Aqui ele se perguntou se fora por um acidente análogo ao que permitira a descoberta da púrpura, o qual, por natureza, permaneceria por toda eternidade um acidente. Se tal fosse o caso, então, a proposição que afirma que a filosofia moderna começa pela dúvida implicaria uma contingência histórica, que excluiria qualquer consideração quanto a uma filosofia anterior ou posterior, ou à filosofia em geral; assim como tampouco se poderia deduzir do facto de um cão ter descoberto a púrpura que todo o cão possa descobrir a púrpura. Se fosse assim, então, esta proposição conteria uma informação meramente histórica, mas, aí, entraria em contradição com a primeira, de que a filosofia começa pela dúvida, na medida em que essas duas proposições, quando confrontadas, mostrariam que o essencial acontece de modo acidental.
Ele perguntou em seguida se este acidente, graças ao qual a filosofia moderna começa com a dúvida, poderia, talvez, caracterizar-se por ocultar em si uma necessidade que no momento seguinte explicaria o acidental, se ele fosse da mesma natureza que o acidente que permitiu a Newton descobrir a lei da gravidade, pois, embora se tratasse de um acidente, a lei descoberta no instante seguinte explicava a própria contingência como uma necessidade. Nesse caso, então, é apenas aparentemente, no sentido histórico imperfeito, que a filosofia moderna começou acidentalmente, pela dúvida, pois deve-se descobrir imediatamente a necessidade de tal começo. Para a filosofia moderna considerada como documento histórico, esta necessidade não pode ser descoberta, dado que a filosofia moderna ainda não está concluída. A descoberta dessa necessidade só poderia ser feita num sentido eterno, pois a filosofia moderna seria, afinal, a filosofia. Tal descoberta exerceria uma influência decisiva sobre todo o futuro e, retroactivamente, sobre qualquer passado na questão da origem da filosofia. Assim, nossa proposição teria sofrido uma modificação que a tornaria idêntica à primeira proposição.»
Soren Kierkegaard, É Preciso duvidar de tudo
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