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segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Sá de Miranda

No final da “Carta a EL-Rei D. João Nosso Senhor”, Sá de Miranda legitima a sua epístola assumindo-a como um discurso recreativo, quando se refere ao seu texto como o resultado de uma sucessão de palavras que se enlaçam “ponto por ponto” e são produzidas por um “guarda-cabras”. No acto declarativo com que termina a Carta, o poeta retira o tom enfático da reflexão crítica àquilo que se passa na corte e junto daqueles que estão mais próximos do Rei, servindo-se de um recurso discursivo que insinua um tom despreocupado nas suas palavras, que, desse modo entendidas, constituiriam um momento lúdico para o Rei, na perspectiva de que este, por sua vez, pudesse vir a ocupar “mea hora” de recreio na leitura, enquanto decorresse uma pausa dos seus trabalhos.

As palavras finais de Sá de Miranda devem, contudo, ser lidas à luz de uma estratégia particular com vista a ganhar o favor do Rei, de modo a que este se deixe sensibilizar pelos avisos que lhe são apresentados pelo poeta. Ainda assim, o final da Carta pode ser enquadrado na sequência das estrofes de abertura do poema, em que Sá de Miranda utiliza a captatio benevolentiae, com vista a obter a atenção do Rei para o “entretenimento” que lhe propõe. Contudo, o “entretenimento” a que o poeta alude e assume, ultrapassa o âmbito da mera recreação e apenas se apresenta deste modo, na perspectiva de que o Rei, presumivelmente crente nas palavras e avisos de conselheiros cobiçosos, estará naturalmente susceptível a errar nas suas decisões e favores. Sá de Miranda actua deste modo em conformidade com o seu pensamento e com a sua linha de actuação ética, na medida em que toma para si a tarefa de, não se deixando calar e encontrando-se fora do círculo da corte, alertar o Rei para os eventuais enganos em que este pode cair no caso de não ser capaz de distinguir o homem honesto do homem dissimulado, que, nas palavras do poeta correspondem ao aldeão, que Sá de Miranda diz ser, e ao cortesão. É disto que nos dá conta a estrofe 24, no momento em que o poeta refere o “gracejar” que ele diz ouvir no seu ambiente bucólico, em que ele, o aldeão, se encontra e onde, em contraponto às insidias da corte, nos é sugerido o lugar de uma virtude e de uma natureza primordial imaculada, a que se encontra associado o cariz bucólico da Carta e do pastor que dela emerge. Num certo sentido, Sá de Miranda actualiza a Ode de Horácio e é como “homem justo e tenaz no seu propósito”, que não vacila na sua honestidade, que apresenta ao Rei os perigos a que este está sujeito na sua acção, fazendo-o enquanto “Homem dum só parecer, /Dum só rosto e dũa fé” que do lado de fora da corte e da corrupção enuncia os perigos a que o Rei está sujeito.
Existe em Sá de Miranda uma afirmação de um conceito de tempo que encontra nas palavras de outros autores a sua raiz. Na Carta, Sá de Miranda evoca sistematicamente aspectos relacionados com um presente que, sendo o seu, contém características que podem ser observadas em todas as épocas e em todos os lugares. Um tempo corrompido pela ânsia de poder e pela intriga. A Carta que Sá de Miranda dirige ao Rei inscreve-se num registo que vem a ser mais tarde recuperado por Camões quando, por exemplo, se dirige a D. Sebastião, lamentando os favores que junto deste, uma corte dissimulada procura obter. Sá de Miranda, como Camões, apresenta-se como uma espécie de reserva ética perante um mundo governado pelo interesse particular e pela dissimulação.
Aparentemente, Sá de Miranda parece, motivado pelo desencanto que o presente lhe traz, apenas crer nas suas palavras enquanto motivo de ocupação de um tempo hipotecado. Ainda assim, através das suas palavras, o simples facto de haver uma intenção de seduzir o Rei para a sua causa, a de contribuir para o bom governo, para o governo dos justos, pode acrescentar à Carta a ideia de que, apesar de tudo, ainda poderá ser pelo exercício da palavra que se dará uma espécie de redenção do mundo, e que, desse modo, ainda haverá lugar para a esperança. Se assim entendermos as palavras de Sá de Miranda, então não poderemos, pelo menos ao nível das intenções, deixar de pensar que o desencanto sentido pelo poeta não corresponde a uma qualquer espécie de derrota diante da voragem de um presente corrupto, mas muito mais a uma crença de que um dia, motivado pela esperança, lhe seja dado a observar um mundo concertado.
O presente passa a ser entendido como uma mera transição para outra coisa, desse modo remetendo o exercício da ventura para o futuro, para o lugar onde poderá eventualmente emergir o resultado de uma educação ética. Assim, não é estranho notar que o presente em Sá de Miranda é o lugar de todos os males e é nesse tempo que se engendram as estratégias que visam o poder e em que se estabelecem os ardis com vista a alcançar-se aquilo que é próprio do carácter efémero da vida dos homens, o espaço em que estes podem aspirar à ilusão de um poder que, para o poeta, apenas pode ser concretizável numa outra dimensão, a um outro nível.
Sendo assim, a “Carta a El-Rei D. João Nosso Senhor” pode ser entendida como um poema didáctico que estabelece as regras segundo as quais o Rei deverá orientar a sua acção com vista a governar bem e com justiça. Contudo, a Carta apenas se serve da figura do Rei como se de um farol se tratasse, na medida em que a posição privilegiada do Rei na condução dos homens, pode permitir pensar que uma vez agindo de uma certa forma o Rei será capaz de mudar as regras do mundo. O Rei aparece, assim, ao longo da Carta, como o último recurso a que o poeta pode recorrer na esperança de que ainda seja possível salvar um mundo sem remédio, na medida em que é próprio da natureza humana a queda perante a ilusão de um poder que, sendo terreno, nunca deixará de ser efémero e apenas ilusoriamente permite aos que produzem a intriga aceder à ilusão do domínio de um tempo, o presente. Contudo, o tempo de Sá de Miranda, apesar de sofrer as penas do presente, projecta-se num futuro desejavelmente redentor, mas em que o poeta descrê. Contudo, apesar da sua descrença, em vez de se deixar levar pelo movimento geral, ele reage e o facto de fazer uso da palavra, bem como de se dirigir ao Rei, pode insinuar que, para Sá de Miranda ainda pode ser possível alterar um estado de coisas que, embora reconhecendo, o fazem permanecer do lado de fora da corte, qual pastor que não se deixa corromper pelos vícios do mundo.

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