sono, às vezes hei-de perturbá-lo, outras vezes não quererá ouvir-me. Mas terá de escutar-me, deverá ter a coragem de escutar esta voz, se quer ser um grande poeta.
Fá-lo-ei, disse Pessoa, prometo-lhe.
Levantou-se e despediu-se. A tipóia esperava-o à porta. Agora tornara-se de novo adulto e tinha-lhe crescido o bigode. Para onde quer que o leve?, perguntou o cocheiro. Leve-me para o fim do sonho, disse Pessoa, hoje é o dia triunfal da minha vida.
Era o dia oito de Março, e pela janela de Pessoa entrava um sol tímido.

Antonio Tabucchi, Sonhos de Sonhos

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