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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Ideia do Imemorial

«Quando acordamos sabemos por vezes que vivemos em sonhos a verdade, clara e ao alcance da mão, de tal modo que ficamos totalmente dominados por ela. Umas vezes é-nos dado ver uma escrita cujo selo subitamente quebrado nos fornece o segredo da nossa existência. Outras vezes, uma só palavra, acompanhada de um gesto imperioso, ou repetida numa lenga-lenga infantil, ilumina como um relâmpago toda uma paisagem de sombras, devolvendo a todos os pormenores a sua forma reencontrada, definitiva.
No despertar, porém, embora nos recordemos, de forma límpida, de todas as imagens do sonho, aquela escrita e aquela palavra perderam a sua força de verdade, e é com tristeza que as voltamos de todos os lados, sem conseguir redescobrir-lhes o encanto. Temos o sonho, mas, inexplicavelmente, falta-nos a sua essência, que ficou sepultada naquela terra à qual, uma vez despertados, deixámos de ter acesso.
Raramente temos tempo de observar aquilo que devia ser perfeitamente evidente: que confiamos em vão a um outro tempo e a um outro lugar o segredo do sonho. Só no momento do despertar, quando nos vem como um lampejo, o sonho existe para nós na sua inteireza. A recordação que o sonho nos concedeu é a mesma que nos faz ver o vazio que aflige: as duas estão contidas num e no mesmo gesto.
A memória involuntária proporciona uma experiência análoga. Nela, a recordação que nos devolve a coisa esquecida esquece-se também dela, e este esquecimento é a sua luz. Daí, porém, vem a nostalgia que a anima: há uma nota elegíaca que vibra tão tenazmente no fundo de toda a memória humana que, no limite, a recordação que não recorda nada é a mais poderosa das recordações.
Em vez de ver nesta aporia do sonho e da recordação uma limitação e uma fraqueza, devemos, pelo contrário,  tomá-la por aquilo que ela é: uma profecia que tem a ver com a própria estrutura da consciência. Não é aquilo que vivemos e depois esquecemos que regressa, na sua imperfeição, à consciência; somos antes nós que acedemos então a qualquer coisa que nunca foi, ao esquecimento como parte da consciência. É por isso que a nossa felicidade está impregnada de nostalgia: a consciência contém em si o presságio da inconsciência, e esse presságio é precisamente a condição da sua perfeição. Isto significa que toda a atenção tende, em última instância, para uma distracção e que, no seu limite extremo, o pensamento não é mais que um estremecimento. Sonho e recordação mergulham a vida no sangue de dragão da palavra e, deste modo, tornam-na invulnerável à memória. O imemorial, que se precipita de memória em memória sem nunca chegar à recordação, é verdadeiramente inesquecível. Este esquecimento inesquecível é a linguagem, é a palavra humana.
Assim, a promessa que o sonho formula no próprio momento em que se dissipa é a de uma lucidez tão poderosa que nos entrega à distracção, de uma palavra tão completa que nos reenvia para a infância, de uma razão tão soberana que se compreende a si mesma como incompreensível.»

Giorgio Agamben, Ideia da Prosa

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