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sábado, 4 de dezembro de 2010

Carta a El-Rei D. João Nosso Senhor

Rei de muitos Reis, se um dia,/ Se ua hora só, mal me atrevo/ Ocupar-vos, mal faria;/ E ao bem comum não teria/ O respeito que ter devo.
Que em outras partes da Esfera,/Em outros céus diferentes,/ Que Deus té'agora escondera,/ Cada ua de tantas gentes,/ Vossos despachos espera.
Porque, senhor, eles sós/ (Justo e poderoso Rei!)/ Desdão ou lhe cortam nós,/ Como também entre nós,/ Que sois nossa viva lei.
Onde há homens há cobiça:/ Cá e lá tudo ela empeça,/ Se a santa, igual justiça/ Não corta, ou não desempeça/ O que a má malícia enliça.
Senhor, qu'é muito atrevida!/ E onde ela nós cegos deu,/ Cortar é cousa devida:/ Exemplo, o julgo de Mida,/ Que el-Rei vosso avô fez seu.
Ora eu que respeito havendo/ Ao tempo mais que ao estilo,/ Irei fugindo ao que entendo:/ Farei como os cães do Nilo,/ Que correm e vão bebendo.
A dignidade Real,/ Que tem o mundo a direito,/ (Sem ela ter-se-ia mal)/ É sagrada, é natural:/ Deixemos medo e proveito.
As vossas velas, que vão/ Dando quase ao mundo volta,/ Raramente contarão/ Gente de algum Rei solta:/ Sem cabeça o corpo é vão.
Dignidade alta e suprema,/ Quem há que a não reconheça?/ Viu-se em Marco António tema/ De a César pôr diadema/ Real sobre a cabeça.
Que o nome de Emperador/ D'antes a César se dera,/ Sem suspeita e sem temor;/ Que inda então muito mais era/ Ser Cônsul, ser Ditador.
Um Rei ao reino convém:/ Vemos que alumia o mundo/ Um sol; um Deus o sustém./ Certa a queda e a fim tem/ O reino onde há Rei segundo.
Não, a sabor das orelhas,/ Arenga cuidada e branda./ Abastem as razões velhas:/ A cabeça os membros manda;/ Seu Rei seguem as abelhas.
A seu tempo o Rei perdoa,/ A tempo o ferro é mezinha;/ Grandeza e condição boa/ Ao Leão deram coroa/ Entre a gente montesinha.
Às aves, tamanho bando,/ Doutra liga e doutra lei,/ Por vencer todas voando,/ A águia foi dada por Rei,/ Que o sol claro atura olhando.
Quanto que sempre guardou/ David lealdade e fé/ A Saúl! Quanto o chorou!/ Quantas maldições lançou/ Aos montes de Gelboé!
Onde caíra o escudo/ Do seu Rei, inda que imigo,/ Inda que já mal sesudo,/ Saindo de tal perigo/ E subindo a mandar tudo!
O senhor da natureza/ De que o céu e a terra é chea,/ Vestindo em nossa baixeza,/ De Real sangue se preza,/ Por Rei na cruz se nomea.
Sobre obrigações tamanhas,/ Velem-se com tudo os Reis/ Dos rostos falsos e manhas,/ Com que lhes fazem das leis/ Fracas teas das aranhas.
Que se não pode fazer/ Por arte, por força ou graça./ Salvo o que a justiça quer,/ Senhor, não chamam poder/ Salvo o que lhes vai na praça.
E por muito que os Reis olhem,/ Vão por fora mil inchaços,/ Que ante vós, senhor, se encolhem./
Duns gigantes de cem braços,/ Com que dão e com que tolhem.
Quem graça ante o Rei alcança/ E i fala o que não deve,/ (Mal grande de má privança)/ Peçonha na fonte lança/ De que toda a terra bebe.
Quem joga onde engano vai/ Em vão corre e torna atrás,/ Em vão sobre a face cai:/ Mal hajam as graças más/ De que tanto engano sai!
Homem dum só parecer,/ Dum rosto e dua fé./ D'antes quebrar que volver,/ Outra cousa pode ser,/ Mas de corte homem não é.
Ouço gracejar, de cá,/ De quem vai inteiro e são,/ Nem se contrafaz mais lá:/ - Como este vem aldeão,/ Que não sabe onde se está!
As públicas santidades,/ Estes rostos transportados,/ Não em ermos, mas cidades,/ Para Deus são vaidades,/ Para nós vão rebuçados.
Mas, despois, que lhes fazemos?/ Pode ser, pode não ser,/ Adiante o saberemos:/ Estamos um pouco a ver,/ Cai-lhes o rebuço e vemos.
Senhor, hei-vos de falar/ (Vossa mansidão m'esforça)/ Claro o que posso alcançar:/ Andam pera vos tomar/ Por manha, que não por força.
Per minas trazem suas azes,/ Encobertos seus assanhos,/ Falsas guerras, falsas pazes:/ De fora são mansos anhos,/ De dentro lobos robazes.
Tudo sua cura tem:/ Que é assi, bem o sabeis/ E o remédio também./ Querei-los conhecer bem?/ No fruto os conhecereis.
Obras, que palavras não!/ Porém, senhor, somos muitos./ E, entre tanta obrigação,/ Tresmalhamos-vos os fruitos/ Que não saibais cujos são.
Um que por outro se vende/ Lança a pedra e a mão esconde./ O dano longe se estende./ Aquele a quem dói entende:/ Com sós suspiros responde.
A vida desaparece./ Entretanto, geme e jaz/ O que caiu, e acontece/ Que de um mal que se lhe faz/ Muito mais se lhe recrece.
Pena e galardão igual/ O mundo em peso sustém./ É ua regra geral:/ A pena se deve ao mal,/ O galardão ao bem.
Se algua hora aconteceu/ Na paz, muito mais na guerra,/ Que a balança mais pendeu,/ Faz-se engano às leis da terra,/ Nunca se fez às do céu.
Ante os Lombardos havia/ Lei escrita e lei usada,/ Como inda hoje, parecia:/ Onde a prova falecia/ Que o provasse a espada.
Ali no campo, às singelas,/ Em fim, morrer ou vencer./ Fosse qual quisesse delas,/ Não era milhor morrer/ A ferro que de cautelas?
A um nosso Rei excelente,/ Dom Dinis, tão acabado,/ Tão justo, a Deus tão temente,/ Falsa e maliciosamente/ Foi grande aleive assacado.
Ele posto em tal perigo,/ (Rei que Reis fez e desfez!)/ Co'as manhas do falso imigo,/ Foi-lhe forçado essa vez/ A lei chamar-se que digo,
E às vilas e às cidades,/ A que cumpriu d'acudir/ Pelas suas lealdades:/ Tanto são más as verdades/ Às vezes de descobrir!
Da mesma casa Real/ Em verdade um grande Ifante,/ Tratado por manhas mal,/ Bradava por campo igual/ E imigos claros diante.
Em fim, vendo astúcia e arte/ Quanto que pode, chamou/ Um leal conde a de parte:/ Só com ele se apartou,/ Foi viver à milhor parte.
Onde tudo é certo e claro,/ Onde são sempre uas leis,/ Príncipe no mundo raro!/ Sobre tanto desemparo,/ Foram três seus filhos Reis.
Ò senhor, quantos suores,/ Sua o corpo e a alma em vão/ Em poder de envolvedores!/ E em fim, batalhas que são/ Salvo uns desafios móres?
Co'a mão sobre um ouvido/ Ouvia Alexandre as partes,/ Como quem tinha entendido/ Por fazer certo o fingido/ Quantas que se buscam d'artes.
Quardava ele aquele inteiro/ Para a parte não ouvida;/ Não vá nada em ser primeiro;/ Quem muito sabe duvida:/ Só Deus é o verdadeiro.
A tudo dão novas cores/ Envolvendo os peitos puros,/ E falam sempre em primores./ Ante os Reis, vossos senhores,/ Vindes com rostos seguros.
Contais, gabais, estendeis/ Serviços e lealdade./ Olhai, que a não daneis:/ Falai em tudo verdade/ A quem em tudo a deveis.
Senhor, nosso padre Adão/ Pecara: chama-o o juiz./ Tenha que dizer ou não,/ I sua fraca razão/ Porém livremente diz.
Sempre foi, sempre há-de ser:/ Onde ua só parte fala/ Sempr'a outra haja de gemer./ Se um jogo todos iguala,/ As leis que devem fazer?
Vidas e honras tomais/ Debaixo do vosso emparo,/ De estranhos e naturais:/ Suspiram, não podem mais,/ E às vezes isto mal claro.
Também trás aquela arde/ Tão estimada a fazenda,/ Por mais que se vele e guarde./ Tem ela milhor emenda,/ Se não fosse mal, e tarde.
Geralmente é presumptuosa/ Espanha, e disso se preza:/ Gente ousada e belicosa./ Culpam-na de cobiçosa:/ Tudo sabe Vossa Alteza.
Pensamentos nunca cheos,/ Não tem fundo aqueles sacos!/ Ainda mal, com tantos meos,/ Para viver dos mais fracos/ E dos suores alheos.
Que eu vejo nos povoados/ Muitos dos salteadores/ Com nome e rosto d'honrados:/ Vão quentes, andam forrados/ De peles de lavradores.
E, senhor, não me creais,/ Se as não acham mais finas/ Que as dos lobos cervais,/ Que arminhos e zebelinas,/ Custam menos, cobrem mais.
Ah, senhor, que vos direi?/ Que acode mais vento às velas./ Nunca se descuide o Rei:/ Que inda não é feita a lei,/ Já se lhe buscam cautelas.
Então, tristes das mulheres,/ Tristes dos órfãos coitados,/ E a pobreza dos mesteres,/ Que nem falar são ousados/ Diante os móres poderes!
Os quais quem os assi quer,/ Quem os negocea assi?/ Que fará dês que as houver?/ Nossos houveram de ser,/ Buscaram-nos para si.
[Ora já que as consciências/ O tempo as levou consigo,/ Venhamos às penitências./ Senhor, se eu visse castigo.../ Boas são as residências.
Mas eu vejo cá na Aldea,/ Nos enterros abastados,/ Muito padre que passea,/ Em fim, ventre e bolsa chea/ E assoltos de seus pecados.
Se querem reconciliar,/ Uns cos outros tem seu trato:/ Abasta-lhes acenar;/ Não nos fazem tal barato/ Ò tempo de confessar.]
Senhor, esta vossa vara/ Como as mãos emque anda é./ A boa é ave mui rara:/ Crede que esta nunca é cara,/ Que seja muita a mercê.
Livre de toda a cobiça,/ A Deus temente e a vós,/ Sem respeitos, sem perguiça,/ Varas direitas, sem nós,/ Se quereis que haja i justiça
Tomai, senhor, o conselho/ Do bom Jetro ao genro amigo:/ É verdade, é Evangelho./ Como disse aquele velho,/ Humilmente assi vos digo.
Que estas leis Justinianas,/ Se não há quem as bem reja/ Fora de paixões humanas,/ São um campo de peleja,/ Com razões fracas e ufanas.
Morre o nobre Conradino/ C'o parceiro, em todo igual,/ Cada um de tal morte indino,/ Porque o duro, ou o malino/ Doutor interpreta mal.
Diz Agostinho sãmente/ Cesse o sangue, a guerra finda./ Diz mais, d'alguns maiormente;/ Vem grosas, que corra ainda/ O Real sangue inocente.
Mas, senhor, milhor o temos:/ Sendo vós o que mandais,/ Todos nos revolveremos,/ Os que tanto não podemos/ E aqueles que podem mais.
Quem por amor se encadea/ Não é nome errado ou novo/ Se por livre se nomea./ Não tem tanto amor do povo/ Rei em quanto o mar rodea.
Não assoberbam soldados/ Aqui, nem soa o atambor./ Os outros Reis seus estados/ Guardam, de armas rodeados, Vós rodeado de amor.
Achar-nos-ão as divinas,/ No meo dos corações,/ Esculpidas vossas quinas:/ Estas são as guarnições/ De vós e dos vossos dinas.
É sem dúvida o Francês/ A seu Rei de amor aceso:/ Não lho nega o Português;/ Traz porém guarda Escocês,/ Que não é de pouco peso.
O Padre sancto assi faz,/ A quem certo se devia/ Alto assossego, alta paz./ E tem guardas todavia/ Com que vai seguro e jaz.
Que se pode ir mais avante/ C'os olhos, nem c'o sentido?/ Sem ferro e fogo que espante,/ Com duas canas diante,/ Ia amado e is temido.
Uns sobre os outros corremos/ A morrer por vós com gosto:/ Grandes testemunhas temos/ Com que mãos e com que rosto/ Por Deus e por vós morremos.
Outrossi pera os reveses/ (Queira Deus que não releve!)/ Em vós tem os Portugueses/ Codro dos Atenieses,/ Décios, que só Roma teve.
Do vosso nome um grão Rei/ Neste reino Lusitano/ Se pôs essa mesma lei,/ Que diz seu Pelicano:/ Pola Lei e pola Grei.
Mas eu sou um guarda-cabras:/ Vão-se assi de ponto em ponto./ Queria só duas palavras/ Que dos gados e das lavras/ Despois não tem fim nem conto.
Assi que seja aqui a fim:/ Tornem as práticas vivas;/ Perdestes mea hora em mim, Das que chamam sucessivas/ Estes que sabem latim.

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