É uma cena deserta. O piano e a estante de música
estão vazios; são contornos da sombra
Do lado direito de quem olha daqui, há
uma ampla porta-janela que dava para
uma varanda que daria para uma selva imaginada.
A música que ouves não vem desta sala
Nasce e vem do maciço de árvores escuras
que brilham mais no escuro da noite ultramarina.
Vem do mar que está depois da selva que
está a seguir às árvores de um parque
que é uma memória de pedra que já começou a ruir.
É uma música poderosa mas lenta; feroz e densa
e voraz; selvagem mas não primitiva,
Nos arredores do império, num condomínio
colonial antigo e novíssimo, podes pela música
que sem resgate os dissolveu imaginá-los. Fora
pouco antes de desaparecerem -
Eram já extremos conspiradores sem conspiração,
de si mesmos exilados, perdida a juventude,
perdidos dessa selva em que teriam sido feras
e fora já a sua própria memória. A maturidade
apodreceu-os como uma floresta que se desfaz
na água nostálgica do desejo. A música
essa música num espelho longe foi o que sobrou
fala de um crime passional em que ninguém afinal
morreu, de um segredo partilhado e sem sentido
que ouves uma vez mais nessa abafada ou
rouca - como se diz? - nessa voz que te transporta
a essa cena deserta onde nunca terás estado.
No espelho longe num oriente extremo não podes ver-te:
não é a tua história; não é a história de ninguém. Mas
podes ver a música que através deles te envenena o sangue.
Manuel Gusmão, Migrações de Fogo
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