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sexta-feira, 22 de julho de 2011

Quinta-feira de manhã [4 de Junho de 1942], às nove e meia

«Num dia de verão como este, a tua oração repousa em mil braços macios. Faz-te muito lenta e preguiçosa, mas dentro de ti está um mundo fermentando em direcção a um destino desconhecido.
E o que eu ainda queria dizer: da última vez que ele cantou a  «Lindenbaum» (achei tão bonito que lhe pedi para cantar um bosque inteiro de tílias), os vincos e os traços da cara dele pareciam carreiros antigos, muito antigos, numa paisagem tão velha como a criação do mundo.
Há uns tempos, na pequena mesa do canto da Geiger, a cara jovem e de linhas bem definidas de Munsterberg intrometeu-se entre a minha cara e a dele e, num relâmpago, fiquei quase chocada ao reparar quão velha é a cara dele na realidade; como se por ela tivessem passado muitas vidas em vez de só a dele. E nesse momento tive uma pequena reacção, um instantâneo: «Não quereria nunca unir a minha vida à dele para todo o sempre, tal coisa é impossível», mas na verdade essa reacção é bastante reles e abaixo de nível. Ela parte de uma noção convencional: o matrimónio. A minha vida já está relacionada com a dele, ou melhor, já está ligada à dele. E não são só as nossas vidas, mas as nossas almas - admito que acho a formulação bastante empolada assim de manhãzinha, mas isso deve-se provavelmente a não dares totalmente o aval à palavra «alma». E é tão ordinário e mesquinho e francamente abaixo de nível pensar, daquela vez, que a cara dele te agrada particularmente: «Sim, gostava de casar com ele e ficarmos juntos para sempre» e, nos momentos em que ele mostra ser velho, muito, muito velho, especialmente quando se vê uma cara jovem e fresca uns tempos junto à dele, pensar: «Não, é melhor não.» Estes são os padrões a erradicar da tua vida. Esta é uma maneira de reagir que eu sinto - sim, nem sequer o consigo expressar - como uma perturbação e impedimento dos verdadeiros grandes sentimentos de união que ultrapassam todas as fronteiras das convenções e do casamento. E aqui nem se trata de convenção nem de matrimónio, mas da noção que as pessoas têm de uma e de outro.
Francamente não devia ser possível uma pessoa pensar num dado momento, motivada por uma ou outra expressão facial ou pelo que quer que seja: «Realmente gostava de casar com ele», para no momento seguinte reagir exactamente ao contrário. Isto não devia mesmo acontecer, porque não tem absolutamente nada a ver com as coisas essenciais, com o que interessa. Mais uma coisa que eu não consigo exprimir nem de longe. Porém, uma pessoa deve arrancar e exterminar muita coisa dentro de si, a fim de criar um espaço amplo e contínuo para os grandes sentimentos e ligações na sua totalidade, sem que eles sejam cruzados por pequenas reacções de um nível mais baixo.»

Etty Hillesum, Diário, 1941-1943

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