Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos - se ninguém atraiçoasse - proporia
A cada um a liberdade e o reino
- Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo (III, 238)
«A forma justa/ De uma cidade humana», embora a construir, corresponde à justeza de cada forma ou corpo terrestre. E essa justeza que é qualidade do mundo já ali e é o canto da esperança (simultaneamente promessa, palavra dada e compromisso com a forma não corrompida das coisas do mundo) encontra o seu símile na integração das palavras no verso. O leitor de Sophia entenderá aquilo em que aqui o poema insiste; esse leitor sabe que esta poesia busca restituir um reino ou uma aliança, que por «traição» ou doença se perderam ou continuam a perder-se. Este poema declara a possibilidade condicional dessa construção e funda-a numa fidelidade «à perfeição do universo».
O dístico final enuncia o ofício e toma-o como um incessante recomeço. A página em branco, «coisa» ou «cena da escrita», diz-nos então que nem tudo foi já escrito ou dito, que nem tudo está para sempre perdido. Sempre que o poema vai recomeçar a gravar a página em branco tudo por momentos parece voltar a ser possível. Sobretudo para quem como Antígona, recordemo-lo, «não aprendeu a ceder aos desastres».»
Manuel Gusmão, «Da Evidência Poética: Justeza e Justiça na Poesia de Sophia», in Tatuagem & Palimpsesto da poesia em alguns poetas e poemas
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