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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O Sonho

«É o Gabiru que se põe a falar sem tom nem som. Um homem absurdo. Olhos magnéticos de sapo. É uma parte do meu ser que abomino, é a única parte do meu ser que me interessa. Às vezes deita-me tinta nos nervos. Fala quando menos o espero. Chamo-o, não comparece. Se quero ser prático, gesticula dentro do casaco arripiado: - A alma! - a alma! - Singular filósofo! É capaz de desejar a morte para ver o que há lá dentro; é capaz de achar vulgares até as coisas eternas. Ao lado da vida constói outra vida. Sonha, e os seus sonhos são sempre irrealizáveis, transformam-se-lhe nas mãos em barro informe. Tôda a gente se ri - já sonha outra vez... Para êle a vida consiste, encolhido e transido, em embeber-se em sonho, em desfazer-se em sonho, em atascar-se em sonho. Meses inteiros ninguém lhe arranca palavra, dias inteiros ouço-o monologar no fundo de mim próprio. Ignora todas as realidades práticas.. Na árvore vê a alma da árvore, na pedra a alma da pedra. Deforma tudo. Põe a mão e molha - destinge sonho...
- A alma, - diz êle - ao contrário do que tu supões, a alma é exterior: envolve e impregna o corpo como um fluido envolve a matéria. Em certos homens a alma chega a ser visível, a atmosfera que os rodeia toma côr. Hà sêres cuja alma é uma contínua exalação. Há-os cuja alma é duma sensibilidade extrema: sentem em si todo o universo. Daí também simpatias e antipatias súbitas quando duas almas se tocam, mesmo antes de a matéria comunicar. O amor não é senão a impregnação desses fluidos, formando uma só alma, como o ódio é a repulsão dessa névoa sensível. É assim que o homem faz parte da estrela e a estrela de Deus. Nos vegetais, nas árvores, a alma é interior, pequenina emoção, pequenina alma ingénua e humilde, que se exterioriza em ternura a cada primavera: tocada pelo grande fluido esparso, vem à tona em oiro e verde, em deslumbramento. Nos minerais, na pedra concentrada e recalcada, que dor inconsciente, que esforço cego e mudo por não poder abalar as paredes e comunicar com a alma do universo! A pedra espera ainda dar flor.»

Raúl Brandão, Húmus

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