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segunda-feira, 18 de abril de 2011

Actéon

«A primeira causa de dor, Cadmo, no meio de tanta felicidade, foi o teu neto, a cuja fronte se somaram estranhos cornos, e vós, cadelas, que vos saciastes com o sangue do vosso dono. Mas se indagares bem, descobrirás que a culpa foi da Fortuna, não de um crime dele. Pois desde quando um erro é um crime?
O monte estava tingido pela matança da mais diversa caça, e já o meio-dia reduzira ao mínimo as sombras das coisas e o sol se encontrava a igual distância de ambas as metas, quando o jovem dos Hiantes, em tom tranquilo, chama e diz aos colegas de caça que vagueavam por barrancos afastados: "As redes e as armas, amigos, estão tintas do sangue das feras, e o dia concedeu-nos sorte bastante. Mal a próxima Aurora conduzir de volta o dia, montada no carro da cor do açafrão, retomaremos a tarefa planeada. Febo dista agora o mesmo das duas metas, e com calor escaldante abre gretas na terra. Parai as presentes tarefas e desarmadilhai as nodosas redes." Os homens cumprem as ordens e interrompem o trabalho.
Havia ali um vale, coberto de pinheiros e esguios ciprestes; Sagrado a Diana, a de veste arregaçada, chamava-se Gargáfia. Na parte mais recôndita, no meio do bosque, fica uma gruta por arte humana alguma trabalhada. Com a sua criatividade, a natureza imitara a arte, pois ela própria construíra um arco natural em pedra-pomes viva e em leve tufo.
À direita, murmura uma cristalina nascente de água límpida, formando uma laguna larga, cingida por margens herbosas. Era ali que a deusa dos bosques, quando cansada da caça, costumava banhar o corpo virginal em transparentes águas. Nessa ocasião, ao chegar ao local, confiou a uma das ninfas, que era sua escudeira, a lança de caça, a aljava e o arco desapertado; outra segurou nos braços as vestes que ela despira; duas outras descalçaram-lhe as sandálias dos pés. Crócale, a do Ismeno, a mais sábia, ata-lhe com um nó o cabelo solto caído pelos ombros, embora ela o traga solto. Acartam água Néfele, Híale, Rânis, e Psécade, e Fíale, derramam-na em enormes vasilhas.
Enquanto a neta do Titã aí se banha nas águas habituais, eis que o neto de Cadmo, adiada a jornada de trabalho, deambulando ao acaso pela floresta que não conhecia, chega a este arvoredo sagrado: assim o levava o destino. Logo que ele entrou na gruta oralhada pela nascente, as ninfas, à vista do homem, desnudadas como estavam, puseram-se a bater no peito e encheram o bosque inteiro de gritos de surpresa. Rodearam então Diana, cobrindo-a com os seus próprios corpos. Mas a deusa era mais alta que elas, e do pescoço para cima ultrapassava a todas. E aquela cor que costumam ter as nuvens quando tingidas pelos golpes do sol defronte, ou a da purpúrea Aurora, essa foi a cor no rosto de Diana ao ser vista sem roupas. E apesar de rodeada pelo seu grupo de companheiras, virou-se de lado e voltou o seu olhar para trás.
Embora o que ela quisesse fosse ter as flechas prontas, pegou em água (era o que tinha à mão) e atirou à cara do rapaz. Salpicando os cabelos com a água vingadora, lançou tais dizeres, prenunciadores da iminente desgraça: "Agora, poderás contar que me viste despojada de roupas - se conseguires falar..." Sem mais ameaças, faz surgir na cabeça que molhara as hastes de um veado já velho, alonga-lhe o pescoço e aguça-lhe as pontas das orelhas; muda-lhe as mãos em pés e os braços em longas patas, e reveste-lhe o corpo todo de uma pelagem malhada; por último, instila-lhe o medo. O herói filho de Autónoe desata a fugir, e, ao correr, pasma-se por se ver tão veloz. [Mas quando vislumbrou na água o focinho e as hastes,] "Ai de mim!", queria ele gritar: mas voz alguma saiu.
Soltou foi um bramido: era a sua voz!; e as lágrimas caíram pelas faces que não eram as suas. Só restou a antiga mente. Que haveria de fazer? Voltar para casa, ao palácio do rei? Ocultar-se no bosque? Isto impede o medo, aquilo o pudor.
Hesitava ele, quando os seus cães o avistam. Melampo e o sagaz Icnóbates, os primeiros, dão o sinal a ladrar: Icnóbates é de Cnosso, Melampo, de estirpe espartana. Depois lançam-se outros, mais lestos que o rápido vento: Pânfago e Dorceu e Oríbaso, todos eles da Arcádia; o pujante Nebrófono e o feroz Téron, junto de Lélape; Ptérelas, útil pela voz corrida, e Agre, útil pelo seu faro; Hileu, que há pouco fora ferido por um feroz javali; Nape, filha de lobo; Pémenis, guardadora de rebanhos, e Harpia, acompanhada pelos seus dois cachorros; Ládon de Sicíon, que tinha os flancos bem estreitos; e Dromas e Cánaque, Esticte e Tigre e Alce, e Lêucon, de pêlo alvo como neve, e Ásbolo, de pêlo negro; e o possantíssimo Lácon, e Aelo, infatigável na corrida; e Tóos e a veloz Licisca junto com seu irmão Cíprio; e Hárpalo, inconfundível pela sua mancha branca no meio da negra fronte, e Melaneu, e a peluda Lacne; Labro e Argíodo, filhos de pai do Dicte e de mãe lacónia, e Hilactor, com o seu ladrar estridente; e muitos outros que seria demorado referir. Na ânsia de o caçar, a matilha persegue-o por escarpas e penhas e inacessíveis rochedos, por onde o caminho é difícil, onde não há caminho algum. Ele foge por onde tantas vezes perseguira as suas presas, oh!, ele foge aos seus próprios servidores! Queria gritar, ["Sou eu, Actéon! Não me reconheceis, o vosso dono?"] mas faltam palavras ao seu querer; o céu ecoa com latidos. A primeira a atingi-lo foi Melanquetes, ferindo-o nas costas; depois foi Terodamente; Oresítrofo pendura-se no ombro: tinham saído atrasados, mas lá chegaram primeiro por uns atalhos da serra. Enquanto seguram o dono, o resto da matilha cai sobre ele e ferra os dentes na carne. Já falta espaço para as feridas. Ele geme, soltando um som que, embora não sendo humano, cervo algum pode lançar, e enche os cimos tão familiares de lamentosos queixumes. De joelhos, implorante, como se numa prece, lança à volta o olhar silencioso, como se estendesse os braços. Ora, os camaradas, sem saber, açulam a matilha impetuosa com os usuais gritos de incitamento. Com o olhar buscam Actéon, e à compita Actéon chamam como se fosse ausente (e ele vira a cabeça ao nome!). Lamentam a ausência, perder por preguiça o espectáculo da presa que lhes surgira. Bem queria ele não estar ali, mas está. E ele bem gostaria de ver, mas não sentir a ferocidade dos seus próprios cães. De todo o lado o cercam e mergulham os focinhos na carne, dilacerando o dono sob a enganadora aparência de veado.
E a ira de Diana, a portadora da aljava, não se saciou, dizem, antes de se pôr termo à vida dele com incontáveis feridas.»

Ovídio, Metamorfoses, III, 138-252

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