O título do livro de Mário de Cesariny é suficientemente sugestivo e, ao mesmo tempo, parece indicar um caminho particular para uma nova maneira de ler Fernando Pessoa. Com efeito, se entendermos que o “Virgem Negra” nomeado por Mário de Cesariny é Fernando Pessoa, convém tentar compreender a relação de sentido que, neste contexto, permite constituir esta associação, até porque parece existir a um nível cabalístico uma relação entre a figura da Virgem Negra e aquilo que é considerado como o “feminino sombrio”, resultante da fuga de Lilith do Paraíso, tendo, posteriormente, ido habitar as sombras.
Não deixa de ser pertinente o facto de a Fernando Pessoa Mário Cesariny associar, embora através de uma inversão de género, um elemento originariamente feminino, para mais se tivermos em consideração algumas passagens de Fernando Pessoa, nomeadamente, quando Álvaro de Campos, nas «Notas para a Recordação do Meu Mestre Caeiro», afirma que, por ter conhecido Caeiro, “Ricardo Reis deixou de ser mulher para ser homem, ou deixou de ser homem para ser mulher”. Cesariny, através da ambiguidade suscitada pelo título da sua obra, não estará senão a atribuir um grau de visibilidade particular àquilo que no interior da obra de Fernando Pessoa se pode encontrar.
Num outro sentido, Cesariny ilustra ao longo da obra o modo como o seu Fernando Pessoa se expõe, contaminado pela existência sombria da Virgem Negra, daí resultando um exercício paródico, do interior do qual emergirá, então, um Fernando Pessoa, agora desprovido do véu de pudor e contenção que metodicamente emana dos seus textos. Deste modo, Mário Cesariny apresenta um Fernando Pessoa histriónico, nascido do original, mas dele intuindo uma exterioridade apenas pressentida. Por outras palavras, ao associar a imagem da Virgem Negra a Fernando Pessoa, Cesariny faz sobressair uma espécie de encobrimento e de controlo dos sentidos que emerge muitas vezes dos textos de Pessoa, até em resultado de uma estratégia compositória e organizacional dos seus textos. Assim sendo, através de uma composição particular do discurso, Cesariny enuncia variantes dos textos de Fernando Pessoa, como se deste tivessem nascido, pelo menos de uma maneira aparente, sendo capaz de sugerir ao leitor a ligação imediata entre muitos dos textos contidos na sua obra e aqueles que, na obra de Pessoa têm com ele uma afinidade particular e reconhecível.
Esta estratégia de Cesariny envolve, além disso, outras peculiaridades, nomeadamente se tivermos em atenção o facto de, ao proceder deste modo, poder colocar-se numa posição de onde possa assumir uma actualização de Fernando Pessoa, na medida em que, partindo dos textos deste autor, que, funcionando como a música de fundo, cujo ritmo, variável, se estende do mais grave ao mais agudo, expõe uma visão particular de algumas das suas marcas fundamentais. Cesariny, num certo sentido, pelo modo como recria textos de Fernando Pessoa, escreve como se fosse Fernando Pessoa, ou então como Pessoa se lhe mostra. No fundo, Virgem Negra constitui-se como a obra em que Mário de Cesariny lê Fernando Pessoa, e em que, levando até às últimas consequências o seu projecto de actualização do autor, poderá ser entendido como lugar particular da observação e da reunião de Pessoa e dos seus heterónimos.
A actualização de Fernando Pessoa que Cesariny leva a cabo corresponde a uma tarefa que visa a exposição daquilo que Pessoa esconde nos seus textos, deles apenas se podendo intuir. De acordo com este ponto de vista, Mário de Cesariny apresenta-se como um Fernando Pessoa de contornos diferentes porque são aqueles que resultam de uma leitura e de um posicionamento particular em relação a este autor.
Poder-se-ia pensar à partida que uma obra desta natureza se arriscaria a destruir aquela que a origina. Contudo, o modo como aquilo que se intui em Fernando Pessoa resulta reescrito em Cesariny, apenas parece expor de forma mais visível o lado sombrio do Virgem Negra. Ao carácter sombrio do texto de Pessoa, Cesariny contrapõe uma luminosidade e, deste modo, servindo-se de uma organização particular, Cesariny reconhece um Fernando Pessoa, em completa exposição. O Fernando Pessoa comedido, ponderado na execução de um plano deliberado surge, deste modo, pela mão de Cesariny, desnudado, exposto de uma forma anteriormente apenas intuída.
De outro modo, a angústia de reconhecimento de Fernando Pessoa, que podemos encontrar por exemplo na carta a Gaspar Simões, de 1929, embora tendo sido resolvida a seu tempo pelo próprio Pessoa, nomeadamente através da ideia de que os grandes só são reconhecidos depois de morrerem, essa angústia encontra no texto de Cesariny uma nova maneira de ser resolvida, através do excesso, numa espécie de exercício ejaculatório, decorrente do qual o poeta exprime a explosão decorrente da eliminação da instância censória que o condiciona.
Cesariny vê os textos de Fernando Pessoa, descobrindo-lhes a face, desviando o véu que o pudor lhes poderá ter imposto. É um Fernando Pessoa “sem pudor” aquele que nos é apresentado no livro de Cesariny e, mesmo que em alguns momentos, o exercício de imaginação do poeta releve referências excessivas, o facto é que, no seu conjunto, Virgem Negra se apresenta como espaço onde irrompe a contenção ponderada e construída metodicamente ao longo da obra de Fernando Pessoa.
Mário de Cesariny, em O Virgem Negra, a certa altura, por via do modo como acolhe em si os textos de Fernando Pessoa, e, partindo da ideia de que ele terá composto a obra como se fosse Pessoa, parece colocar-se na situação de alguém a quem é dada a possibilidade de se sentar à mesa com outros convivas. Esses convivas são especiais e ainda mais especiais se tornam por terem sido escolhidos por ele próprio. Além disso, visto que o carácter excepcional desses convivas remete para a circunstância de todos eles emanarem de uma fonte comum, o exercício de Cesarinypessoano, de nele entrar como seu membro constitutivo. Se assim o entendermos, o Virgem Negra passará a permitir também uma articulação particular entre o próprio Cesariny e aquele lado que, embora arrebatado em certos momentos, encontra também, através da rebeldia e da não submissão, o lado sombrio que o autor reconhece em Pessoa, tornando-se, deste modo, também ele um elemento essencial da discussão, enquanto representação da “Virgem Negra”, numa outra perspectiva.
Ao assumir este lugar, Cesariny estabelece uma síntese entre aquilo que corresponde à herança recebida pelo universo pessoano e a sua própria autonomia perante os textos, que lhe permite escrever com eles, a partir deles, muito mais do que se o fizesse sobre eles, na perspectiva de um eventual novo elemento heteronímico (?) que agora retomasse um discurso inesgotável.
Sem comentários:
Enviar um comentário