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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Livro

«Continuo a fazer de conta que não sou cego, continuo a cmprar livros, continuo a encher a minha casa de livros. Há dias ofereceram-me uma edição de 1966 da Enciclopédia Brockhaus. Senti a presença desse livro na minha casa, senti-a como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tal volumes, escritos numa letra gótica que sou incapaz de ler, com os mapas e gravuras que não posso ver; e, todavia, o livro estava ali. Senti como que a gravitação amistosa do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade concedida aos homens.
Fala-se do desaparecimento do livro; creio que é impossível. Dir-se-á que diferença pode haver entre um livro e um jornal ou um disco. A diferença está em que um jornal lê-se para se esquecer, um disco também se ouve para depois se esquecer, é uma coisa mecânica e, portanto, fútil. Um livro lê-se para se reter na memória.
A ideia de um livro sagrado, do Alcorão ou da Bíblia, ou dos Vedas - onde também se diz que os Vedas criam o mundo -, pode ser coisa do passado, mas o livro conserva ainda uma certa santidade que devemos esforçar-nos por não perder. Pegar num livro e abri-lo mantém a possibilidade do acontecimento estético. O que são as palavras encostadas umas às outras num livro? O que são esses símbolos mortos? Absolutamente nada. O que é um livro, se o não abrirmos? É simplesmente um cubo de papel e de couro, com folhas; mas se o lemos acontece uma coisa extraordinária; creio creio que não é a mesma de cada vez que o fazemos.
Heraclito disse (demasiadas vezes o repito) que ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas de um rio. Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio porque as águas mudam, mas o que é mais terrível é que nós não somos  menos fluidos do que o rio. De cada vez que lemos um livro, o livro não é o mesmo, a conotação das palavras é outra. Além disso, os livros estão carregados de passado.
Falei contra a crítica e vou agora desdizer-me (mas não tem importância que me desdiga). Hamlet não é exactamente o Hamlet que Shakespeare concebeu no prícipio do século XVII; Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe e de Bradley. Hamlet foi ressuscitado. O mesmo acontece com o Quixote. O mesmo acontece com Lugones e Martínez Estrada, o Martín Fierro não é o mesmo. O leitores foram enriquecendo o livro.
Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo o tempo que transcorreu até nós desde o dia em que ele foi escrito. Por isso convém manter o culto do livro. O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objecto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.
É isto que hoje lhes queria dizer.»

Jorge Luis Borges, Borges, Oral

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