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Oeiras, Portugal
Aluno e Professor. Sempre aluno.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Benedetto Croce

Liberdade

«Niente di più frequente che udire ai giorni nostri l'annunzio giubilante o l'ammissione rassegnata o la lamentazione disperata che la libertà abbia ormai disertato il mondo, che il suo ideale sia tramontato sull'orizzonte della storia, con un tramonto senza promessa di aurora. Coloro che così parlano scrivono e stampano, meritano il perdono motivato con le parole di Gesù: perchè non sanno quel che si dicano. Se lo sapessero, se riflettessero, si accorgerebbero che asserire morta la libertà vale lo stesso che asserire morta la vita, spezzata la sua intima molla. E, per ciò che si attiene all'ideale, proverebbero grande imbarazzo all'invito di enunciare l'ideale che si è sostituito, o potrebbe mai sostituirsi, a quello della libertà; e anche qui si avvedrebbero che non ve n'ha alcun altro che lo pareggi, nessun altro che faccia battere il cuore dell'uomo nella sua qualità di uomo, nessun altro che meglio risponda alla legge stessa della vita, che à storia e le deve perciò corrispondere un ideale nel quale la storicità sia accettata e rispettata e messa in condizione di produrre opere sempre più alte.
Certo, nell'opporre alle legioni dei diversamente pensanti o diversamente favellanti queste proposizioni apodittiche si è ben consapevoli che esse sono proprio di quelle che possono far sorridere o muovere a scherni verso il filosofo, il qual par che caschi sul mondo come un uomo dell'altro mondo, ignaro di ciò che la realtà è, cieco e sordo alle sue dure fattezze e alla sua voce o ai suoi gridi. Anche senza soffermarsi sugli avvenimenti e sulle condizioni contemporanee onde in molti paesi gli ordini liberali, che furono il grande acquisto del secolo decimonono e sembrarono acquisto in perpetuo, sono crollati e in molti altri s'allarga il desiderio di questo crollo, la storia tutta mostra, con brevi intervalli d'inquieta, malsicura e disordinata libertà, con rari lampeggiamenti di una felicità piuttosto intravista che mai posseduta, un accavallarsi di oppressioni, d'invasioni barbariche, di depredazioni, di tirannie profane ed ecclesiastiche, di guerre tra i popoli e nei popoli, di persecuzioni, di esili e di patiboli. E, con questa vista innanzi agli occhi, il detto che la storia è storia della libertà suona come un'ironia o, asserito sul serio, come una balordaggine.
Senonchè la filosofia non sta al mondo per lasciarsi sopraffare dalla realtà quale si configura nelle immaginazioni percosse e smarrite, ma per interpretarla, sgombrando le immaginazioni. Così, indagando e interpretando, essa, la quale ben sa come l'uomo che rende schiavo l'altro uomo sveglia nell'altro la coscienza di sè e lo avvia alla libertà, vede serenamente succedere a periodi di maggiore altri di minore libertà, perchè quanto più stabilito e indisputato è un ordine liberale, tanto più decade ad abitudine, e, scemando nell'abitudine la vigile coscienza di sè stesso e la prontezza della difesa, si dà luogo ad un vichiano ricorso di ciò che si credeva che non sarebbe mai riapparso al mondo, e che a sua volta aprirà un nuovo corso.»

Benedetto Croce, La Storia come Pensiero e come Azione 

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Rememberance

And you wait, keep waiting for that one thing
which would infinitely enrich your life:
the powerful, uniquely uncommon,
the awakening of dormant stones,
depths that would reveal you to yourself.

In the dusk you notice the book shelves
with their volumes in gold and in brown;
and you think of far lands you journeyed,
of pictures and of shimmering gowns
worn by women you conquered and lost.

And it comes to you all of a sudden:
That was it! And you arise, for you are
aware of a year in your distant past
with its fears and events and prayers.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Metahistory

«Yet Nietzsche's idea of history was a little appreciated by professional historians as Hegel's, not because his reflections on history were clouded by a technical language of the sort used by Hegel, but because his meaning was all too clear and all too obviously threatening to professional conceptions of history's competence. Nietzsche's purpose was to destroy belief in a historical past from which men might learn any single, substantial truth. For Nietzsche - as for Burckhardt - there were as many "truths" about the past as there were individual perspectives on it. In his view, the study of history ought never to be merely an end in itself but should always serve as a means to some vital end or purpose. Men looked at the world in ways that conformed to the purposes which motivated them; and they required different visions of history to justify the various projects which they had to undertake in order to realize their humanity fully. Basically, therefore, Nietzsche divided the ways in which men looked at history into two kinds: a life-denying kind, which pretended to find the single eternally true, or "proper", way of regarding the past; and a life-affirming kind, which encouraged as many different visions of history as there were projects for winning a sense of self in individual human beings. The desire to believe that there was one, eternally true, or "proper", idea of history was, in Nietzsche's opinion, another vestige of the Christian need to believe in the one, true God - or of Christianity's secular counterpart, Positivist science, with its need to believe in a single, complete, and completely true body of natural laws. To both of these essentially constrictive conceptions of truth and to their equivalents in art - Romanticism and Naturalism - Nietzsche opposed his own conception of the relativity of every vision of the real.»

Hayden White, Metahistory

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Mawlana Jalal-ad-Din Rumi's Ode

Our death is our wedding with eternity.
What is the secret? "God is One."
The sunlight splits when entering the windows of the house.
This multiplicity exists in the cluster of grapes;
It is not in the juice made from the grapes.
For he who is living in the Light of God,
The death of the carnal soul is a blessing.
Regarding him, say neither bad nor good,
For he is gone beyond the good and the bad.
Fix your eyes on God and do not talk about what is invisible,
So that he may place another look in your eyes.
It is in the vision of the physical eyes
That no invisible or secret thing exists.
But when the eye is turned toward the Light of God
What thing could remain hidden under such a Light?
Although all lights emanate from the Divine Light
Don't call all these lights "the Light of God";
It is the eternal light which is the Light of God,
The ephemeral light is an attribute of the body and the flesh.
...Oh God who gives the grace of vision!
The bird of vision is flying towards You with the wings of desire.

Mawlana Jalal-ad-Din Rumi, Mystic Odes

Six Feet Under S05 E10- Nate's Funeral

Niccolò Machiavelli (1469-1527)

O Príncipe

«Não se surpreenda ninguém de que, nas considerações que venha a fazer sobre os principados inteiramente novos, e sobre o príncipe e o Estado, aduza eu exemplos notabilíssimos; porquanto, caminhando os homens quase sempre sobre vias já exploradas por outros, e conduzindo-se como imitadores, e ainda que não possa repetir inteiramente os caminhos alheios, nem atingir o valor dos que são imitados, deve um homem prudente seguir sempre o caminho dos grandes homens, e tratar de imitar os excelentes, a fim de que se o seu valor os não alcançar, ao menos receba deles algum perfume; importa fazer como os arqueiros prudentes, aos quais, por parecer assaz distante o ponto que desejam ferir, e por conhecer até onde pode chegar o tiro do seu arco, põem a mira muito acima do alvo, não para atingir com a flecha tal altura, mas sim para, com a ajuda de tão alta mira, bater no objectivo.»

Maquiavel, O Príncipe   

Maquiavel

«Deve ainda aquele que está numa província estranha em tudo, tal como se disse, fazer-se chefe e defensor dos vizinhos menos poderosos, tratando de enfraquecer os que o são mais, e evitando de todas as formas que nela se imiscua um forasteiro tão forte como ele. E sempre tal intervenção será de esperar da indústria os descontentes que o são por medo ou demasia de ambição; como se viu com os Etólios que introduziram os romanos na Grécia; em todo o território em que estes entraram, a ele foram chamados pelos habitantes. E a lei das coisas está em que logo que um estrangeiro forte entra numa província, a ele aderem todos os que nela têm pior estado, movidos da inveja que alimentam contra os poderosos; tanto assim é que, relativamente aos deserdados da fortuna, não tem porque afadigar-se em aliciá-los, dado que logo estão, voluntariamente, do lado do novo Estado.(...) Porque os romanos fizeram [...] aquilo que todos os príncipes sábios deveriam fazer: os quais não somente devem atender as vicissitudes presentes como também as futuras, e a todas obviar com inteira diligência: porque, prevenindo-se com grande antecipação, facilmente se lhes pode dar remédio, mas, esperando que elas nos aguilhoem, a medicina já está fora de tempo porque a enfermidade se tornou incurável, ocorre aqui o que dizem os físicos do ético, que no princípio do mal é fácil de curar e difícil de conhecer, mas que, passado tempo, desde que se não tenha logo diagnosticado e medicado, é fácil de conhecer e difícil  de curar. Assim acontece nas coisas do Estado; porque, conhecendo-se com antecipação (coisa que se não oferece senão ao homem prudente) os males que nele nascem, é possível curá-los rapidamente; mas quando, pela ignorância deles, crescem de tal modo que todos se apercebem da sua existência, é que não há mais remédio.»

Maquiavel, O Príncipe

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Parsival (II)

Parsival

«Se o coração é habitado pela hesitação, a alma lamentá-lo-á. Vergonha e honra chocam-se onde a coragem de um homem resoluto se torna matizada como a plumagem da pega. Mas esse homem poderá ainda assim ser prazenteiro, por o Céu e o Inferno ocupam partes iguais dentro dele. O amigo da infidelidade veste-se de negro e ostenta um aspecto obscuro, enquanto o homem de temperamento leal tende para o branco.
Esta comparação alada é demasiado ligeira para os espíritos imaturos. Falta-lhes capacidade para a compreenderem e ela passa por eles como uma lebre assustada! Tal como acontece com um espelho baço ou o sonho de um cego. Assim se revela a face de contornos obscuros: mas a negra imagem não defende, apenas permite a alegria momentânea. Quem me belisca a palma da mão, onde nunca um pêlo cresceu? Deveria realmente ter aprendido a apertar a mão com firmeza! Tivesse eu gritado um receoso 'Oh!' e isso ter-me-ia marcado como tolo. Poderei eu encontrar lealdade onde ela vai desvanecer-se, como o fogo numa fonte ou o orvalho ao sol?
Por outro lado, eu tenho ainda de conhecer um homem tão sábio que ignore alegremente qual a orientação que esta história requer e a edificação que lhe oferece. O conto nunca perde o ânimo, mas foge e persegue, volta para trás e vira-se para o ataque e divide a culpa e o louvor. O homem que segue todas estas vicissitudes e que não pára muito tempo nem se perde e doutro modo sabe onde permanece, foi bem servido de engenho e juízo.
A falsa amizade conduz ao fogo e destrói a nobreza do homem como granizo. No conto a sua lealdade é tão escassa que se encontrasse moscardos na floresta eles não perderiam nem uma picada em cada três.»

Wolfram von Eschenbach, Parsival

O Sonho

«É o Gabiru que se põe a falar sem tom nem som. Um homem absurdo. Olhos magnéticos de sapo. É uma parte do meu ser que abomino, é a única parte do meu ser que me interessa. Às vezes deita-me tinta nos nervos. Fala quando menos o espero. Chamo-o, não comparece. Se quero ser prático, gesticula dentro do casaco arripiado: - A alma! - a alma! - Singular filósofo! É capaz de desejar a morte para ver o que há lá dentro; é capaz de achar vulgares até as coisas eternas. Ao lado da vida constói outra vida. Sonha, e os seus sonhos são sempre irrealizáveis, transformam-se-lhe nas mãos em barro informe. Tôda a gente se ri - já sonha outra vez... Para êle a vida consiste, encolhido e transido, em embeber-se em sonho, em desfazer-se em sonho, em atascar-se em sonho. Meses inteiros ninguém lhe arranca palavra, dias inteiros ouço-o monologar no fundo de mim próprio. Ignora todas as realidades práticas.. Na árvore vê a alma da árvore, na pedra a alma da pedra. Deforma tudo. Põe a mão e molha - destinge sonho...
- A alma, - diz êle - ao contrário do que tu supões, a alma é exterior: envolve e impregna o corpo como um fluido envolve a matéria. Em certos homens a alma chega a ser visível, a atmosfera que os rodeia toma côr. Hà sêres cuja alma é uma contínua exalação. Há-os cuja alma é duma sensibilidade extrema: sentem em si todo o universo. Daí também simpatias e antipatias súbitas quando duas almas se tocam, mesmo antes de a matéria comunicar. O amor não é senão a impregnação desses fluidos, formando uma só alma, como o ódio é a repulsão dessa névoa sensível. É assim que o homem faz parte da estrela e a estrela de Deus. Nos vegetais, nas árvores, a alma é interior, pequenina emoção, pequenina alma ingénua e humilde, que se exterioriza em ternura a cada primavera: tocada pelo grande fluido esparso, vem à tona em oiro e verde, em deslumbramento. Nos minerais, na pedra concentrada e recalcada, que dor inconsciente, que esforço cego e mudo por não poder abalar as paredes e comunicar com a alma do universo! A pedra espera ainda dar flor.»

Raúl Brandão, Húmus

Le Bateau Ivre

Domenico Pelini

Hugo von Hofmannsthal

«A imaginação forte é conservadora.
Nós temos em toda a vida, especialmente na esfera da comunicação espiritual, o hábito errado de emprestarmos às outras pessoas muito daquilo que nos é próprio, como se tivesse de ser mesmo assim. Mas como elas, além disso, nos mostram também o que têm de si próprias, daí resultam, dado que nós procuramos criar uma unidade com as duas partes, autênticos monstros, semelhantes àqueles que, numa casa com muitos cantos, a luz de uma lanterna produz com uma parte de sombras e uma parte de objectos reais. Não há nenhuma operação mais útil mas, ao mesmo tempo, mais difícil que deduzir da imagem do outro aquilo que inconscientemente lhe foi emprestado. No entanto, só assim fazemos dos outros verdadeiras pessoas - ou, dito de uma maneira mais breve: o homem julga compreender os homens quando acrescenta a uma suposta e ilimitada analogia com o seu próprio eu ainda alguma coisa que é contrária a esse eu. É a experiência que leva cada um a poder lidar com pessoas que tem de imaginar, na sua essência, diferentes de si mesmo.»

Hugo von Hofmannsthal, Livro dos Amigos

Os Sonhos

«O meu corpo físico pode estar em Lucerna, no Colorado ou no Cairo, mas ao acordar cada manhã, ao retomar o hábito de ser Borges, emerjo invariavelmente de um sonho que acontece em Buenos Aires. As imagens podem ser cordilheiras, pântanos com andaimes, escadas de caracol que mergulham em caves, dunas cuja areia tenho de contar, mas qualquer dessas coisas é uma embocadura precisa do Bairro de Palermo ou do Sul. Na vigília estou sempre no meio de uma vaga neblina luminosa de tinta cinzenta ou azul; vejo nos sonhos ou converso com mortos, sem que nenhuma dessas coisas me espante. Nunca sonho com o presente, mas sim com uma Buenos Aires passada e com as galerias e clarabóias da Biblioteca Nacional na Rua do México. Quererá isto dizer que, para lé da minha vontade e da minha consciência, sou irreparavelmente, incompreensivelmente portenho?»

Jorge Luis Borges, Atlas

The Smiths

Tempo

Chegou a hora de voltar a levantar a cabeça. De contemplar o horizonte e partir. Os dias mais recentes, cinzentos, lavaram as almas humedecidas. É tempo de retomar o caminho. Um caminho composto de laços que se vão apertando e desapertando. De laços. Os laços que perduram, mesmo em silêncio, e que nos invadem em torrente, despertando a nossa noção de tempo e de duração.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Sogno per vivere

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Christmas Oratorio BWV 248

47

Como no verso antigo, sou feliz
por «esta sorte imensa, conhecer-te»
e já me tarda a luz onde procuro
outro mais puro modo de dizer-te.
Aos poucos vou fazendo maus poemas
com a rima calada dos sentidos,
até me descobrir a toda a gente
como um vulgar espelho transparente.
Já me esquecia, por uma qualquer
dor distraída que no corpo tinha,
de desenhar a melodia; mas
quando em ti penso sou seguro e claro;
gira a terra sem melancolia,
aceito tudo como o tempo o quis.

António Franco Alexandre, Duende

The Solitary Reaper

Behold her, single in the field,
Yon solitary Highland Lass!
Reaping and singing by herself;
Stop here, or gently pass!
Alone she cuts and binds the grain,
And sings a melancholy strain;
O listen! for the Vale profound
Is overflowing with the sound.

No Nightingale did ever chaunt
More welcome notes to weary bands
Of travellers in some shady haunt,
Among Arabian sands:
A voice so thrilling ne’er was heard
In spring-time from the Cuckoo-bird,
Breaking the silence of the seas
Among the farthest Hebrides.

Will no one tell me what she sings?--
Perhaps the plaintive numbers flow
For old, unhappy, far-off things,
And battles long ago:
Or is it some more humble lay,
Familiar matter of to-day?
Some natural sorrow, loss, or pain,
That has been, and may be again?

Whate’er the theme, the Maiden sang
As if her song could have no ending;
I saw her singing at her work,
And o’er the sickle bending;--
I listened, motionless and still;
And, as I mounted up the hill
The music in my heart I bore,
Long after it was heard no more.

William Wordsworth (1803)

Romantismo

«O romantismo não reside concretamente nem na escolha dos assuntos, nem na verdade exacta, mas na maneira de sentir.
Procuraram-no fora, e só era possível encontrá-lo dentro.
Para mim, o romantismo é a expressão mais recente, mais actual do belo.
Existem tantas belezas quantas as maneiras habituais de procurar a felicidade.
A filosofia do progresso explica isto claramente; é que, como existiram tantos ideais quantas as formas como os povos entenderam a moral, o amor, a religião, etc., o romantismo não consistirá numa execução perfeita, mas numa concepção análoga à moral do século.
Foi por alguns o terem situado na perfeição do ofício que tivemos o rococó do romantismo, sem dúvida o mais insuportável de todos.
Logo, antes de mais nada, é preciso conhecer os aspectos da natureza e as situações do homem, que os artistas do passado desprezaram ou não conheceram.
Quem diz romantismo diz arte moderna - isto é, intimidade, espiritualidade, cor, aspiração ao infinito, expressas por todos os meios que as artes comportam.»

Charles Baudelaire, A Invenção da Modernidade

Six Feet Under

L'invitation au voyage

Modernidade

«A modernidade acaba por se revelar um dos conceitos por meio dos quais a natureza característica da literatura se pode manifestar em toda a sua complexidade. Não admira que se tenha tornado uma questão central nas discussões da crítica e uma fonte de tortura para escritores que com ela se têm de confrontar enquanto desafio à sua vocação. Não a podem aceitar ou rejeitar com boa consciência. Quando afirmam a sua própria modernidade, estão destinados a descobrir a sua dependência em relação a afirmações análogas que foram feitas pelos seus predecessores literários; a sua alegação de que representam um novo começo acaba por ser a repetição de uma alegação que foi feita desde sempre. Mal Baudelaire substitui o instante único da invenção, concebido como um acto, por um movimento sucessivo que implica pelo menos dois momentos distintos, entra num mundo que pressupõe as profundidades e as complicações de um tempo articulado, uma interdependência entre passado e futuro que impede todo o presente de alguma vez emergir.
Quanto maior é a rejeição de tudo o que veio antes, maior é a dependência em relação ao passado.»

Paul de Man, O Ponto de Vista da Cegueira

A Child is Born

Mitologias

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

M. H. Abrams

Gloria

Influência

Autobiografia

«Autobiography (...) is not a genre or a mode, but a figure of reading or of understanding that occurs, to some degree, in all texts. The autobiographical moment happens as an alignement between the two subjects involved in the process of reading in which they determine each other by mutual reflexive substitution. The structure implies differentiation as well as similarity, sonce both depend on a substitutive exchange that constitutes the subject. This specular structure is interiorized in a text in which the author declares himself the subject of his own understanding, but this merely makes explicit the wider claim to authorship that takes place whenever a text is stated to be by someone and assumed to be understandable to the extent that this is the case. Which amounts to saying that any book with a readable title page is, to some extent, autobiographical.»

Paul de Man, «Autobiography As De-Facement»

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Treta

«O que se passa numa conversa da treta é que os seus participantes experimentam vários argumentos e atitudes de forma a sentirem como é ouvirem-se dizer tais coisas e a descobrirem como reagem os outros, sem que se presuma que eles estão a falar a sério: há um entendimento tácito, por parte de todos os participantes numa conversa da treta, de que as afirmações feitas não revelam necessariamente o que eles pensam ou aquilo em que eles realmente acreditam. O importante é tornar possível um alto nível de candura e uma aproximação aos temas muito experimental e aventureira. Nesse sentido, existe a expectativa do gozo de uma certa irresponsabilidade, de forma a que os intervenientes sejam encorajados a dizer o que lhes vai na cabeça, sem grande ansiedade quanto a um compromisso face ao que dizem.»

Harry G. Frankfurt, Da Treta 

Harry Connick, Jr

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Camilo Pessanha

Floriram por engano as rosas bravas

Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que num momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze - quanta flor! - do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?

                           Camilo Pessanha

domingo, 19 de dezembro de 2010

There is a light that never goes out

sábado, 18 de dezembro de 2010

William Wordsworth (I)

William Wordsworth

«Querida Liberdade! Mas para que serviria
Esse dom se não consagrasse a alegria?
Porque ao descer o doce alento do céu
Sobre o meu corpo, julguei sentir
Uma brisa semelhante, cuja suave agitação
Me reanimou, para agora se transformar
Numa tempestade, cujo poder excessivo
Atormentava a sua própria obra.Grato a ambos
E aos seus benéficos poderes, que, reunidos
Para destruir uma prolongada geada,
Trazem consigo promessas primaveris, a esperança
De dias activos, animados pelo voo das horas,
Dias de agradável ócio, cheio de resignados pensamentos
Obscuros, com as suas pontuais orações,
Matinas e vésperas de harmoniosos versos!

Eu, ó meu amigo, que não costumo fazer
De uma presente alegria o motivo de uma canção,
Abri, naquele dia, a minha alma em harmoniosos poemas
Que não seriam esquecidos e deixo aqui
Inscritos; fiz aos campos abertos
Uma profecia; a melodia poética veio
Espontaneamente cobrir com uma veste sacerdotal
Um espírito renascido  e eleito,
Tal a minha esperança de servir o sagrado.
A minha própria voz me animou e, mais ainda, o eco
Interior do espírito da harmonia imperfeita;
Escutei um e outro, retirando de ambos
Uma alegre confiança no futuro.»

William Wordsworth, O Prelúdio 

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Tannhauser

Cristianismo

«O Cristianismo oferece justificação para uma existência miserável dos homens sobre a terra, destituída de honra e de utilidade. Vai buscar uma tal justificação à maravilha de um amor divino que, ao contrário do que erradamente pensavam os belos Gregos, não criou o homem para uma existência terrena de alegria consciente, antes o teria encerrado num catre repugnante, preparando-lhe assim para dempois da morte um esplendor eterno de comodidade e inaccção como recompensa do desprezo por si próprio interiorizado nesta vida. Deste modo o homem não só podia como devia permanecer absorto, profunda e ingenuamente absorto,  longe da vida activa, uma vez que este mundo é o do demónio, ou seja, dos sentidos, e qualquer actividade terrena seria ministério do demónio, razão pela qual o desgraçado que quisesse empenhar-se com alegria na construção da sua própria vida teria que sofrer depois da morte o martírio eterno dos infernos. Do homem apenas se espera que tenha fé, isto é, que se reconheça miserável e que renuncie a toda a actividade pessoal cujo objectivo seja o de escapar a essa miséria da qual só há-de ser libertado pela imerecida graça divina.»

Richard Wagner, Arte e Revolução

Borges

Livro

«Continuo a fazer de conta que não sou cego, continuo a cmprar livros, continuo a encher a minha casa de livros. Há dias ofereceram-me uma edição de 1966 da Enciclopédia Brockhaus. Senti a presença desse livro na minha casa, senti-a como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tal volumes, escritos numa letra gótica que sou incapaz de ler, com os mapas e gravuras que não posso ver; e, todavia, o livro estava ali. Senti como que a gravitação amistosa do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade concedida aos homens.
Fala-se do desaparecimento do livro; creio que é impossível. Dir-se-á que diferença pode haver entre um livro e um jornal ou um disco. A diferença está em que um jornal lê-se para se esquecer, um disco também se ouve para depois se esquecer, é uma coisa mecânica e, portanto, fútil. Um livro lê-se para se reter na memória.
A ideia de um livro sagrado, do Alcorão ou da Bíblia, ou dos Vedas - onde também se diz que os Vedas criam o mundo -, pode ser coisa do passado, mas o livro conserva ainda uma certa santidade que devemos esforçar-nos por não perder. Pegar num livro e abri-lo mantém a possibilidade do acontecimento estético. O que são as palavras encostadas umas às outras num livro? O que são esses símbolos mortos? Absolutamente nada. O que é um livro, se o não abrirmos? É simplesmente um cubo de papel e de couro, com folhas; mas se o lemos acontece uma coisa extraordinária; creio creio que não é a mesma de cada vez que o fazemos.
Heraclito disse (demasiadas vezes o repito) que ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas de um rio. Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio porque as águas mudam, mas o que é mais terrível é que nós não somos  menos fluidos do que o rio. De cada vez que lemos um livro, o livro não é o mesmo, a conotação das palavras é outra. Além disso, os livros estão carregados de passado.
Falei contra a crítica e vou agora desdizer-me (mas não tem importância que me desdiga). Hamlet não é exactamente o Hamlet que Shakespeare concebeu no prícipio do século XVII; Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe e de Bradley. Hamlet foi ressuscitado. O mesmo acontece com o Quixote. O mesmo acontece com Lugones e Martínez Estrada, o Martín Fierro não é o mesmo. O leitores foram enriquecendo o livro.
Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo o tempo que transcorreu até nós desde o dia em que ele foi escrito. Por isso convém manter o culto do livro. O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objecto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.
É isto que hoje lhes queria dizer.»

Jorge Luis Borges, Borges, Oral

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Melancolia


Giorgio de Chirico

Inocência e Culpa

«Uma culpa vaga agrega-se a qualquer destas duas formas de melancolia: a da clara insuficiência do alegorista e a da negra claridade do místico. Culpa da impotência (patente no confessionalismo, na insatisfação criadora, na contínua releitura, na ironia avalorativa, na crítica demolidora) ou culpa da perda (patente no sentimento de exílio e de apatricidade ou na pressuposição de um paralelismo sombrio e incorpóreo). Por essa culpa fundante, o melancólico é, assim, um ser do tempo, melhor, um ser que sente o tempo. Pelo sentimento de impotência liga-se ao futuro, ainda que seja um futuro antecipadamente talhado como frustrante - uma mágoa vestida para a viagem. Por isso, o descrédito na acção, a terrível acédia  que o paralisa. Pelo sentimento de perda liga-se ao passado. Um passado sombra sem nome e sem espaço, de indefinidos contornos. Daí o luto não cumprido, vestindo a tristeza sem consolo do rosto melancólico.
O significador entretém na obra, e sobretudo na projecção desta, a impossibilidade de realização fundamental; mas cala a culpa e o luto na ironia e no espectáculo. O homem dos fundamentos não. Agoniza na culpa como sob um ferro demarcador [como se me viessem (...) chamar a um exame ou a uma execução]. Mas, paradoxalmente, é por esta agonia que se desculpabiliza epode assim surgir aos olhos do deus (...) que haja como a vítima sofredora, o inocente de um destino.»

Ricardina Guerreiro, De Luto por Existir, A Melancolia de Bernardo Soares à luz de Walter Benjamin

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A Primeira Foto


Nicéphore Niepce: A Mesa posta, cerca de 1822

Câmara Clara


Charles Clifford: Alhambra (Granada), 1854-1856

Decidi então tomar como guia da minha nova análise a atracção que sentia por certas fotos. Porque dessa atracção, pelo menos, eu estava seguro. Como designá-la? Fascínio? Não. Essa fotografia que eu distingo, e de que gosto, nada tem a ver com o ponto brilhante que se agita diante dos olhos e faz menear a cabeça; o que ela produz em mim é mesmo o contrário da estupidez. É antes uma agitação interior, uma festa, também um trabalho, pressão do indizível que quer ser dito. Então? Interesse? Isso é pouco; não preciso de interrogar a minha emoção para enumerar as diferentes razões que podem levar-nos a interessarmo-nos por uma foto. Podemos desejar o objecto, a paisagem, o corpo que ela representa; amar ou ter amado o ser que ela nos dá a reconhecer; espantarmo-nos com o que vemos; admirar ou discutir o trabalho do fotógrafo, etc. Mas estes interesses são inconsistentes, heterogéneos; uma determinada foto pode satisfazer um deles e interessar-me pouco. E se uma outra me interessa bastante, eu gostaria de saber o que é que, nessa foto, fez tilt dentro de mim. Assim, parecia-me que a palavra mais adequada para designar (provisoriamente) a atracção que certas fotografias exercem sobre mim era aventura. Uma determinada foto acontece-me, uma outra não.
O princípio de aventura permite-me fazer existir a Fotografia. De um modo inverso, não há foto sem aventura. Cito Sartre: «As fotos de um jornal podem muito bem 'não me dizer nada', o que significa que eu as olho sem lhes reconhecer a existência. Então, as pessoas cuja fotografia eu contemplo são bem captadas através dessa fotografia, mas sem posição existencial, tal como o Cavaleiro e a Morte, que são captadas através da gravura de Durer, mas sem que eu lhes reconheça a existência. Aliás,  podemos encontrar casos em que a fotografia me deixa num tal estado de indiferença que eu nem sequer efectuo a «mise en image». A fotografia é vagamente constituída em objecto e as personagens que nela figuram são realmente constituídas em personagens, mas apenas pela sua semelhança com seres humanos, sem uma intencionalidade particular. Elas flutuam entre a margem da percepção, a do signo e a da imagem, sem nunca abordar qualquer delas.»
Neste deserto monótono, surge-me inesperadamente uma fotografia: ela anima-me e eu animo-a. É, portanto, assim que eu devo denominar a atracção que a faz existir: uma animação. A fotografia em si mesma não é animada em nada (não acredito nas fotografias «vivas») mas ela anima-me: é o que toda a aventura faz.

Roland Barthes, A Câmara Clara 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Pianti Sospiri

Giambattista Vico

«Nas relações quase sempre tempestuosas entre a filosofia e a poesia, o filósofo napolitano Giambattista Vico (1669-1744) assume uma posição tão idiossincrática quanto a obra que lhe dá expressão. O seu livro mais importante, a Ciência Nova, fornece um dos primeiros e mais fortes contributos para definir a especificidade daquilo a que hoje chamamos as ciências humanas por oposição às ciências naturais. O que distingue as humanidades destas últimas assenta no facto de o seu objeto de estudo ter sido criado pelo próprio homem, ao passo que o filósofo natural encontra o material para as suas cogitações no mundo que antecede a criação das instituições sociais, das leis e da própria linguagem. Isso implica o desenvolvimento de um método distinto e específico para estudar tudo o que diz respeito às ciências humanas, chegando Vico à conclusão de que, nestas, o método coincide com o objecto de estudo. Esse objecto é, para todos os efeitos, indiscernível da própria história da disciplina.»

João R. Figueiredo, «Prefácio» a Ana Cláudia Santos, Poesia e Ciência Nova, o conhecimento segundo Giambattista Vico

domingo, 12 de dezembro de 2010

Havia Séculos

Havia séculos
e eram florestas sobre florestas escritas.
O canto cantava: era o incêndio do vento

folheando a memória da terra

    essa maranha de raízes aéreas que nasciam enterrando
mais fundo as árvores anteriores;
    essa teia nocturna de troncos e lianas, de ramos e folhas,
nervuras que os versos enervam irrespiráveis;
    esse mapa em relevo lavrado pela paciência da luz
que atrasando-se recorta
    estas estranhas esculturas do tempo:
os poemas selvagens

o máximo excesso de uma rosa aquática e frágil
sempre a nascer desfiladeiros
e falésias, fendas, quebradas, ravinas
vulcões que deflagram em écrans sucessivos

Havia séculos
e o cinema dos astros
acendia ampolas e bagas, campânulas, cápsulas, lâmpadas;
punha em música a infinita noite dos versos que longamente
escutam
aqueles que muito antes ou muito depois vieram ou virão
até estes anfiteatros que os desertos invadem.

Havia séculos
e / atravessando as ruínas dessa terra quente, as páginas
de água dessa roda alucinada / havia esse:
o comum de nós que dos seus se dividindo, verso
a verso, procura ainda alguém. E assim
era de novo o início.

A grande migração das imagens - havia séculos -
desde há muito começara, desde sempre, já.
E sem cessar migrávamos nós, inquietos e perdidos

sem paz e sem lei, sem amos nem destino.

Manuel Gusmão, Migrações de Fogo

sábado, 11 de dezembro de 2010

Claudio Baglioni

A boat beneath a sunny sky

A boat, beneath a sunny sky
Lingering onward dreamily
In an evening of July -

Children three that nestle near,
Eager eye and willing ear,
Pleased a simple tale to hear -

Long has paled that sunny sky:
Echoes fade and memories die:
Autumn frosts have slain July.

Still she haunts me, phantomwise,
Alice moving under skies
Never seen by waking eyes.

Children yet, the tale to hear,
Eager eye and willing ear,
Lovingly shall nestle near.

In a Wonderland they lie,
Dreaming as the days go by,
Dreaming as the summers die:

Ever drifting down the stream -
Lingering in the gloden gleam -
Life, what is but a dream?

Lewis Carroll, Through the Looking-Glass and What Alice Found There

Alexandre O'Neill

Sá de Miranda Carneiro

comigo me desavim
                             eu não sou eu nem sou o outro
aou posto em todo o perigo
                             sou qualquer coisa de intermédio
não posso viver comigo
                             pilar da ponte de tédio
não posso viver sem mim
                             que vai de mim para o Outro

Alexandre O'Neill

Um Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O'Neill

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Proust e Madalenas

Madalenas

Havia já muitos anos que, de Combray, não existia para mim tudo o que não fosse o teatro e o drama do meu deitar, quando, num dia de Inverno, ao regressar a casa, a minha mãe, vendo-me com frio, me propôs que, contra o meu hábito, tomasse um chá. Comecei por recusar e, não sei porquê, mudei de opinião. Ela mandou buscar um daqueles bolos pequenos e roliços chamados «madalenas», que parecem ter sido moldados na concha estriada de uma vieira. E não tardou que, maquinalmente, abatido pelo dia taciturno e pela perspectiva de um triste dia seguinte, levei à boca uma colher de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no preciso instante em que o gole com migalhas de bolo misturadas me tocou no céu-da-boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar-se em mim. Fora invadido por um prazer delicioso, um prazer isolado, sem a noção da sua causa. Tornara-me imediatamente indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, do mesmo modo que o amor opera, enchendo-me de uma essência preciosa: ou, antes, tal essência não estava em mim, era eu mesmo. Deixara de me sentir medíocre, contingente, mortal. Donde poderia ter vindo aquela poderosa alegria? Sentia-a ligada ao gosto do chá e do bolo, mas ultrapassava-o infinitamente, não devia ser da mesma natureza. Donde vinha? Que significava? Onde agarrá-la? Bebo um segundo gole, no qual nada encontro a mais que no primeiro, e um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, a virtude da bebida parece estar a diminuir. É evidente que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. Ela despertou-a, mas não a conhece, e não pode mais que repetir indefinidamente, cada vez com menos força, aquele mesmo testemunho que não sei interpretar e que, pelo menos, quero poder tornar a pedir-lhe e reencontrar intacto, à minha disposição, daqui a pouco, para um decisivo esclarecimento. Poiso a xícara e volto- -me para o meu espírito. A ele cabe encontrar a verdade. Mas como? Grave incerteza, sempre que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando ele, o explorador, é todo ele o país escuro que tem a explorar e onde lhe não servirá de nada toda a sua bagagem. Explorar? Não só: criar. Está diante de algo que não é ainda e que só ele pode tornar real e depois fazer entrar na sua luz.

E recomeço a perguntar a mim mesmo qual poderia ser esse estado desconhecido, que não trazia consigo qualquer prova lógica, mas sim a evidência da sua felicidade, da sua realidade, diante da qual as outras se esfumavam. Pretendo tentar fazê-lo reaparecer. Retrocedo pelo pensamento ao momento em que tomei a primeira colher de chá. Reencontro o mesmo estado, sem uma clareza nova. Peço ao meu espírito mais um esforço, que me traga mais uma vez a sensação que se escapa.

PROUST, Marcel, Em Busca do tempo perdido, Vol. I, «Do Lado de Swann»

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Santo Agostinho

O furto é punido pela Vossa lei, ó Senhor, lei que, indelevelmente gravada nos corações dos homens, nem sequer a mesma iniquidade poderá apagar. Ora que ladrão haverá que suporte com gosto outro ladrão, se até o rico não perdoa ao indigente que foi compelido ao roubo pela miséria? E eu quis roubar; roubei, não instigado pela necessidade mas somente pela penúria, fastio da justiça e pelo excesso da maldade. Tanto é assim que furtei o que tinha em abundância e em muito melhores condições. Não pretendia desfrutar do furto mas do roubo em si e do pecado.
Havia, próximo da nossa vinha, uma pereira carregada de frutos nada sedutores nem pela beleza nem pelo sabor. Alta noite, pois tínhamos o perverso costume de prolongar nas eiras os jogos até essas horas, eu com alguns jovens malvados fomos sacudi-la para lhe roubarmos os frutos. Tirámos grande quantidade, não para nos banquetearmos, se bem que provámos alguns, mas para os lançarmos aos porcos. Portanto, todo o nosso prazer consistia em praticarmos o que nos agradava, pelo facto do roubo ser ilícito.
Eis o meu coração, Senhor, eis o meu coração que olhaste com misericórdia no fundo do abismo. Diga-Vos ele agora o que buscava nesse sorvedouro, sendo eu mau desinteressadamente e não havendo outro motivo para a minha malícia, senão a própria malícia. Era asquerosa e amei-a. Amei a minha morte, amei o meu pecado. Amei, não aquilo a que era arrastado, senão a mesma queda. Que alma tão forte que se apartava do Vosso firme apoio, para se lançar na morte, apetecendo, não uma parcela da desvergonha mas a própria vergonha!
Santo Agostinho, Confissões

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Alegoria do Bom Governo da Cidade


1338-40

Alegoria

«A alegoria, tal como muitas outras formas de expressão, não perdeu o seu significado pelo simples facto de se tornar «antiquada». Pelo contrário, e como acontece frequentemente, gerou-se um antagonismo entre a forma antiga e a mais recente, tanto mais dado a desenrolar-se em silêncio quanto ers desprovido de conceitos, profundo e exasperado. O pensamento simbolizante de finais do século XVIII era tão estranho à forma de expressão alegórica original que as tentativas, muito esporádicas, de discussão teórica conducente ao esclarecimento da alegoria não têm qualquer valor - facto bem representativo desse antagonismo profundo. Goethe faz, de passagem, uma reconstrução negativa da alegoria que pode ser vista como sintomática: «Há uma grande diferença entre o poeta procurar o particular para chegar ao geral e contemplar o geral no particular. No primeiro procedimento temos uma alegoria e o particular serve apenas como exemplo, como caso exemplar do geral. Mas na segunda situação estamos de facto perante a natureza da poesia: ela dá expressão a um particular sem pensar no geral e sem apontar directamente para ele. Quem for capaz de apreender esse particular como coisa viva dispõe ao mesmo tempo do geral, mesmo sem disso ter consciência, ou só chegando a tê-la mais tarde.»

Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Alberto Caeiro

Sonho de Fernando Pessoa, poeta e fingidor

Na noite de sete de Março de 1914, Fernando Pessoa, poeta e fingidor, sonhou que acordava. Tomou o café no seu pequeno quarto alugado, fez a barba e vestiu-se com esmero. Enfiou a gabardina, porque lá fora chovia. Quando saiu faltavam vinte minutos para as oito, e às oito em ponto estava na estação do Rossio, na plataforma do comboio com destino a Santarém. O comboio partiu pontualmente às oito e cinco. Fernando Pessoa tomou lugar num compartimento onde estava sentada uma senhora aparentando cinquenta anos, que lia. Era a sua mãe e não era a sua mãe, e estava imersa na leitura. Fernando Pessoa pôs-se também a ler. Naquele dia tinha de ler duas cartas que lhe tinham chegado da África do Sul e lhe falavam de uma infância longínqua.
Fui como uma erva e não me arrancaram, disse a certo ponto a senhora que aparentava cinquenta anos. A frase agradou a Fernando Pessoa, que a anotou num caderninho. Entretanto, diante deles, passava a paisagem plana do Ribatejo, com arrozais e campinas.
Quando chegaram a Santarém, Fernando Pessoa apanhou a tipóia. Sabe onde fica uma casa isolada caiada de branco?, perguntou ao cocheiro. O cocheiro era um homenzinho anafado, com o nariza vermelho do álcool. Claro, disse, é a casa do senhor Caeiro, conheço-a bem. E fustigou o cavalo. O cavalo começou a trotar na estrada principal ladeada de palmeiras. Nos campos viam-se palhotas com um ou outro preto à porta.
Mas onde estamos nós?, perguntou Pessoa ao cocheiro, para onde me leva?
Estamos na África do Sul, respondeu o cocheiro, e estou a levá-lo a casa do senhor Caeiro.
Pessoa tranquilizou-se e apoiou-se às costas do assento. Ah, estava então na África do Sul, era mesmo isso que queria. Cruzou as pernas com satisfação e viu os seus tornozelos nus, dentro de umas calças à marinheiro. Compreendeu que era um rapazinho, o que muito o alegrou. Era bom ser um rapazinho que viajava para a África do Sul. Pegou num maço de cigarros e acendeu um com volúpia. Ofereceu um ao cocheiro, que aceitou avidamente.
Caía o crepúsculo quando avistaram uma casa branca que ficava numa colina ponteada de ciprestes. Era uma típica casa ribatejana, comprida e baixa, com as telhas vermelhas com beirais. A tipóia entrou na alameda de ciprestes, o cascalho rangeu debaixo das rodas, um cão ladrou no campo.
À porta da casa estava uma velhota com óculos e uma touca branca. Pessoa percebeu subitamente que se tratava da tia-avó de Alberto Caeiro, e erguendo-se em bicos de pés, beijou-a nas faces.
Não me canse muito meu Alberto, disse a velhota, tem uma saúde tão fraca.
Afastou-se para o lado e Pessoa entrou na casa. Era uma sala ampla, mobilada com simplicidade. Havia um fogão de sala, uma pequena estante, um aparador cheio de pratos, um sofá e duas poltronas. Alberto Caeiro estava sentado numa poltrona e tinha a cabeça inclinada para trás. Era o Headmaster Nicholas, o seu professor da High School.
Não sabia que Caeiro fosse o senhor, disse Fernando Pessoa, e fez um ligeiro cumprimento com a cabeça. Alberto Caeiro fez-lhe um gesto fatigado para entrar. Entre, caro Pessoa, convoquei-o aqui porque queria que soubesse a verdade.
Entretanto a tia-avó chegou com uma bandeja com chá e bolinhos. Caeiro e Pessoa serviram-se e pegaram nas chávenas.
Pessoa lembrou-se de não espetar o dedo mindinho, porque não era elegante. Ajeitou a gola do seu fatinho à marinheiro e acendeu um cigarro. O senhor é o meu mestre, disse.
Caeiro suspirou, e depois sorriu. É uma longa história, disse, mas é inútil contar-lha de fio a pavio, você é inteligente e compreenderá mesmo se eu saltar algumas passagens. Saiba apenas isto, que eu sou você.
Explique-se melhor, disse Pessoa.
Sou a sua parte mais profunda, disse Caeiro, a sua parte obscura. Por isso sou o seu mestre.
Um campanário, na aldeia vizinha, deu as horas.
E eu, o que devo fazer?, perguntou Pessoa.
Deve seguir a minha voz, disse Caeiro, ouvir-me-á na vigília e no sono, às vezes hei-de perturbá-lo, outras vezes não quererá ouvir-me. Mas terá de escutar-me, deverá ter a coragem de escutar esta voz, se quer ser um grande poeta.
Fá-lo-ei, disse Pessoa, prometo-lhe.
Levantou-se e despediu-se. A tipóia esperava-o à porta. Agora tornara-se de novo adulto e tinha-lhe crescido o bigode. Para onde quer que o leve?, perguntou o cocheiro. Leve-me para o fim do sonho, disse Pessoa, hoje é o dia triunfal da minha vida.
Era o dia oito de Março, e pela janela de Pessoa entrava um sol tímido.

Antonio Tabucchi, Sonhos de Sonhos

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Vozes Alfonsinas

Sá de Miranda

No final da “Carta a EL-Rei D. João Nosso Senhor”, Sá de Miranda legitima a sua epístola assumindo-a como um discurso recreativo, quando se refere ao seu texto como o resultado de uma sucessão de palavras que se enlaçam “ponto por ponto” e são produzidas por um “guarda-cabras”. No acto declarativo com que termina a Carta, o poeta retira o tom enfático da reflexão crítica àquilo que se passa na corte e junto daqueles que estão mais próximos do Rei, servindo-se de um recurso discursivo que insinua um tom despreocupado nas suas palavras, que, desse modo entendidas, constituiriam um momento lúdico para o Rei, na perspectiva de que este, por sua vez, pudesse vir a ocupar “mea hora” de recreio na leitura, enquanto decorresse uma pausa dos seus trabalhos.

As palavras finais de Sá de Miranda devem, contudo, ser lidas à luz de uma estratégia particular com vista a ganhar o favor do Rei, de modo a que este se deixe sensibilizar pelos avisos que lhe são apresentados pelo poeta. Ainda assim, o final da Carta pode ser enquadrado na sequência das estrofes de abertura do poema, em que Sá de Miranda utiliza a captatio benevolentiae, com vista a obter a atenção do Rei para o “entretenimento” que lhe propõe. Contudo, o “entretenimento” a que o poeta alude e assume, ultrapassa o âmbito da mera recreação e apenas se apresenta deste modo, na perspectiva de que o Rei, presumivelmente crente nas palavras e avisos de conselheiros cobiçosos, estará naturalmente susceptível a errar nas suas decisões e favores. Sá de Miranda actua deste modo em conformidade com o seu pensamento e com a sua linha de actuação ética, na medida em que toma para si a tarefa de, não se deixando calar e encontrando-se fora do círculo da corte, alertar o Rei para os eventuais enganos em que este pode cair no caso de não ser capaz de distinguir o homem honesto do homem dissimulado, que, nas palavras do poeta correspondem ao aldeão, que Sá de Miranda diz ser, e ao cortesão. É disto que nos dá conta a estrofe 24, no momento em que o poeta refere o “gracejar” que ele diz ouvir no seu ambiente bucólico, em que ele, o aldeão, se encontra e onde, em contraponto às insidias da corte, nos é sugerido o lugar de uma virtude e de uma natureza primordial imaculada, a que se encontra associado o cariz bucólico da Carta e do pastor que dela emerge. Num certo sentido, Sá de Miranda actualiza a Ode de Horácio e é como “homem justo e tenaz no seu propósito”, que não vacila na sua honestidade, que apresenta ao Rei os perigos a que este está sujeito na sua acção, fazendo-o enquanto “Homem dum só parecer, /Dum só rosto e dũa fé” que do lado de fora da corte e da corrupção enuncia os perigos a que o Rei está sujeito.
Existe em Sá de Miranda uma afirmação de um conceito de tempo que encontra nas palavras de outros autores a sua raiz. Na Carta, Sá de Miranda evoca sistematicamente aspectos relacionados com um presente que, sendo o seu, contém características que podem ser observadas em todas as épocas e em todos os lugares. Um tempo corrompido pela ânsia de poder e pela intriga. A Carta que Sá de Miranda dirige ao Rei inscreve-se num registo que vem a ser mais tarde recuperado por Camões quando, por exemplo, se dirige a D. Sebastião, lamentando os favores que junto deste, uma corte dissimulada procura obter. Sá de Miranda, como Camões, apresenta-se como uma espécie de reserva ética perante um mundo governado pelo interesse particular e pela dissimulação.
Aparentemente, Sá de Miranda parece, motivado pelo desencanto que o presente lhe traz, apenas crer nas suas palavras enquanto motivo de ocupação de um tempo hipotecado. Ainda assim, através das suas palavras, o simples facto de haver uma intenção de seduzir o Rei para a sua causa, a de contribuir para o bom governo, para o governo dos justos, pode acrescentar à Carta a ideia de que, apesar de tudo, ainda poderá ser pelo exercício da palavra que se dará uma espécie de redenção do mundo, e que, desse modo, ainda haverá lugar para a esperança. Se assim entendermos as palavras de Sá de Miranda, então não poderemos, pelo menos ao nível das intenções, deixar de pensar que o desencanto sentido pelo poeta não corresponde a uma qualquer espécie de derrota diante da voragem de um presente corrupto, mas muito mais a uma crença de que um dia, motivado pela esperança, lhe seja dado a observar um mundo concertado.
O presente passa a ser entendido como uma mera transição para outra coisa, desse modo remetendo o exercício da ventura para o futuro, para o lugar onde poderá eventualmente emergir o resultado de uma educação ética. Assim, não é estranho notar que o presente em Sá de Miranda é o lugar de todos os males e é nesse tempo que se engendram as estratégias que visam o poder e em que se estabelecem os ardis com vista a alcançar-se aquilo que é próprio do carácter efémero da vida dos homens, o espaço em que estes podem aspirar à ilusão de um poder que, para o poeta, apenas pode ser concretizável numa outra dimensão, a um outro nível.
Sendo assim, a “Carta a El-Rei D. João Nosso Senhor” pode ser entendida como um poema didáctico que estabelece as regras segundo as quais o Rei deverá orientar a sua acção com vista a governar bem e com justiça. Contudo, a Carta apenas se serve da figura do Rei como se de um farol se tratasse, na medida em que a posição privilegiada do Rei na condução dos homens, pode permitir pensar que uma vez agindo de uma certa forma o Rei será capaz de mudar as regras do mundo. O Rei aparece, assim, ao longo da Carta, como o último recurso a que o poeta pode recorrer na esperança de que ainda seja possível salvar um mundo sem remédio, na medida em que é próprio da natureza humana a queda perante a ilusão de um poder que, sendo terreno, nunca deixará de ser efémero e apenas ilusoriamente permite aos que produzem a intriga aceder à ilusão do domínio de um tempo, o presente. Contudo, o tempo de Sá de Miranda, apesar de sofrer as penas do presente, projecta-se num futuro desejavelmente redentor, mas em que o poeta descrê. Contudo, apesar da sua descrença, em vez de se deixar levar pelo movimento geral, ele reage e o facto de fazer uso da palavra, bem como de se dirigir ao Rei, pode insinuar que, para Sá de Miranda ainda pode ser possível alterar um estado de coisas que, embora reconhecendo, o fazem permanecer do lado de fora da corte, qual pastor que não se deixa corromper pelos vícios do mundo.

Proust

Nietzsche (I)

Nietzsche

Raymond Aron sobre Marx

Raymond Aron

O ano lectivo de 1921-1922, que considero decisivo para a minha vida, foi historicamente marcado pelos últimos sobressaltos da grande crise, de guerra e revolucionária. Nada aprendi, sobre a política, a economia, o bolchevismo e Karl Marx, mas vislumbrei, pela primeira vez, o universo encantado da especulação, ou muito simplesmente, do pensamento. Escolhera a variante A, menos por gosto das línguas antigas que por medo da Matemática. Quase ficara traumatizado, no quarto ano, por um incidente que não esqueci: não descobrira a solução de um problema. O professor escrevera a vermelho na cópia: como é que não descobriu solução para um problema tão fácil? Recuei perante o obstáculo: noutras circunstâncias, talvez me tenha escapado também aos obstáculos. Escrever ensaios, assinar contratos para livros secundários, não terá sido uma forma de evasão?

(…) Porque teria sentido uma ruptura entre a cadeira de Francês – logo, de literatura – e a de Filosofia? Ainda hoje me pergunto.
(…) O professor Aillet preparou toda a vida uma tese de Filosofia do Direito que nunca terminou (uma tese próxima do tema desencorajara-o). Segundo um artigo publicado na “Revue de Métaphysique et de Morale”, esforçava-se por interpretar a prática dos tribunais à luz de uma filosofia do julgamento e não do conceito (julgar os casos na sua singularidade, mais do que deduzir a partir do conceito de julgamento que convier ao caso) (…). A inspiração filosófica pouco importava. Aillet reflectia à nossa frente; não estava couraçado por um sistema, procurava ao alto, penosamente, a verdade. O seu discurso, por vezes embaraçado, arriscava-se a desencorajar os jovens ouvintes. Cheguei a retraduzir para os meus amigos (…) as explicações do professor, mas o trabalho do pensamento, autêntico, sem comédia, oferecido a vinte rapazes de dezassete ou dezoito anos, não um espectáculo mas uma comédia humana, tomou para alguns de nós um valor único, incomparável. Pela primeira vez, o professor não sabia, buscava; não havia verdade a transmitir, mas sim um modo de reflexão a sugerir. Claro que os verdadeiros sábios ensinam menos a verdade adquirida do que a arte ou o método de a adquirir.
(…) Deverei dizer que a cadeira de Filosofia me levou à École Normale Supérieur e à agregação porque tal caminho se abria por si só? Eu dedicava-me ao exercício intelectual para o qual era aparentemente mais dotado do que para outros. Creio que esta severidade é excessiva. A cadeira de Filosofia ensinara-me que podemos pensar na nossa existência em vez de sofrer com ela, enriquecê-la com a reflexão, manter uma relação com os grandes espíritos. Um ano de familiaridade com a obra de Kant curou-me, de uma vez por todas, a vaidade (pelo menos em profundidade).

Raymond Aron, Memórias

domingo, 5 de dezembro de 2010

Truth





Oh, it's a strange day
In such a lonely way
I saw some children dance
I watched my life in a trance
And the people around me
Seemed so glad to be here
Will my time pass so slowly
On the day that I fear?

And the noise that surrounds me
Pulls so loud in my head
From the promise that healed us
To the lies that I said
Oh, it's a strange day
In such a lonely way
Some people look down on me,
I know they like what they see

Strange day,
Such a strange day
Such a strange day

O Desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.

Luís de Camões

sábado, 4 de dezembro de 2010

Francisco de Sá de Miranda

Carta a El-Rei D. João Nosso Senhor

Rei de muitos Reis, se um dia,/ Se ua hora só, mal me atrevo/ Ocupar-vos, mal faria;/ E ao bem comum não teria/ O respeito que ter devo.
Que em outras partes da Esfera,/Em outros céus diferentes,/ Que Deus té'agora escondera,/ Cada ua de tantas gentes,/ Vossos despachos espera.
Porque, senhor, eles sós/ (Justo e poderoso Rei!)/ Desdão ou lhe cortam nós,/ Como também entre nós,/ Que sois nossa viva lei.
Onde há homens há cobiça:/ Cá e lá tudo ela empeça,/ Se a santa, igual justiça/ Não corta, ou não desempeça/ O que a má malícia enliça.
Senhor, qu'é muito atrevida!/ E onde ela nós cegos deu,/ Cortar é cousa devida:/ Exemplo, o julgo de Mida,/ Que el-Rei vosso avô fez seu.
Ora eu que respeito havendo/ Ao tempo mais que ao estilo,/ Irei fugindo ao que entendo:/ Farei como os cães do Nilo,/ Que correm e vão bebendo.
A dignidade Real,/ Que tem o mundo a direito,/ (Sem ela ter-se-ia mal)/ É sagrada, é natural:/ Deixemos medo e proveito.
As vossas velas, que vão/ Dando quase ao mundo volta,/ Raramente contarão/ Gente de algum Rei solta:/ Sem cabeça o corpo é vão.
Dignidade alta e suprema,/ Quem há que a não reconheça?/ Viu-se em Marco António tema/ De a César pôr diadema/ Real sobre a cabeça.
Que o nome de Emperador/ D'antes a César se dera,/ Sem suspeita e sem temor;/ Que inda então muito mais era/ Ser Cônsul, ser Ditador.
Um Rei ao reino convém:/ Vemos que alumia o mundo/ Um sol; um Deus o sustém./ Certa a queda e a fim tem/ O reino onde há Rei segundo.
Não, a sabor das orelhas,/ Arenga cuidada e branda./ Abastem as razões velhas:/ A cabeça os membros manda;/ Seu Rei seguem as abelhas.
A seu tempo o Rei perdoa,/ A tempo o ferro é mezinha;/ Grandeza e condição boa/ Ao Leão deram coroa/ Entre a gente montesinha.
Às aves, tamanho bando,/ Doutra liga e doutra lei,/ Por vencer todas voando,/ A águia foi dada por Rei,/ Que o sol claro atura olhando.
Quanto que sempre guardou/ David lealdade e fé/ A Saúl! Quanto o chorou!/ Quantas maldições lançou/ Aos montes de Gelboé!
Onde caíra o escudo/ Do seu Rei, inda que imigo,/ Inda que já mal sesudo,/ Saindo de tal perigo/ E subindo a mandar tudo!
O senhor da natureza/ De que o céu e a terra é chea,/ Vestindo em nossa baixeza,/ De Real sangue se preza,/ Por Rei na cruz se nomea.
Sobre obrigações tamanhas,/ Velem-se com tudo os Reis/ Dos rostos falsos e manhas,/ Com que lhes fazem das leis/ Fracas teas das aranhas.
Que se não pode fazer/ Por arte, por força ou graça./ Salvo o que a justiça quer,/ Senhor, não chamam poder/ Salvo o que lhes vai na praça.
E por muito que os Reis olhem,/ Vão por fora mil inchaços,/ Que ante vós, senhor, se encolhem./
Duns gigantes de cem braços,/ Com que dão e com que tolhem.
Quem graça ante o Rei alcança/ E i fala o que não deve,/ (Mal grande de má privança)/ Peçonha na fonte lança/ De que toda a terra bebe.
Quem joga onde engano vai/ Em vão corre e torna atrás,/ Em vão sobre a face cai:/ Mal hajam as graças más/ De que tanto engano sai!
Homem dum só parecer,/ Dum rosto e dua fé./ D'antes quebrar que volver,/ Outra cousa pode ser,/ Mas de corte homem não é.
Ouço gracejar, de cá,/ De quem vai inteiro e são,/ Nem se contrafaz mais lá:/ - Como este vem aldeão,/ Que não sabe onde se está!
As públicas santidades,/ Estes rostos transportados,/ Não em ermos, mas cidades,/ Para Deus são vaidades,/ Para nós vão rebuçados.
Mas, despois, que lhes fazemos?/ Pode ser, pode não ser,/ Adiante o saberemos:/ Estamos um pouco a ver,/ Cai-lhes o rebuço e vemos.
Senhor, hei-vos de falar/ (Vossa mansidão m'esforça)/ Claro o que posso alcançar:/ Andam pera vos tomar/ Por manha, que não por força.
Per minas trazem suas azes,/ Encobertos seus assanhos,/ Falsas guerras, falsas pazes:/ De fora são mansos anhos,/ De dentro lobos robazes.
Tudo sua cura tem:/ Que é assi, bem o sabeis/ E o remédio também./ Querei-los conhecer bem?/ No fruto os conhecereis.
Obras, que palavras não!/ Porém, senhor, somos muitos./ E, entre tanta obrigação,/ Tresmalhamos-vos os fruitos/ Que não saibais cujos são.
Um que por outro se vende/ Lança a pedra e a mão esconde./ O dano longe se estende./ Aquele a quem dói entende:/ Com sós suspiros responde.
A vida desaparece./ Entretanto, geme e jaz/ O que caiu, e acontece/ Que de um mal que se lhe faz/ Muito mais se lhe recrece.
Pena e galardão igual/ O mundo em peso sustém./ É ua regra geral:/ A pena se deve ao mal,/ O galardão ao bem.
Se algua hora aconteceu/ Na paz, muito mais na guerra,/ Que a balança mais pendeu,/ Faz-se engano às leis da terra,/ Nunca se fez às do céu.
Ante os Lombardos havia/ Lei escrita e lei usada,/ Como inda hoje, parecia:/ Onde a prova falecia/ Que o provasse a espada.
Ali no campo, às singelas,/ Em fim, morrer ou vencer./ Fosse qual quisesse delas,/ Não era milhor morrer/ A ferro que de cautelas?
A um nosso Rei excelente,/ Dom Dinis, tão acabado,/ Tão justo, a Deus tão temente,/ Falsa e maliciosamente/ Foi grande aleive assacado.
Ele posto em tal perigo,/ (Rei que Reis fez e desfez!)/ Co'as manhas do falso imigo,/ Foi-lhe forçado essa vez/ A lei chamar-se que digo,
E às vilas e às cidades,/ A que cumpriu d'acudir/ Pelas suas lealdades:/ Tanto são más as verdades/ Às vezes de descobrir!
Da mesma casa Real/ Em verdade um grande Ifante,/ Tratado por manhas mal,/ Bradava por campo igual/ E imigos claros diante.
Em fim, vendo astúcia e arte/ Quanto que pode, chamou/ Um leal conde a de parte:/ Só com ele se apartou,/ Foi viver à milhor parte.
Onde tudo é certo e claro,/ Onde são sempre uas leis,/ Príncipe no mundo raro!/ Sobre tanto desemparo,/ Foram três seus filhos Reis.
Ò senhor, quantos suores,/ Sua o corpo e a alma em vão/ Em poder de envolvedores!/ E em fim, batalhas que são/ Salvo uns desafios móres?
Co'a mão sobre um ouvido/ Ouvia Alexandre as partes,/ Como quem tinha entendido/ Por fazer certo o fingido/ Quantas que se buscam d'artes.
Quardava ele aquele inteiro/ Para a parte não ouvida;/ Não vá nada em ser primeiro;/ Quem muito sabe duvida:/ Só Deus é o verdadeiro.
A tudo dão novas cores/ Envolvendo os peitos puros,/ E falam sempre em primores./ Ante os Reis, vossos senhores,/ Vindes com rostos seguros.
Contais, gabais, estendeis/ Serviços e lealdade./ Olhai, que a não daneis:/ Falai em tudo verdade/ A quem em tudo a deveis.
Senhor, nosso padre Adão/ Pecara: chama-o o juiz./ Tenha que dizer ou não,/ I sua fraca razão/ Porém livremente diz.
Sempre foi, sempre há-de ser:/ Onde ua só parte fala/ Sempr'a outra haja de gemer./ Se um jogo todos iguala,/ As leis que devem fazer?
Vidas e honras tomais/ Debaixo do vosso emparo,/ De estranhos e naturais:/ Suspiram, não podem mais,/ E às vezes isto mal claro.
Também trás aquela arde/ Tão estimada a fazenda,/ Por mais que se vele e guarde./ Tem ela milhor emenda,/ Se não fosse mal, e tarde.
Geralmente é presumptuosa/ Espanha, e disso se preza:/ Gente ousada e belicosa./ Culpam-na de cobiçosa:/ Tudo sabe Vossa Alteza.
Pensamentos nunca cheos,/ Não tem fundo aqueles sacos!/ Ainda mal, com tantos meos,/ Para viver dos mais fracos/ E dos suores alheos.
Que eu vejo nos povoados/ Muitos dos salteadores/ Com nome e rosto d'honrados:/ Vão quentes, andam forrados/ De peles de lavradores.
E, senhor, não me creais,/ Se as não acham mais finas/ Que as dos lobos cervais,/ Que arminhos e zebelinas,/ Custam menos, cobrem mais.
Ah, senhor, que vos direi?/ Que acode mais vento às velas./ Nunca se descuide o Rei:/ Que inda não é feita a lei,/ Já se lhe buscam cautelas.
Então, tristes das mulheres,/ Tristes dos órfãos coitados,/ E a pobreza dos mesteres,/ Que nem falar são ousados/ Diante os móres poderes!
Os quais quem os assi quer,/ Quem os negocea assi?/ Que fará dês que as houver?/ Nossos houveram de ser,/ Buscaram-nos para si.
[Ora já que as consciências/ O tempo as levou consigo,/ Venhamos às penitências./ Senhor, se eu visse castigo.../ Boas são as residências.
Mas eu vejo cá na Aldea,/ Nos enterros abastados,/ Muito padre que passea,/ Em fim, ventre e bolsa chea/ E assoltos de seus pecados.
Se querem reconciliar,/ Uns cos outros tem seu trato:/ Abasta-lhes acenar;/ Não nos fazem tal barato/ Ò tempo de confessar.]
Senhor, esta vossa vara/ Como as mãos emque anda é./ A boa é ave mui rara:/ Crede que esta nunca é cara,/ Que seja muita a mercê.
Livre de toda a cobiça,/ A Deus temente e a vós,/ Sem respeitos, sem perguiça,/ Varas direitas, sem nós,/ Se quereis que haja i justiça
Tomai, senhor, o conselho/ Do bom Jetro ao genro amigo:/ É verdade, é Evangelho./ Como disse aquele velho,/ Humilmente assi vos digo.
Que estas leis Justinianas,/ Se não há quem as bem reja/ Fora de paixões humanas,/ São um campo de peleja,/ Com razões fracas e ufanas.
Morre o nobre Conradino/ C'o parceiro, em todo igual,/ Cada um de tal morte indino,/ Porque o duro, ou o malino/ Doutor interpreta mal.
Diz Agostinho sãmente/ Cesse o sangue, a guerra finda./ Diz mais, d'alguns maiormente;/ Vem grosas, que corra ainda/ O Real sangue inocente.
Mas, senhor, milhor o temos:/ Sendo vós o que mandais,/ Todos nos revolveremos,/ Os que tanto não podemos/ E aqueles que podem mais.
Quem por amor se encadea/ Não é nome errado ou novo/ Se por livre se nomea./ Não tem tanto amor do povo/ Rei em quanto o mar rodea.
Não assoberbam soldados/ Aqui, nem soa o atambor./ Os outros Reis seus estados/ Guardam, de armas rodeados, Vós rodeado de amor.
Achar-nos-ão as divinas,/ No meo dos corações,/ Esculpidas vossas quinas:/ Estas são as guarnições/ De vós e dos vossos dinas.
É sem dúvida o Francês/ A seu Rei de amor aceso:/ Não lho nega o Português;/ Traz porém guarda Escocês,/ Que não é de pouco peso.
O Padre sancto assi faz,/ A quem certo se devia/ Alto assossego, alta paz./ E tem guardas todavia/ Com que vai seguro e jaz.
Que se pode ir mais avante/ C'os olhos, nem c'o sentido?/ Sem ferro e fogo que espante,/ Com duas canas diante,/ Ia amado e is temido.
Uns sobre os outros corremos/ A morrer por vós com gosto:/ Grandes testemunhas temos/ Com que mãos e com que rosto/ Por Deus e por vós morremos.
Outrossi pera os reveses/ (Queira Deus que não releve!)/ Em vós tem os Portugueses/ Codro dos Atenieses,/ Décios, que só Roma teve.
Do vosso nome um grão Rei/ Neste reino Lusitano/ Se pôs essa mesma lei,/ Que diz seu Pelicano:/ Pola Lei e pola Grei.
Mas eu sou um guarda-cabras:/ Vão-se assi de ponto em ponto./ Queria só duas palavras/ Que dos gados e das lavras/ Despois não tem fim nem conto.
Assi que seja aqui a fim:/ Tornem as práticas vivas;/ Perdestes mea hora em mim, Das que chamam sucessivas/ Estes que sabem latim.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Eyes Wide Shut Vals

História de um Sonho

«Talvez por ser mais impetuosa, mais verdadeira ou temperamental, Albertine foi quem primeiro conseguiu reunir a coragem suficiente para se abrir numa confissão honesta. Com a voz trémula, procurou trazer à memória de Fridolin uma noite no passado Verão, na costa dinamarquesa, quando um homem jovem acompanhado de dois oficiais se sentou a uma mesa ao lado da sua, e, durante a refeição, recebeu um telegrama que de imediato o fez abandonar os dois amigos.
Fridolin assentiu com a cabeça- - Sim, lembro-me. Que é que tinha o rapaz? - inquiriu.
- Já o tinha visto nessa manhã - retorquiu Albertine -, quando subia a escadaria do hotel transportando uma mala amarela. Olhou-me quando nos cruzámos, mas, uns passos adiante, parou e voltou-se na minha direcção. Os nossos olhares detiveram-se um no outro. Não me sorriu; aliás, o seu semblante pareceu turvar-se e eu devo ter reagido de igual modo, porque senti uma perturbação nunca experimentada antes. Passei o dia na praia deitada ao sol, perdida em divagações. Se me tivesse chamado, não teria sido capaz de resistir (ou, pelo menos, assim pensei). Achei-me capaz de fazer o que quer que fosse. Estava pronta a deixar-te a ti, à nossa filha, a abdicar do nosso futuro, mas ao mesmo tempo (acreditas?), eras-me mais querido do que nunca. Nessa mesma tarde (lembras-te?) falámos confiadamente de uma imensidade de coisas - do nosso futuro a dois, da nossa filha - como já não acontecia havia tempo. Depois, ao entardecer, quando estávamos sentados no terraço, ele passou diante de nós na praia sem olhar para cima, e redobrei de felicidade. Mas era a tua fronte que eu acariciava, eram os teus cabelos que beijava. E no meu amor por ti havia também muita compaixão dorida. Nessa noite trazia uma rosa branca no cinto e tu próprio disseste que eu estava muito bonita. Talvez não tenha sido por acaso que o estranho se sentou com os amigos junto de nós. O seu olhar não me procurou, mas eu brincava com a ideia de me juntar a ele na sua mesa e dizer-lhe: «Aqui estou, meu amor tão ansiado, meu querido. Leva-me contigo». Foi nessa altura que lhe entregaram o telegrama: leu-o, empalideceu, sussurrou algumas palavras ao oficial mais jovem e deixou a sala dirigindo-me um olhar enigmático.
- E depois? - perguntou Fridolin secamente, quando ela se calou.
- Termina assim. Apenas sei que na manhã seguinte acordei nervosa e apreensiva. Não consigo exprimir-te o que me atormentava - se o facto de ele ter partido, se a possibilidade de ter ficado. Não o sei agora, e não o soube naquela altura. Mas quando, à hora do almoço, ele ainda não tinha aparecido, respirei de alívio. Não me faças mais perguntas, Fridolin. Contei-te toda a verdade. Sei que também tu viveste uma experiência idêntica nessa praia. Tenho a certeza disso.»

Arthur Schnitzler, A História de um Sonho

Paciência (I)

Paciência

Húmus

«As paixões dormem, o riso postiço criou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutraliza, e só um ruído sobreleva, o da morte, que tem diante de si o tempo ilimitado para roer. Há aqui ódios que minam e contraminam, mas como o tempo chega para tudo, , cada ano minam um palmo. A paciência é infinita e mete espigões pela terra dentro; adquiriu a cor da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambição não avança um pé sem ter o outro assente, a manha anda e desanda, e, por mais que se escute, não se lhe ouvem os passos. Na aparência é a insignificância a lei da vida; é a insignificância que governa a vila. É a paciência, que espera hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde: - Tem paciência - e os seus dedos ágeis tecem uma teia de ferro. Não há obstáculo que a esmoreça. - Tem paciência - e rodeia, volta atrás, espera ano atrás de ano, e olha com os mesmos olhos sem expressão e o mesmo sorriso estampado. Já a mentira é de outra casta, faz-se de mil cores e toda a gente acha agradável. - Pois sim... pois sim... - Não se passa nada, não se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os hábitos lentamente acumulados. E o tempo mói: mói a ambição e o fel e torna as figuras grotescas.»

Raúl Brandão, Húmus

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Estado de Excepção

«Não há qualquer salvaguarda institucional em condições de garantir que os poderes de emergência são efectivamente usados para o fim de salvar a constituição. Só a determinação do próprio povo em verificar que são usados com esse escopo pode garanti-lo [...]. As disposições quase ditatoriais dos sistemas constitucionais modernos, sejam elas a lei marcial, o estado de sítio ou os poderes de emergência constitucional, não podem realizar um controlo efectivo da concentração de poder. Por conseguinte, todos estes institutos correm o risco de ser transformados em sistemas totalitários se se apresentarem condições favoráveis.»

Friedrich, C., citado em Agamben, Giorgio, Estado de Excepção

Chico Fininho