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quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Ignorância

«... o teatro oferece-se como mediação tendente à sua própria supressão.
É neste ponto que as descrições e as proposições da emancipação intelectual podem entrar em jogo e ajudar-nos a reformular o problema. Porque esta mediação auto-evanescente não nos é desconhecida. Trata-se da própria lógica da relação pedagógica: nela, o papel entregue ao mestre é o de suprimir a distância entre o seu saber e a ignorância do ignorante. As lições do mestre e os exercícios que dá a fazer têm por finalidade reduzir progressivamente o abismo que os separa. Porém, infelizmente, o mestre só pode reduzir o afastamento na condição de o recriar constantemente. Para substituir a ignorância pelo saber, tem de caminhar sempre um passo mais à frente, reintroduzindo entre ele e o aluno uma nova ignorância. A razão para que assim seja é simples. Na lógica pedagógica, o ignorante não é apenas aquele que ignora ainda o que o mestre sabe. É antes aquele que não sabe o que ignora nem como chegar a saber isso que ignora. O mestre, esse, não é apenas o indivíduo que detém o saber ignorado pelo ignorante. É também aquele que sabe como fazer da coisa ignorada um objecto de saber, em que momento e segundo que protocolo. Porque, em boa verdade, não há ignorante que não saiba já um conjunto de coisas, que não as tenha aprendido por si próprio olhando e escutando à sua volta, observando e repetindo, enganando-se e corrigindo os seus erros. Mas, para o mestre, um tal saber não passa de um saber de ignorante, um saber incapaz de se ordenar segundo a progressão que vai do mais simples ao mais complexo. O ignorante progride comparando o que descobre com aquilo que já sabe, ao sabor do acaso dos encontros, mas também segundo a regra aritmética, a regra democrática que faz da ignorância um menor saber. Preocupa-se apenas em saber mais, em passar a saber aquilo que ainda ignorava. O que lhe falta, o que sempre faltará ao aluno, a não ser que se torne ele próprio mestre, é o saber relativo à ignorância, o conhecimento da distância exacta que separa o saber da ignorância.
Essa medida escapa precisamente à aritmética dos ignorantes. O que o mestre sabe, o que o protocolo de transmissão do saber começa por ensinar ao aluno, é que a ignorância não é um menor saber. A ignorância é o oposto do saber; porque o saber não é um conjunto de conhecimentos, mas sim uma posição. A distância exacta é a distância que nenhuma regra mede, a distância que se prova pelo simples jogo das posições ocupadas, que se exerce pela interminável prática do «passo mais à frente» que separa o mestre do indivíduo que supostamente  mestre deve trazer até junto de si. A distância é a metáfora do abismo radical que separa o modo de estar do mestre do do ignorante porque separa duas inteligências: a que sabe em que consiste a ignorância e a que o desconhece. É antes de mais este afastamento radical que é ensinado ao aluno pela ordenação própria do ensino progressivo. Este ensina-lhe antes de mais a respectiva incapacidade. E, assim sendo, trata de verificar constantemente no seu agir o seu próprio pressuposto, a desigualdade das inteligências.»

Jacques Rancière, O Espectador emancipado 

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