Io credo nelle persone, però non credo nella maggioranza delle persone. Anche in una società più decente di questa, mi sa che mi troverò a mio agio e d'accordo sempre con una minoranza. (Nanni Moreti)
Acerca de mim
domingo, 31 de julho de 2011
O assentimento, não a opção
«De que é que se trata? Da guerra da Coreia. Um pequeno grupo de voluntários das forças francesas patrulha vagamente o mato da Coreia do Norte. Um deles, ferido, é recolhido por uma rapariguinha coreana, que o conduz à sua aldeia, onde é acolhido pelos camponeses: o soldado opta por ficar entre eles. Optar, pelo menos é essa a nossa linguagem. Mas não é exactamente a de Vinaver: na realidade não assistimos nem a uma opção, nem a uma conversão, nem a uma deserção, mas antes a um assentimento progressivo: o soldado aquiesce ao mundo coreano que descobre...» (A propósito de Aujourd'hui ou les Coréens, de Michel Vinaver, 1956).
Muito mais tarde (1974), por ocasião da viagem à China, tentou retomar esse termo de assentimento para fazer compreender aos leitores do Monde - isto é, ao seu mundo - que ele não «optava» pela China (faltavam-lhe demasiados elementos para iluminar essa opção) mas que aquiescia no silêncio (a que chamou «insipidez»), tal como o soldado de Vinaver, ao que lá se construía. Isto não foi de modo nenhum compreendido: aquilo que o público intelectual exige é uma opção: era preciso sair da China como um touro que irrompe do touril na praça pejada: furioso ou triunfante.»
Muito mais tarde (1974), por ocasião da viagem à China, tentou retomar esse termo de assentimento para fazer compreender aos leitores do Monde - isto é, ao seu mundo - que ele não «optava» pela China (faltavam-lhe demasiados elementos para iluminar essa opção) mas que aquiescia no silêncio (a que chamou «insipidez»), tal como o soldado de Vinaver, ao que lá se construía. Isto não foi de modo nenhum compreendido: aquilo que o público intelectual exige é uma opção: era preciso sair da China como um touro que irrompe do touril na praça pejada: furioso ou triunfante.»
Roland Barthes, Roland Barthes por Roland Barthes
sábado, 30 de julho de 2011
Medeia
Medeia (no interior)
Ai de mim! Sofrimento e desgraça!
Soluço bem alto a minha dor!
Filhos malditos duma mãe odiada
Morrei com vosso pai
E que a nossa casa em ruínas se afunde.
Ama
Ai de ti, desgraçada
Qual é a culpa dos filhos na injustiça do pai?
Porque os odeias a eles?
Ai de nós, meus filhos,
A angústia é grande porque temo
Que recaia sobre vós o sofrimento.
Terrível é a vontade dos príncipes
Porque eles obedecem pouco, mandam muito
E não sabem mudar de caminho.
Os homens precisam de viver na igualdade.
Por isso peço ao destino que me dê um lugar
Onde envelheça em paz e longe de grandezas.
A medida é, pelo seu nome,
A palavra mais bela
E o seu uso é útil
Porém o excesso nunca trouxe aos mortais
Uma alegria justa.
E são os excessos que desencadeiam
As calamidades mais pesadas,
Quando contra o mortal o deus se irrita.
Ai de mim! Sofrimento e desgraça!
Soluço bem alto a minha dor!
Filhos malditos duma mãe odiada
Morrei com vosso pai
E que a nossa casa em ruínas se afunde.
Ama
Ai de ti, desgraçada
Qual é a culpa dos filhos na injustiça do pai?
Porque os odeias a eles?
Ai de nós, meus filhos,
A angústia é grande porque temo
Que recaia sobre vós o sofrimento.
Terrível é a vontade dos príncipes
Porque eles obedecem pouco, mandam muito
E não sabem mudar de caminho.
Os homens precisam de viver na igualdade.
Por isso peço ao destino que me dê um lugar
Onde envelheça em paz e longe de grandezas.
A medida é, pelo seu nome,
A palavra mais bela
E o seu uso é útil
Porém o excesso nunca trouxe aos mortais
Uma alegria justa.
E são os excessos que desencadeiam
As calamidades mais pesadas,
Quando contra o mortal o deus se irrita.
Eurípides, Medeia (Recriação poética ), por Sophia de Mello Breyner Andresen
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sexta-feira, 29 de julho de 2011
Relativism and absolutism
«The reason that I did not contrast relativism and absolutism, but rather contrasted relativism and fundamentalism, defining fundamentalism as the belief that ideals must be grounded in something already real, and relativism as denying that claim, was that I agree that there is no difference between the pope and philosophers like myself when it comes to the strenght of our political convictions. If you want to put it that way, you can say we both believe in absolutes. The pope believes in different absolutes than philosophers like me. So I want to grant the point that everyone with moral convictions is as absolutistic as everybody else. But I want to say that that is not the issue that philosophers are discussing. They are discussing the question whether we need metaphysics, whether we need theology, whether we need a picture of the world as already holding the ideals that we wish to bring into existence.
About democracy as the notion is used in the United States: people like Dewey, defenders of social democracy like Dewey, would say, I think, that democracy is not itself an absolute. It is simply the best means to the greatest human happiness that we have been able to imagine so far. In the past we had other visions of what would maximize human happiness. Today our vision is of democracy. Tomorrow it may be some other way of maximizing human happiness. But human happiness remains the only absolute in the area. We don't hnow now what the ideal society would look like. We don't even know whether it would be a democratic society, just as a thousand years ago we didn't know what the ideal society would look like, though we all thought it would be a Christian and Catholic society. It may turn out not to be a Christian and Catholic society. Perhaps it won't even turn out to be a democratic society. But if human beings can freely discuss how to make each other happier, it will still be an ideal society.»
About democracy as the notion is used in the United States: people like Dewey, defenders of social democracy like Dewey, would say, I think, that democracy is not itself an absolute. It is simply the best means to the greatest human happiness that we have been able to imagine so far. In the past we had other visions of what would maximize human happiness. Today our vision is of democracy. Tomorrow it may be some other way of maximizing human happiness. But human happiness remains the only absolute in the area. We don't hnow now what the ideal society would look like. We don't even know whether it would be a democratic society, just as a thousand years ago we didn't know what the ideal society would look like, though we all thought it would be a Christian and Catholic society. It may turn out not to be a Christian and Catholic society. Perhaps it won't even turn out to be a democratic society. But if human beings can freely discuss how to make each other happier, it will still be an ideal society.»
Richard Rorty, An Ethics for Today, Finding common ground between philosophy and religion
volto à cegueira a reflexão sonora
volto à cegueira a reflexão sonora
há um lugar incerto onde aconteço
vou pela areia liminar de inverno
mexendo tão somente os vocativos
atei o vento à estaca de madeira
senhor de esquinas lâminas de terra
e sonhei ser ateu e a ingratidão
descia na colina as redes de água
não vi não vejo os muros na brancura
os olhos que inventavam o aroma
só pouco a pouco afasto das palavras
o som que importa
pobre de quem ouviu e não entende
pobre quem entendeu e já não ouve.
há um lugar incerto onde aconteço
vou pela areia liminar de inverno
mexendo tão somente os vocativos
atei o vento à estaca de madeira
senhor de esquinas lâminas de terra
e sonhei ser ateu e a ingratidão
descia na colina as redes de água
não vi não vejo os muros na brancura
os olhos que inventavam o aroma
só pouco a pouco afasto das palavras
o som que importa
pobre de quem ouviu e não entende
pobre quem entendeu e já não ouve.
António Franco Alexandre, A Pequena Face
quinta-feira, 28 de julho de 2011
Dispositif
«La stratégie que nous devons adopter dans notre corps à corps avec les dispositifs ne peut pas être simple. Il s'agit en fait de libérer ce qui a été saisi et séparé par les dispositifs pour le rendre à l'usage commun. C'est dans cette perspective que je voudrais désormais me tourner vers un concept sur lequel j'ai été conduit à travailler récemment. Il s'agit d'un terme qui provient de la sphère du droit et de la religion romaine (droit et religion sont étroitement liés, et pas seulement à Roma): la profanation.
Selon le droit romain, les choses qui, d'une manière ou d'une autre, appartiennent aux dieux étaient sacrées ou religieuses. Comme telles, elles se voyaient soustraites au libre usage et au commerce des hommes et on ne pouvait ni les vendre, ni les prêter sur gage, ni les céder en usufruit ou les mettre en servitude. Il était sacrilège de violer ou de transgresser cette indisponibilité spéciale qui les réservait aux dieux du ciel (on les appelait «sacrées») ou à ceux des enfers (on les disait alors simplement «religieuses»). Tandis que consacrer (sacrare) désignait la sortie des choses de la sphère du droit humain, profaner signifiait au contraire leur restitution au libre usage des hommes. Ainsi le grand juriste Trebatius peut-il écrire: «au sens propre est profane ce qui, de sacré ou religieux qu'il était, se trouve restitué à l'usage et à la propriété des hommes».
On peur définir la religion dans cette perspective comme ce qui soustrait les choses, les lieux, les animaux ou les personnes à l'usage commun pour les transférer au sein d'une sphère séparé. Non seulement il n'est pas de religion sans séparation, mais toute séparation contient ou conserve par-devers soi un noyau authentiquement religieux. Le dispositif qui met en oeuvre et qui règle la séparation est le sacrifice: ce dernier marque, dans chaque cas, le passage du profane au sacré, de la sphère des hommes à la sphère des dieux, à travers une série de rituels minutieux qui varient en fonction de la diversité des cultures et dont Hubert et Mauss ont fait l'inventaire. La césure qui sépare les deux sphères est essentielle, comme est essentiel le seuil que la victime doit passer dans un sens ou dans l'autre. Ce qui a été séparé par le rite peut être restitué par le rite à la sphère profane. La profanation est le contre-dispositif qui restitue à l'usage commun ce que le sacrifice avait séparé et divisé.»
Selon le droit romain, les choses qui, d'une manière ou d'une autre, appartiennent aux dieux étaient sacrées ou religieuses. Comme telles, elles se voyaient soustraites au libre usage et au commerce des hommes et on ne pouvait ni les vendre, ni les prêter sur gage, ni les céder en usufruit ou les mettre en servitude. Il était sacrilège de violer ou de transgresser cette indisponibilité spéciale qui les réservait aux dieux du ciel (on les appelait «sacrées») ou à ceux des enfers (on les disait alors simplement «religieuses»). Tandis que consacrer (sacrare) désignait la sortie des choses de la sphère du droit humain, profaner signifiait au contraire leur restitution au libre usage des hommes. Ainsi le grand juriste Trebatius peut-il écrire: «au sens propre est profane ce qui, de sacré ou religieux qu'il était, se trouve restitué à l'usage et à la propriété des hommes».
On peur définir la religion dans cette perspective comme ce qui soustrait les choses, les lieux, les animaux ou les personnes à l'usage commun pour les transférer au sein d'une sphère séparé. Non seulement il n'est pas de religion sans séparation, mais toute séparation contient ou conserve par-devers soi un noyau authentiquement religieux. Le dispositif qui met en oeuvre et qui règle la séparation est le sacrifice: ce dernier marque, dans chaque cas, le passage du profane au sacré, de la sphère des hommes à la sphère des dieux, à travers une série de rituels minutieux qui varient en fonction de la diversité des cultures et dont Hubert et Mauss ont fait l'inventaire. La césure qui sépare les deux sphères est essentielle, comme est essentiel le seuil que la victime doit passer dans un sens ou dans l'autre. Ce qui a été séparé par le rite peut être restitué par le rite à la sphère profane. La profanation est le contre-dispositif qui restitue à l'usage commun ce que le sacrifice avait séparé et divisé.»
Giorgio Agamben, Qu'est-ce qu'un dispositif?
quarta-feira, 27 de julho de 2011
IX
«Nos antigos tempos, e quase também nos modernos, as relações da comunidade com os seus membros são as de um credor com os seus devedores. Viver em sociedade quer dizer estar protegido na vida e fazenda, gozar da paz e da confiança, estar livre de certos danos e perigos aos quais continua exposto o que vive fora - um alemão sabe o que Elend significava primitivamente - desde que se viva em paz com a comunidade. Em caso contrário, o que sucederá? A comunidade, o credor far-se-ão pagar a sua dívida. Aqui não se trata só de um prejuízo: o culpado é também violador do compromisso, e falta à sua palavra para com a comunidade que lhe assegurava tantas regalias e prazeres. O culpado é um devedor que não só não paga as suas dívidas, mas que também ataca o credor: desde esse momento não só se priva de todos estes bens e regalias, como também se lhe recorda de toda a importância que tinha a sua pessoa. A cólera dos credores ofendidos restitui-o outra vez no estado selvagem, põe-no fora da lei, recusa-lhe protecção e contra ele pode já cometer-se qualquer acto de hostilidade. O «castigo» é simplesmente a mímica da conduta normal a respeito do inimigo detestado, desarmado e abatido, que perdeu todo o direito não só à protecção mas também à piedade; é o grito de guerra, o triunfo do voe victis em toda a sua inexorável crueldade. Isto explica como a própria guerra e os sacrifícios guerreiros revestiram todas as formas sob as quais aparece o castigo na história.»
Friedrich Nietzsche, A Genealogia da Moral
segunda-feira, 25 de julho de 2011
Reminiscência
«- E nisto ainda estamos também de acordo: a noção que temos do Igual, de forma alguma poderia ter-se formado em nós a não ser por intermédio da vista, do tacto ou de qualquer dos outros sentidos. E o que digo é válido para todos os casos do mesmo género.
- O processo é de facto o mesmo, Sócrates, pelo menos no sentido em que o argumento pretende demonstrar.
- Terá, pois, de ser através dos dados dos sentidos que nos apercebemos de que todas as realidades sensoriais tendem sempre para essa realidade do Igual, embora lhe fiquem bastante aquém. Ou não é isso o que diremos?
- Isso mesmo.
- Donde se segue que, antes de começarmos a ver, a ouvir, a gozar dos restantes sentidos, deveríamos já ter um conhecimento do Igual em si, daquilo que de facto é; sem o que não seria possível tomá-lo como ponto de referência das realidades sensoriais, ou seja, de todas essas que, aspirando por um lado a assimilar-se a ele, lhe são, por outro, inferiores.
- De acordo com os nossos pressupostos, assim terá de ser, Sócrates.
- Ora, e logo ao nascer, não estávamos nós aptos a ver, a ouvir e a gozar dos restantes sentidos?
- Seguramente.
- Mas, dizemos nós, não era para isso necessário que já antes tivéssemos tido um conhecimento do Igual?
- Sim.
- Portanto, segundo parece, só antes de nascermos o poderíamos ter adquirido...
- Sim, parece.
- Ora bem, se essa aquisição se deu antes do nosso nascimento e se nascemos com ela, então conhecíamos já, antes de nascermos e logo ao nascer, não apenas o Igual, o Maior, o Menor, mas todas as realidades desse tipo? Pois efectivamente este nosso argumento não se aplica mais ao Igual do que ao Belo em si, ao Bem em si, ao Justo, ao Sagrado, a tudo aquilo enfim que, como digo, selamos genericamente com o rótulo de «realidade em si», quer nas perguntas que fazemos quer nas respostas que damos. Donde se segue que, antes de nascermos, estávamos já na posse do conhecimento de todas estas realidades.
- Exacto.
- E necessariamente também, se de que cada vez não esquecermos os conhecimentos que adquirimos, esse saber não apenas nasce connosco como ainda o conservamos pela vida fora, já que o saber não consiste senão nisso: em segurar determinado conhecimento que se alcançou e impedir que se perca... ou não dizemos nós, Símias, que esquecer é deixar escapar o que conhecemos?
- Ora nem mais, Sócrates - respondeu.
- Por outro lado se, como julgo, perdemos ao nascer o que antes tínhamos adquirido, e mais tarde recuperamos, com o auxílio dos sentidos, o conhecimentos de tais realidades em cuja posse nos encontrávamos outrora, então isso que chamamos aprender não consistirá, a rigor, em recuperar um conhecimento que nos é próprio? E se definirmos tal processo como reminiscência, não estaremos a dar-lhe o nome exacto?
- Seguramente.»
- O processo é de facto o mesmo, Sócrates, pelo menos no sentido em que o argumento pretende demonstrar.
- Terá, pois, de ser através dos dados dos sentidos que nos apercebemos de que todas as realidades sensoriais tendem sempre para essa realidade do Igual, embora lhe fiquem bastante aquém. Ou não é isso o que diremos?
- Isso mesmo.
- Donde se segue que, antes de começarmos a ver, a ouvir, a gozar dos restantes sentidos, deveríamos já ter um conhecimento do Igual em si, daquilo que de facto é; sem o que não seria possível tomá-lo como ponto de referência das realidades sensoriais, ou seja, de todas essas que, aspirando por um lado a assimilar-se a ele, lhe são, por outro, inferiores.
- De acordo com os nossos pressupostos, assim terá de ser, Sócrates.
- Ora, e logo ao nascer, não estávamos nós aptos a ver, a ouvir e a gozar dos restantes sentidos?
- Seguramente.
- Mas, dizemos nós, não era para isso necessário que já antes tivéssemos tido um conhecimento do Igual?
- Sim.
- Portanto, segundo parece, só antes de nascermos o poderíamos ter adquirido...
- Sim, parece.
- Ora bem, se essa aquisição se deu antes do nosso nascimento e se nascemos com ela, então conhecíamos já, antes de nascermos e logo ao nascer, não apenas o Igual, o Maior, o Menor, mas todas as realidades desse tipo? Pois efectivamente este nosso argumento não se aplica mais ao Igual do que ao Belo em si, ao Bem em si, ao Justo, ao Sagrado, a tudo aquilo enfim que, como digo, selamos genericamente com o rótulo de «realidade em si», quer nas perguntas que fazemos quer nas respostas que damos. Donde se segue que, antes de nascermos, estávamos já na posse do conhecimento de todas estas realidades.
- Exacto.
- E necessariamente também, se de que cada vez não esquecermos os conhecimentos que adquirimos, esse saber não apenas nasce connosco como ainda o conservamos pela vida fora, já que o saber não consiste senão nisso: em segurar determinado conhecimento que se alcançou e impedir que se perca... ou não dizemos nós, Símias, que esquecer é deixar escapar o que conhecemos?
- Ora nem mais, Sócrates - respondeu.
- Por outro lado se, como julgo, perdemos ao nascer o que antes tínhamos adquirido, e mais tarde recuperamos, com o auxílio dos sentidos, o conhecimentos de tais realidades em cuja posse nos encontrávamos outrora, então isso que chamamos aprender não consistirá, a rigor, em recuperar um conhecimento que nos é próprio? E se definirmos tal processo como reminiscência, não estaremos a dar-lhe o nome exacto?
- Seguramente.»
Platão, Fédon
domingo, 24 de julho de 2011
Do Tabaco
«Não foi sem razão que guardei o tabaco para último; em primeiro lugar, este excesso foi o último a chegar, depois triunfa sobre todos os outros.
A natureza colocou limites aos nossos prazeres. Deus me livre de enunciar aqui as virtudes militantes do amor e de ferir respeitáveis susceptibilidades; mas está extremamente reconhecido que Hércules deve a sua celebridade ao décimo segundo trabalho, encarado geralmente como fabuloso, hoje que as mulheres são muito mais atormentadas pelos fumos dos charutos do que pelo fogo do amor. Pelo açúcar, o pesar chega prontamente a todos os seres, mesmo às crianças. Quanto aos licores fortes, o abuso mal dá dois anos de existência; o do café provoca doenças que não permitem continuar o seu uso. Pelo contrário, o homem julga poder fumar indefinidamente. Erro. Broussais, que fumava muito, estava talhado para Hércules; devia, sem excesso de trabalho e de charutos, ultrapassar a centena: morreu ultimamente na flor da idade, relativamente à sua construção ciclópica. Enfim, um dândi tabacólatra ficou com a garganta gangrenada e, como a ablação pareceu justamente impossível, morreu.
É inaudito que Brillat-Savarin, ao adoptar para título da sua obra Physiologie du Goût e após ter demonstrado muito bem o papel que desempenham nos seus prazeres as fossas nasais e palatais, se tenha esquecido do capítulo do tabaco.
O tabaco consome-se hoje pela boca depois de ter sido muito tempo tomado pelo nariz: afecta os duplos órgãos maravilhosamente constatados em nós por Brillat-Savarin: o palato, as suas aderências e as fossas nasais. Na altura em que o ilustre professor compôs o seu livro, o tabaco não invadira, na verdade, a sociedade francesa em todas as suas partes como hoje. De há um século para cá, tomava-se mais em pó do que em fumo, e agora o charuto infecta o estado social. Nunca se suspeitara dos prazeres que o estado de chaminé devia proporcionar.
O tabaco fumado causa desde logo vertigens sensíveis; leva a maior parte dos neófitos a uma salivação excessiva e muitas vezes a náuseas que produzem vómitos. Apesar destes avisos da natureza irritada, o tabacólatra persiste, habitua-se. Esta aprendizagem dura por vezes vários meses. O fumador acaba por vencer à maneira dos Mitrídates e entra num paraíso. Que outro nome chamar aos efeitos do tabaco fumado? Entre o pão e o tabaco de fumar, o pobre não hesita; o jovem sem cheta que gasta as botas no asfalto dos boulevards, e cuja amante trabalha noite e dia, imita o pobre; o bandido da Córsega que encontramos nos rochedos inacessíveis ou numa praia que o seu olhar pode vigiar, oferece-se para matar o nosso inimigo por uma libra de tabaco. Os homens com uma imensa capacidade intelectual confessam que os charutos os consolam das maiores adversidades. Entre uma mulher adorada e o charuto, um dândi não hesitaria mais em deixá-la do que o forçado em permanecer na prisão se aí houvesse tabaco à discrição! Que poder tem, pois, este prazer que o rei dos reis teria pago com metade do seu império e que, sobretudo, é o prazer dos infelizes? Eu reneguei este prazer e ficaram a dever-me este axioma: FUMAR UM CHARUTO É FUMAR FOGO.
A natureza colocou limites aos nossos prazeres. Deus me livre de enunciar aqui as virtudes militantes do amor e de ferir respeitáveis susceptibilidades; mas está extremamente reconhecido que Hércules deve a sua celebridade ao décimo segundo trabalho, encarado geralmente como fabuloso, hoje que as mulheres são muito mais atormentadas pelos fumos dos charutos do que pelo fogo do amor. Pelo açúcar, o pesar chega prontamente a todos os seres, mesmo às crianças. Quanto aos licores fortes, o abuso mal dá dois anos de existência; o do café provoca doenças que não permitem continuar o seu uso. Pelo contrário, o homem julga poder fumar indefinidamente. Erro. Broussais, que fumava muito, estava talhado para Hércules; devia, sem excesso de trabalho e de charutos, ultrapassar a centena: morreu ultimamente na flor da idade, relativamente à sua construção ciclópica. Enfim, um dândi tabacólatra ficou com a garganta gangrenada e, como a ablação pareceu justamente impossível, morreu.
É inaudito que Brillat-Savarin, ao adoptar para título da sua obra Physiologie du Goût e após ter demonstrado muito bem o papel que desempenham nos seus prazeres as fossas nasais e palatais, se tenha esquecido do capítulo do tabaco.
O tabaco consome-se hoje pela boca depois de ter sido muito tempo tomado pelo nariz: afecta os duplos órgãos maravilhosamente constatados em nós por Brillat-Savarin: o palato, as suas aderências e as fossas nasais. Na altura em que o ilustre professor compôs o seu livro, o tabaco não invadira, na verdade, a sociedade francesa em todas as suas partes como hoje. De há um século para cá, tomava-se mais em pó do que em fumo, e agora o charuto infecta o estado social. Nunca se suspeitara dos prazeres que o estado de chaminé devia proporcionar.
O tabaco fumado causa desde logo vertigens sensíveis; leva a maior parte dos neófitos a uma salivação excessiva e muitas vezes a náuseas que produzem vómitos. Apesar destes avisos da natureza irritada, o tabacólatra persiste, habitua-se. Esta aprendizagem dura por vezes vários meses. O fumador acaba por vencer à maneira dos Mitrídates e entra num paraíso. Que outro nome chamar aos efeitos do tabaco fumado? Entre o pão e o tabaco de fumar, o pobre não hesita; o jovem sem cheta que gasta as botas no asfalto dos boulevards, e cuja amante trabalha noite e dia, imita o pobre; o bandido da Córsega que encontramos nos rochedos inacessíveis ou numa praia que o seu olhar pode vigiar, oferece-se para matar o nosso inimigo por uma libra de tabaco. Os homens com uma imensa capacidade intelectual confessam que os charutos os consolam das maiores adversidades. Entre uma mulher adorada e o charuto, um dândi não hesitaria mais em deixá-la do que o forçado em permanecer na prisão se aí houvesse tabaco à discrição! Que poder tem, pois, este prazer que o rei dos reis teria pago com metade do seu império e que, sobretudo, é o prazer dos infelizes? Eu reneguei este prazer e ficaram a dever-me este axioma: FUMAR UM CHARUTO É FUMAR FOGO.
Honoré de Balzac, Tratado dos Excitantes Modernos
Música Num Espelho Longe
O espelho está lá mas ninguém lá está
É uma cena deserta. O piano e a estante de música
estão vazios; são contornos da sombra
Do lado direito de quem olha daqui, há
uma ampla porta-janela que dava para
uma varanda que daria para uma selva imaginada.
A música que ouves não vem desta sala
Nasce e vem do maciço de árvores escuras
que brilham mais no escuro da noite ultramarina.
Vem do mar que está depois da selva que
está a seguir às árvores de um parque
que é uma memória de pedra que já começou a ruir.
É uma música poderosa mas lenta; feroz e densa
e voraz; selvagem mas não primitiva,
Nos arredores do império, num condomínio
colonial antigo e novíssimo, podes pela música
que sem resgate os dissolveu imaginá-los. Fora
pouco antes de desaparecerem -
Eram já extremos conspiradores sem conspiração,
de si mesmos exilados, perdida a juventude,
perdidos dessa selva em que teriam sido feras
e fora já a sua própria memória. A maturidade
apodreceu-os como uma floresta que se desfaz
na água nostálgica do desejo. A música
essa música num espelho longe foi o que sobrou
fala de um crime passional em que ninguém afinal
morreu, de um segredo partilhado e sem sentido
que ouves uma vez mais nessa abafada ou
rouca - como se diz? - nessa voz que te transporta
a essa cena deserta onde nunca terás estado.
No espelho longe num oriente extremo não podes ver-te:
não é a tua história; não é a história de ninguém. Mas
podes ver a música que através deles te envenena o sangue.
É uma cena deserta. O piano e a estante de música
estão vazios; são contornos da sombra
Do lado direito de quem olha daqui, há
uma ampla porta-janela que dava para
uma varanda que daria para uma selva imaginada.
A música que ouves não vem desta sala
Nasce e vem do maciço de árvores escuras
que brilham mais no escuro da noite ultramarina.
Vem do mar que está depois da selva que
está a seguir às árvores de um parque
que é uma memória de pedra que já começou a ruir.
É uma música poderosa mas lenta; feroz e densa
e voraz; selvagem mas não primitiva,
Nos arredores do império, num condomínio
colonial antigo e novíssimo, podes pela música
que sem resgate os dissolveu imaginá-los. Fora
pouco antes de desaparecerem -
Eram já extremos conspiradores sem conspiração,
de si mesmos exilados, perdida a juventude,
perdidos dessa selva em que teriam sido feras
e fora já a sua própria memória. A maturidade
apodreceu-os como uma floresta que se desfaz
na água nostálgica do desejo. A música
essa música num espelho longe foi o que sobrou
fala de um crime passional em que ninguém afinal
morreu, de um segredo partilhado e sem sentido
que ouves uma vez mais nessa abafada ou
rouca - como se diz? - nessa voz que te transporta
a essa cena deserta onde nunca terás estado.
No espelho longe num oriente extremo não podes ver-te:
não é a tua história; não é a história de ninguém. Mas
podes ver a música que através deles te envenena o sangue.
Manuel Gusmão, Migrações de Fogo
sábado, 23 de julho de 2011
Auto-suficiência
«O bem completo, parece bastar-se a si próprio. Nós entendemos por «auto-suficiente» não aquela existência vivida num isolamento de si, nem uma vida de solidão, mas a vida vivida conjuntamente com os pais, filhos e mulher e, em geral, amigos e concidadãos, uma vez que o Humano está destinado, pela sua natureza, a existir em comunhão com outros. Mas tem de se traçar um certo limite neste complexo de relações. É que ao estender a noção de auto-suficiência aos progenitores, aos descendentes e até aos amigos dos amigos, prossegue-se até ao infinito. Mas isso terá de ser examinado numa outra vez. Nós entendemos por «auto-suficiente» aquilo que, existindo num isolamento de si, torna a vida numa escolha possível, não precisando de mais nenhum acrescento. Cuidamos que uma coisa deste género é a felicidade; demais, cuidamos que a felicidade é, de entre todas as coisas boas, a favorita, mesmo sem ser levada em consideração com as outras. Se fosse levada em consideração com todas as coisas boas, ela seria preferível quando acrescentada de um bem - porque, por mais ínfimo que fosse, constituirá sempre um acréscimo de bem, e um bem maior é sempre a melhor possibilidade de escolha.»
Aristóteles, Ética e Nicómaco, 1097b
(§) I. Atteggiamento del Croce durante la guerra mondiale
«Scritti di Croce in proposito raccolti nelle Pagine sulla guerra (Laterza, 2ª ed. accresciuta, L. 25); sarebbe interessante però rivederli nella prima stesura, a mano a mano che furono pubblicati nella «Critica» o in altri periodici e tener conto delle altre quistioni di carattere culturale e morale che contemporaneamente interessavano il Croce e mostrano a quali altri svolgimenti connessi più o meno direttamente alla situazione bellica egli credeva necessario reagire. L'atteggiamente del Croce durante la neutralità e la guerra indica quali interessi intellettuali e morali (e quindi sociali) predominano anche oggi nella sua attività letteraria e filosofica. Il Croce reagisce contro l'impostazione popolare (con la conseguente propaganda) della guerra como guerra di civiltà e quindi a carattere religioso, ciò che teoricamente dovrebbe portare all'annientamento del nemico. Il Croce vede nel momento della pace quello della guerra e nel momento della guerra quello della pace e lotta perché non siano mai distrutte le possibilità di mediazione tra i due momenti. La pace dovrà succedere alla guerra e la pace può constringere ad aggruppamenti ben diversi da quelli della guerra: ma come sarebbe possibile una collaborazione tra Stati dopo lo scatenamento di fanatismi religiosi della guerra? Ne risulta che nessuna necessità immediata di politica può e deve essere innalzata a criterio universale. Ma questi termini non comprendono esattamente l'atteggiamento del Croce. Non si può dire, infatti, che egli sia contro l'impostazione «religiosa» della guerra in quanto ciò è necessario politicamente perché le grandi masse popolari mobilitate siano disposte a sacrificarsi in trincea ea morire: è questo un problema di tecnica politica che spetta di risolvere ai tecnici della politica. Ciò che importa al Croce è che gli intellettuali non si abbassino al livello della massa, ma capiscano che altro è l'ideologia, strumento pratico per governare, e altro la filosofia e la religione che non deve essere prostituita nella coscienza degli stessi sacerdoti. Gli intellettuali devono essere goveranti e non governati, costruttori di ideologie per governare gli altri e non ciarlatani che si lasciano mordere e avvelenare dalle proprie vipere. Il Croce quindi rappresenta la grande politica contro la piccola politica, il machiavellismo di Machiavelli contro il machiavellismo di Stenterello. Egli pone se stesso molto in alto e certamente pensa che anche le critiche furibonde e gli attacchi personali i più selvaggi sono «politicamente» necessari e utili perché questa sua alta posizione sia possibile da mantenere. L'atteggiamento di Croce durante la guerra può essere paragonato solo a quello del Papa, che era il capo dei vescovi che benedicevano le armi dei tedeschi e degli austriaci e di quelli che benedicevano le armi degli italiani e dei francesi, senza che in ciò ci fosse contraddizione. [Cfr Etica e Politica, p. 343: «Uomini di Chiesa, che qui bisogna intendere, come la Chiesa stessa ecc.»].»
Antonio Gramsci, «La Filosofia de Benedetto Croce», in Quaderni del carcere, 10
[Sábado], 15 de Março [de 1941], de manhã às nove e meia.
«Ontem à tarde lemos juntos os apontamentos que ele me tinha dado. E quando chegámos a estas palavras: «Porém deveria bastar que houvesse uma pessoa digna de se chamar "Mensch" para se acreditar nas pessoas e na Humanidade», então abracei-o num impulso espontâneo. Este é um problema dos tempos que correm. O grande ódio contra os alemães, que me envenena a alma. «Eles que se afoguem, essa ralé, deveriam ser todos fumigados.» Estas observações fazem parte da conversa do dia-a-dia e às vezes provocam-nos a sensação de que é impossível viver nesta época. Até que de repente, há umas semanas, me surgiu a ideia libertadora, hesitante e frágil como um rebento de relva que começa a nascer num terreno bravio rodeado de ervas daninhas: mesmo que só houvesse um alemão digno de ser protegido contra essa chusma bárbara, por causa desse alemão decente não se devia derramar o ódio sobre um povo inteiro.
Isto não significa que uma pessoa deva ter uma atitude indecisa em relação a determinadas correntes, uma pessoa toma posição, indigna-se regularmente com determinadas coisas, tenta informar-se, mas o ódio indiferenciado é a pior coisa que existe. É uma doença da própria alma. O ódio não faz parte do meu feitio. Se chegasse a esse ponto na época actual, então a minha alma ficaria ferida e teria de tentar encontrar um remédio para isso o mais rapidamente possível. Costumava achar que os meus conflitos interiores se passavam da seguinte maneira, mas era uma explicação demasiado superficial: achava, quando se dava aquela luta voraz dentro de mim entre o ódio e os meus outros sentimentos, que essa luta era entre os meus instintos viscerais de judia ameaçada de aniquilação e as minhas ideias socialistas racionais e aculturadas que me ensinaram a não contemplar um povo na sua totalidade mas como uma parte boa enganada por uma minoria má. Portanto um instinto primitivo em oposição a uma deturpação racional.»
Isto não significa que uma pessoa deva ter uma atitude indecisa em relação a determinadas correntes, uma pessoa toma posição, indigna-se regularmente com determinadas coisas, tenta informar-se, mas o ódio indiferenciado é a pior coisa que existe. É uma doença da própria alma. O ódio não faz parte do meu feitio. Se chegasse a esse ponto na época actual, então a minha alma ficaria ferida e teria de tentar encontrar um remédio para isso o mais rapidamente possível. Costumava achar que os meus conflitos interiores se passavam da seguinte maneira, mas era uma explicação demasiado superficial: achava, quando se dava aquela luta voraz dentro de mim entre o ódio e os meus outros sentimentos, que essa luta era entre os meus instintos viscerais de judia ameaçada de aniquilação e as minhas ideias socialistas racionais e aculturadas que me ensinaram a não contemplar um povo na sua totalidade mas como uma parte boa enganada por uma minoria má. Portanto um instinto primitivo em oposição a uma deturpação racional.»
Etty Hillesum, Diário, 1941-1943
I
Conciliante estás comigo, de novo,
Sem nunca teres chegado a ser acreditado,
& levantas-me outra vez; reconheço
A tua mão, mesmo de cima,
Quando me tocas entre os olhos...
& quase como um surdo procuro
Ouvir-te, tão alto, perguntar-te
Porquê esta paz, concedida a mim,
Na lama de um Outono de chuva!
Mas pelo menos sei que não vais morrer,
Porque mesmo que um sábio produza o sol,
Só a tua epifania no mar,
No céu & na Terra faz rebentar o dia.
Sem nunca teres chegado a ser acreditado,
& levantas-me outra vez; reconheço
A tua mão, mesmo de cima,
Quando me tocas entre os olhos...
& quase como um surdo procuro
Ouvir-te, tão alto, perguntar-te
Porquê esta paz, concedida a mim,
Na lama de um Outono de chuva!
Mas pelo menos sei que não vais morrer,
Porque mesmo que um sábio produza o sol,
Só a tua epifania no mar,
No céu & na Terra faz rebentar o dia.
M.S. Lourenço, Nada Brahma
sexta-feira, 22 de julho de 2011
Quinta-feira de manhã [4 de Junho de 1942], às nove e meia
«Num dia de verão como este, a tua oração repousa em mil braços macios. Faz-te muito lenta e preguiçosa, mas dentro de ti está um mundo fermentando em direcção a um destino desconhecido.
E o que eu ainda queria dizer: da última vez que ele cantou a «Lindenbaum» (achei tão bonito que lhe pedi para cantar um bosque inteiro de tílias), os vincos e os traços da cara dele pareciam carreiros antigos, muito antigos, numa paisagem tão velha como a criação do mundo.
Há uns tempos, na pequena mesa do canto da Geiger, a cara jovem e de linhas bem definidas de Munsterberg intrometeu-se entre a minha cara e a dele e, num relâmpago, fiquei quase chocada ao reparar quão velha é a cara dele na realidade; como se por ela tivessem passado muitas vidas em vez de só a dele. E nesse momento tive uma pequena reacção, um instantâneo: «Não quereria nunca unir a minha vida à dele para todo o sempre, tal coisa é impossível», mas na verdade essa reacção é bastante reles e abaixo de nível. Ela parte de uma noção convencional: o matrimónio. A minha vida já está relacionada com a dele, ou melhor, já está ligada à dele. E não são só as nossas vidas, mas as nossas almas - admito que acho a formulação bastante empolada assim de manhãzinha, mas isso deve-se provavelmente a não dares totalmente o aval à palavra «alma». E é tão ordinário e mesquinho e francamente abaixo de nível pensar, daquela vez, que a cara dele te agrada particularmente: «Sim, gostava de casar com ele e ficarmos juntos para sempre» e, nos momentos em que ele mostra ser velho, muito, muito velho, especialmente quando se vê uma cara jovem e fresca uns tempos junto à dele, pensar: «Não, é melhor não.» Estes são os padrões a erradicar da tua vida. Esta é uma maneira de reagir que eu sinto - sim, nem sequer o consigo expressar - como uma perturbação e impedimento dos verdadeiros grandes sentimentos de união que ultrapassam todas as fronteiras das convenções e do casamento. E aqui nem se trata de convenção nem de matrimónio, mas da noção que as pessoas têm de uma e de outro.
Francamente não devia ser possível uma pessoa pensar num dado momento, motivada por uma ou outra expressão facial ou pelo que quer que seja: «Realmente gostava de casar com ele», para no momento seguinte reagir exactamente ao contrário. Isto não devia mesmo acontecer, porque não tem absolutamente nada a ver com as coisas essenciais, com o que interessa. Mais uma coisa que eu não consigo exprimir nem de longe. Porém, uma pessoa deve arrancar e exterminar muita coisa dentro de si, a fim de criar um espaço amplo e contínuo para os grandes sentimentos e ligações na sua totalidade, sem que eles sejam cruzados por pequenas reacções de um nível mais baixo.»
E o que eu ainda queria dizer: da última vez que ele cantou a «Lindenbaum» (achei tão bonito que lhe pedi para cantar um bosque inteiro de tílias), os vincos e os traços da cara dele pareciam carreiros antigos, muito antigos, numa paisagem tão velha como a criação do mundo.
Há uns tempos, na pequena mesa do canto da Geiger, a cara jovem e de linhas bem definidas de Munsterberg intrometeu-se entre a minha cara e a dele e, num relâmpago, fiquei quase chocada ao reparar quão velha é a cara dele na realidade; como se por ela tivessem passado muitas vidas em vez de só a dele. E nesse momento tive uma pequena reacção, um instantâneo: «Não quereria nunca unir a minha vida à dele para todo o sempre, tal coisa é impossível», mas na verdade essa reacção é bastante reles e abaixo de nível. Ela parte de uma noção convencional: o matrimónio. A minha vida já está relacionada com a dele, ou melhor, já está ligada à dele. E não são só as nossas vidas, mas as nossas almas - admito que acho a formulação bastante empolada assim de manhãzinha, mas isso deve-se provavelmente a não dares totalmente o aval à palavra «alma». E é tão ordinário e mesquinho e francamente abaixo de nível pensar, daquela vez, que a cara dele te agrada particularmente: «Sim, gostava de casar com ele e ficarmos juntos para sempre» e, nos momentos em que ele mostra ser velho, muito, muito velho, especialmente quando se vê uma cara jovem e fresca uns tempos junto à dele, pensar: «Não, é melhor não.» Estes são os padrões a erradicar da tua vida. Esta é uma maneira de reagir que eu sinto - sim, nem sequer o consigo expressar - como uma perturbação e impedimento dos verdadeiros grandes sentimentos de união que ultrapassam todas as fronteiras das convenções e do casamento. E aqui nem se trata de convenção nem de matrimónio, mas da noção que as pessoas têm de uma e de outro.
Francamente não devia ser possível uma pessoa pensar num dado momento, motivada por uma ou outra expressão facial ou pelo que quer que seja: «Realmente gostava de casar com ele», para no momento seguinte reagir exactamente ao contrário. Isto não devia mesmo acontecer, porque não tem absolutamente nada a ver com as coisas essenciais, com o que interessa. Mais uma coisa que eu não consigo exprimir nem de longe. Porém, uma pessoa deve arrancar e exterminar muita coisa dentro de si, a fim de criar um espaço amplo e contínuo para os grandes sentimentos e ligações na sua totalidade, sem que eles sejam cruzados por pequenas reacções de um nível mais baixo.»
Etty Hillesum, Diário, 1941-1943
quinta-feira, 21 de julho de 2011
A EL-REI D. SEBASTIÃO
«Rei bem-aventurado, em que parece
Aquela alta esperança já cumprida
De quanto o Céu, e a terra te oferece
Fermosa planta de Deus concedida
A lágrimas d'amor, e lealdade,
Só nosso bem, vida da nossa vida:
Em quanto essa inocente, e branda idade
Por Deus crescendo vai felicemente
Té o Mundo encher de nova claridade:
Em quanto este teu povo, e o d'Oriente
Novo acrescentamento por ti esperam
D'outros Reis, d'outra terra, d'outra gente:
Tais promessas os Céus de ti nos deram
No teu milagroso nascimento,
E esprito igual em ti nelas puseram.
Eu levado d'amor de santo intento
(Quem ant'essa brandura temeria?)
Deter-te com meu verso um pouco tento.
Depois virá um tão ditoso dia,
Que as tuas Reais Quinas despregadas
Na multidão de toda a Barbaria.
As vitoriosas frotas carregadas
Das cativas coroas, e bandeiras,
D'outro esprito maior sejam cantadas.
Agora ouve, Senhor, as verdadeiras
Guias, que levam os Reis a essa alta glória,
Não duras armas só, velas ligeiras.
Quantas armadas conta a antiga história,
Quantos grandes exércitos perdidos
A mais poucos deixaram já vitória!
Esses tanto no mundo conhecidos,
Cujos nomes venceram tantos anos,
Não foram só por força obedecidos.
Não se sogigam corações humanos
De boa vontade vontade a força, um peito aberto
Os vence de bom amor, sem arte, e enganos.»
[...]
Aquela alta esperança já cumprida
De quanto o Céu, e a terra te oferece
Fermosa planta de Deus concedida
A lágrimas d'amor, e lealdade,
Só nosso bem, vida da nossa vida:
Em quanto essa inocente, e branda idade
Por Deus crescendo vai felicemente
Té o Mundo encher de nova claridade:
Em quanto este teu povo, e o d'Oriente
Novo acrescentamento por ti esperam
D'outros Reis, d'outra terra, d'outra gente:
Tais promessas os Céus de ti nos deram
No teu milagroso nascimento,
E esprito igual em ti nelas puseram.
Eu levado d'amor de santo intento
(Quem ant'essa brandura temeria?)
Deter-te com meu verso um pouco tento.
Depois virá um tão ditoso dia,
Que as tuas Reais Quinas despregadas
Na multidão de toda a Barbaria.
As vitoriosas frotas carregadas
Das cativas coroas, e bandeiras,
D'outro esprito maior sejam cantadas.
Agora ouve, Senhor, as verdadeiras
Guias, que levam os Reis a essa alta glória,
Não duras armas só, velas ligeiras.
Quantas armadas conta a antiga história,
Quantos grandes exércitos perdidos
A mais poucos deixaram já vitória!
Esses tanto no mundo conhecidos,
Cujos nomes venceram tantos anos,
Não foram só por força obedecidos.
Não se sogigam corações humanos
De boa vontade vontade a força, um peito aberto
Os vence de bom amor, sem arte, e enganos.»
[...]
António Ferreira, Poemas Lusitanos
quarta-feira, 20 de julho de 2011
Velhice
«- Por Zeus que te direi, ó Sócrates, qual é o meu ponto de vista. Na verdade, muitas vezes nos juntamos num grupo de pessoas de idades aproximadas, respeitando o velho ditado. Ora, nessas reuniões, a maior parte de nós lamenta-se com saudades do prazer da juventude, ou recordando os gozos do amor, da bebida, da comida e de outros da mesma espécie, e agastam-se, como quem ficou privado de grandes bens, e vivesse bem então, ao passo que agora não é viver. Alguns lamentam-se ainda pelos insultos que um ancião sofre dos seus parentes, e em cima disto entoavam uma litania de quantos males a velhice lhes é causa. A mim afigura-se-me, ó Sócrates, que eles não acusam a verdadeira culpada. Porque, se fosse ela a culpada, também eu havia de experimentar os mesmos sofrimentos devido à velhice, bem todos quantos chegaram a esta fase da existência. Ora eu já encontrei outros anciãos que não sentem dessa maneira, entre outros o poeta Sófocles, com quem deparei quando alguém lhe perguntava: «Como passas, ó Sófocles, em questões de amor? Ainda és capaz de te unires a uma mulher?» «Não digas nada, meu amigo!» - replicou -. «Sinto-me felicíssimo por lhe ter escapado, como quem fugiu a um amo delirante e selvagem.» Pareceu-me que ele disse bem nessa altura, e hoje não me parece menos. Pois grande paz e libertação de todos esses sentimentos é a que sobrevém na velhice. Quando as paixões cessam de nos repuxar e nos largam, acontece exactamente o que Sófocles disse: somos libertos de uma hoste de déspotas furiosos. Mas, quer quanto a estes sentimentos, quer quanto aos relativos aos parentes, há uma só e única causa: não a velhice, ó Sócrates, mas o carácter das pessoas. Se elas forem sensatas e bem dispostas, também a velhice é moderadamente penosa; caso contrário, ó Sócrates, quer a velhice, quer a juventude, serão pesadas a quem assim não for.»
Platão, República, 329
Sinceridade
«A sinceridade não é uma virtude desprezível mas é uma virtude menor. Tomada como fim significa a renúncia a uma coerência mental ou humana superior à que se pode inscrever no círculo ardente mas rápido do momento. É uma coerência sem espessura, aparentemente sem defeito, na realidade apenas tecida de uma paixão feita de abandono ao contingente, ao ocasional, à solicitação inumerável e contraditória do mundo. Elevada a um grau sistemático, assume o carácter heróico de D. João, mas a prática do sistema postula uma alma rara, impermeável à dor e à reprovação alheia, unicamente atenta ao aguilhão implacável de uma vontade ilimitada de domínio. Ou a um coração estéril, apto a uma reafirmação perene do «outro» por jamais ter sido tocado pelo «mesmo», o que em vez de adorador insatisfeito do «único» lhe dá a figura de um narcisismo incurável. Sob uma forma ou outra, o arquétipo D. João resume os poderes e os limites da sinceridade e exemplifica o seu verdadeiro carácter de subjectividade exasperada. Não admira, pois, que a sinceridade tenha sido, e seja sempre, o valor supremo da alma romântica que reencontrou em D. João o mais fascinante dos seus mitos. O grande curioso das almas - mais que do corpo - é, em grau exemplar, o solitário, o indivíduo, o homem que perdeu ou não pode encontrar a chave da comunicação inter-humana por se ter entrevisto como o Único no meio de um universo privado de sentido. A sua grande revolta é contra a Criação, testemunha de uma promiscuidade e uma indistinção repugnantes ao coração ardente e estéril de D. João, rival infeliz e absurdo de Deus. É esta rivalidade, bem explícita em Tirso e Molière, que faz a sua grandeza e o seu inesgotável tormento.»
Eduardo Lourenço, Fernando, Rei da nossa Baviera
Fuja daqui o odioso
Fuja daqui o odioso
Profano Vulgo, eu canto
As brandas Musas, a uns espritos dados
Dos Céus ao novo canto
Heróico, e generoso
Nunca ouvido dos nossos bons passados.
Neste sejam cantados
Altos Reis, altos feitos,
Costume-se este ar nosso à Lira nova.
Acendei vossos peitos,
Engenhos bem criados.
Do fogo, que o Mundo outra vez renova.
Cada um faça alta prova
Do seu esprito em tantas
Portugueses conquistas, e vitórias,
De que ledo te espantas
Oceano, e dás por nova
Do Mundo ao mesmo Mundo altas histórias.
Renova mil memórias
Língua aos teus esquecida,
Ou por falta de amor ou falta de arte,
Sê para sempre lida
Nas Portuguesas glórias,
Que em ti a Apolo honra darão, e a Marte.
A mim pequena parte
Cabe inda do alto lume
Igual ao canto, o brando Amor só sigo
Levado do costume.
Mas inda em alguma parte,
Ah Ferreira, dirão, da língua amigo!
Profano Vulgo, eu canto
As brandas Musas, a uns espritos dados
Dos Céus ao novo canto
Heróico, e generoso
Nunca ouvido dos nossos bons passados.
Neste sejam cantados
Altos Reis, altos feitos,
Costume-se este ar nosso à Lira nova.
Acendei vossos peitos,
Engenhos bem criados.
Do fogo, que o Mundo outra vez renova.
Cada um faça alta prova
Do seu esprito em tantas
Portugueses conquistas, e vitórias,
De que ledo te espantas
Oceano, e dás por nova
Do Mundo ao mesmo Mundo altas histórias.
Renova mil memórias
Língua aos teus esquecida,
Ou por falta de amor ou falta de arte,
Sê para sempre lida
Nas Portuguesas glórias,
Que em ti a Apolo honra darão, e a Marte.
A mim pequena parte
Cabe inda do alto lume
Igual ao canto, o brando Amor só sigo
Levado do costume.
Mas inda em alguma parte,
Ah Ferreira, dirão, da língua amigo!
António Ferreira, Poemas Lusitanos
segunda-feira, 18 de julho de 2011
Evidence and accessibility
«For a believer to wish to invoke the strength of scientific evidence in order to establish the truth of a religious worldview is understandable enough, and our contemporary culture puts such a premium on the bald scientific model of truth that departing from it can seem like abandoning any claim to truth whatsoever. Nevertheless, there are many reasons for being wary of such an approach. The philosopher Ludwig Wittgenstein, who spent much time wrestling with questions of religious belief, was adamant in rejecting the idea that something like the Resurrection could be established or refuted by appeal to a "historic[al] basis in the sense that the ordinary belief in historic[al] facts could serve as a foundation". I take Wittgenstein's underlying point here to be that the role of evidence in religious commitment is entirely different from that which it occupies on the "Humean" model - a dispassionate scrutiny of empirical probabilities based on past instances. The kind of evidence which, for the believer, supports faith is not evidence assessed from a detached standpoint, but experience that is available only as a result of certain inner transformations. Saying this does not imply some kind of subjectivism about religious truth; it merely makes the point that there may be some truths the accessibility conditions of which include certain requirements as to the attitude of the subject.»
John Cottingham, Why Believe?
G[remio] C[ultura] P[ortuguesa]
«O remedio é crear um estado cultural portuguez, independente do estado, propria ou impropriamente dicto, fazer a preparação de Portugal futuro, e do futuro imperialismo portuguez nas camadas capazes de construção - de planear e de dirigir.
Precisamos crear uma attitude portugueza. Não o pode fazer um estado republicano intellectualmente vendido à França.
Precisamos concentrar forças - forças culturaes, forças financeiras, forças aristocraticas, creando por contraposição ao estrangeiro, a personalidade nacional portugueza.»
Precisamos crear uma attitude portugueza. Não o pode fazer um estado republicano intellectualmente vendido à França.
Precisamos concentrar forças - forças culturaes, forças financeiras, forças aristocraticas, creando por contraposição ao estrangeiro, a personalidade nacional portugueza.»
Fernando Pessoa, Argumentos para filmes
domingo, 17 de julho de 2011
Full of Life Now
Full of life now, compact, visible,
I, forty years old the eighty.third year of the States,
To one a century hence or any number of centuries hence,
To you yet unborn these, seeking you.
When you read these I that was visible am become invisible,
Now it is you, compact, visible, realizing my poems, seeking
me,
Fancying how happy you were if I could be with you and become
your comrade;
Be it as if were with you. (Be not too certain but I am now with
you.)
I, forty years old the eighty.third year of the States,
To one a century hence or any number of centuries hence,
To you yet unborn these, seeking you.
When you read these I that was visible am become invisible,
Now it is you, compact, visible, realizing my poems, seeking
me,
Fancying how happy you were if I could be with you and become
your comrade;
Be it as if were with you. (Be not too certain but I am now with
you.)
Walt Whitman, Calamus
7
Celebrar, isso mesmo! Ser destinado a celebrar,
surgiu como minérios que na pedra assomem
do silêncio. Seu coração, efémero lagar
de um vinho inesgotável para o homem.
Nunca a voz lhe falhou no pó, se fosse
do exemplo divino possuído.
Tudo se torna vinha, ou cacho de uva doce,
em seu sul sensível amadurecido.
Nem os reis que nas criptas apodrecem
desmentem seus louvores, nem, quando descem,
lá da parte dos deuses, sombras baças.
Porque ele é um dos mensageiros vivos:
transpõe o limiar dos mortos e ergue as taças
com os seus frutos de esplendor votivos.
surgiu como minérios que na pedra assomem
do silêncio. Seu coração, efémero lagar
de um vinho inesgotável para o homem.
Nunca a voz lhe falhou no pó, se fosse
do exemplo divino possuído.
Tudo se torna vinha, ou cacho de uva doce,
em seu sul sensível amadurecido.
Nem os reis que nas criptas apodrecem
desmentem seus louvores, nem, quando descem,
lá da parte dos deuses, sombras baças.
Porque ele é um dos mensageiros vivos:
transpõe o limiar dos mortos e ergue as taças
com os seus frutos de esplendor votivos.
Rainer Maria Rilke, Os Sonetos a Orfeu
sábado, 9 de julho de 2011
A Crença num só Deus
«Há um só Deus, tal e tal na Natureza e nos Atributos.
Digo «tal e tal» porque, a não ser que explique o que entendo por «um só Deus», uso palavras que podem significar tudo ou nada. Posso querer indicar uma simples anima mundi; ou um princípio inicial que outrora esteve em acção, e agora não; ou a humanidade colectiva. Falo, pois, do Deus do Teísta e do Cristão: um Deus que é numericamente Um só, que é Pessoal; o Autor, o Sustentador e o Consumador de todas as coisas, a vida da Lei e da Ordem, o Governador moral; Um só que é Supremo e Único; igual a Si próprio, diferente de todas as coisas além de Si, que são apenas criaturas suas; distinto e independente de todas elas; Um só que é auto-existente, absolutamente infinito, que nunca foi ou será, para o qual nada é passado ou futuro; que é toda a perfeição, a plenitude e o arquétipo de toda a excelência possível, a própria Verdade, Sabedoria, Amor, Justiça, Santidade; Um só que é Todo-poderoso, Omnisciente, Omnipresente, Incompreensível. Eis algumas das prerrogativas distintivas que atribuo incondicionalmente e sem reserva ao grande Ser a que chamo Deus.
Como Ele é o que os Teístas têm em mente quando falam de Deus, o seu assentimento a esta verdade admite, sem dificuldade, ser o que denominei um assentimento nocional. É um assentimento que se segue a actos de inferência e a outros exercícios puramente intelectuais; e é um assentimento a um amplo desenvolvimento de predicados, entre si correlativos ou, pelo menos, intimamente ligados entre si, como que desenhados no papel, tal como poderíamos cartografar um país que jamais vimos, construir tabelas matemáticas ou dominar os métodos da descoberta de Newton ou de Davy, sem sermos geógrafos, matemáticos ou químicos.
Até aqui, tudo é claro; mas segue-se a questão: poderei chegar a um assentimento mais vivo ao Ser de um Deus do que aquele que é simplesmente dado às noções do intelecto? Poderei ingressar com um pensamento pessoal no círculo de verdades que constituem esta grande ideia? Poderei alcandorar-me ao que chamei uma apreensão imaginativa dEle? Poderei acreditar, como se visse? Uma vez que esse assentimento elevado exige uma experiência ou memória presente do facto, é como se, à primeira vista, a resposta houvesse de ser negativa; pois, como poderei dar um assentimento como se visse, a não ser que tenha realmente visto? Mas ninguém nesta vida pode ver Deus. Concebo, todavia, que um assentimento real é possível, e irei mostrar como.
Quando se diz que não podemos ver Deus, isto é inegável; mas, ainda assim, em que sentido temos nós um discernimento das suas criaturas, dos seres individuais que nos rodeiam? A prova que da sua presença temos reside nos fenómenos que se dirigem aos nossos sentidos, e a nossa garantia para os aceitar como demonstração é a nossa certeza instintiva de que eles são prova. Pela lei da nossa natureza, associamos esses fenómenos sensíveis ou impressões a certas unidades, indivíduos, substâncias, seja qual for o seu nome, que estão fora e além do alcance dos sentidos, e que nós mesmos representamos nesses fenómenos. Os fenómenos são como que quadros; mas, ao mesmo tempo, não nos proporcionam, para lá deles, nenhuma exacta medida ou característica das coisas incógnitas - pois, quem dirá que existe qualquer uniformidade entre as impressões que dois de nós respectivamente teriam de uma terceira coisa, supondo que um de nós tinha apenas o sentido do tacto, e o outro somente o sentido do ouvido? Por conseguinte, ao dizermos que temos um quadro das coisas apercebidas através dos sentidos, queremos significar uma certa representação, quanto possível verdadeira, mas não adequada.»
Digo «tal e tal» porque, a não ser que explique o que entendo por «um só Deus», uso palavras que podem significar tudo ou nada. Posso querer indicar uma simples anima mundi; ou um princípio inicial que outrora esteve em acção, e agora não; ou a humanidade colectiva. Falo, pois, do Deus do Teísta e do Cristão: um Deus que é numericamente Um só, que é Pessoal; o Autor, o Sustentador e o Consumador de todas as coisas, a vida da Lei e da Ordem, o Governador moral; Um só que é Supremo e Único; igual a Si próprio, diferente de todas as coisas além de Si, que são apenas criaturas suas; distinto e independente de todas elas; Um só que é auto-existente, absolutamente infinito, que nunca foi ou será, para o qual nada é passado ou futuro; que é toda a perfeição, a plenitude e o arquétipo de toda a excelência possível, a própria Verdade, Sabedoria, Amor, Justiça, Santidade; Um só que é Todo-poderoso, Omnisciente, Omnipresente, Incompreensível. Eis algumas das prerrogativas distintivas que atribuo incondicionalmente e sem reserva ao grande Ser a que chamo Deus.
Como Ele é o que os Teístas têm em mente quando falam de Deus, o seu assentimento a esta verdade admite, sem dificuldade, ser o que denominei um assentimento nocional. É um assentimento que se segue a actos de inferência e a outros exercícios puramente intelectuais; e é um assentimento a um amplo desenvolvimento de predicados, entre si correlativos ou, pelo menos, intimamente ligados entre si, como que desenhados no papel, tal como poderíamos cartografar um país que jamais vimos, construir tabelas matemáticas ou dominar os métodos da descoberta de Newton ou de Davy, sem sermos geógrafos, matemáticos ou químicos.
Até aqui, tudo é claro; mas segue-se a questão: poderei chegar a um assentimento mais vivo ao Ser de um Deus do que aquele que é simplesmente dado às noções do intelecto? Poderei ingressar com um pensamento pessoal no círculo de verdades que constituem esta grande ideia? Poderei alcandorar-me ao que chamei uma apreensão imaginativa dEle? Poderei acreditar, como se visse? Uma vez que esse assentimento elevado exige uma experiência ou memória presente do facto, é como se, à primeira vista, a resposta houvesse de ser negativa; pois, como poderei dar um assentimento como se visse, a não ser que tenha realmente visto? Mas ninguém nesta vida pode ver Deus. Concebo, todavia, que um assentimento real é possível, e irei mostrar como.
Quando se diz que não podemos ver Deus, isto é inegável; mas, ainda assim, em que sentido temos nós um discernimento das suas criaturas, dos seres individuais que nos rodeiam? A prova que da sua presença temos reside nos fenómenos que se dirigem aos nossos sentidos, e a nossa garantia para os aceitar como demonstração é a nossa certeza instintiva de que eles são prova. Pela lei da nossa natureza, associamos esses fenómenos sensíveis ou impressões a certas unidades, indivíduos, substâncias, seja qual for o seu nome, que estão fora e além do alcance dos sentidos, e que nós mesmos representamos nesses fenómenos. Os fenómenos são como que quadros; mas, ao mesmo tempo, não nos proporcionam, para lá deles, nenhuma exacta medida ou característica das coisas incógnitas - pois, quem dirá que existe qualquer uniformidade entre as impressões que dois de nós respectivamente teriam de uma terceira coisa, supondo que um de nós tinha apenas o sentido do tacto, e o outro somente o sentido do ouvido? Por conseguinte, ao dizermos que temos um quadro das coisas apercebidas através dos sentidos, queremos significar uma certa representação, quanto possível verdadeira, mas não adequada.»
John Henry Newman, Ensaio a Favor de Uma Gramática do Assentimento
sexta-feira, 8 de julho de 2011
The Eternal in Man
«Man's eternity is implanted in the soil of creation. Being loved and loving are the two moments of his life, separate before God, yet united in man, and creation would be the And between them. Being loved comes to man from God, loving turns toward the world. How else could they count as one for him? How else could he be conscious of loving God by loving his neighbor if he did not know from the first and the innermost that the neighbor is God's creature and that his love of neighbor is love of the creatures. And how could he be conscious of being loved by God other than as the equal of him whom he himself loves in the neighbor; how else than because God has created in his image that which is common to him and his neighbor, namely the fact that the latter is "like him" so that both "are men". He is the creature of God and the image of God, and this is the foundation, laid down from creation, on which he can build the house of his eternal life in the temporal cross-currents of love of God and love of neighbor.»
Franz Rosenzweig, The Star of Redemption
quinta-feira, 7 de julho de 2011
35
«A quem deixarei o meu cansaço,
as unhas sujas, as marcas
do martelo falhado, a quem
senão a quem...?
- Serão de quem viver depois do dia de hoje
o dia de hoje que eu vivi doado
e a obra pequenina que fabrico
no silêncio que a rua me permite.
as unhas sujas, as marcas
do martelo falhado, a quem
senão a quem...?
- Serão de quem viver depois do dia de hoje
o dia de hoje que eu vivi doado
e a obra pequenina que fabrico
no silêncio que a rua me permite.
Pedro Tamen, O Livro do sapateiro
quarta-feira, 6 de julho de 2011
Remorso
»Dantes, nos bons tempos de outrora, quem cedia às tentações era um pecador. Hoje em dia é apenas um transgressor, ou nem isso, visto que já não há nada para transgredir. Mas sem pecado também não existe perdão, e nisto consiste o nosso inferno moderno: num lugar indiferenciado, sem miséria, sem resgate e sem grandeza. Um dia, ao olhar com espanto para as «Tentações de Santo Antão», de Bosch, pensei que se o homem dos nossos tempos perdera todas as tentações, restava-lhe todavia o remorso. E assim, imaginei uma personagem possuída pela obsessão do remorso. Porque o remorso existe, isso sim. E às vezes leva-nos para onde quer, até mesmo à tentação suprema.»
Antonio Tabucchi, As Tentações
E se a pobreza não fosse uma fatalidade?
«Em 2006, o Nobel da Paz foi entregue a um banqueiro, Muhammad Yunus: foi o reconhecimento universal de que o combate à pobreza é o combate pela paz. Num dos países mais pobres do mundo, o Bangladesh, Yunus criou o “banco dos pobres” e tirou mais de seis milhões de famílias da miséria. A sua convicção, que demonstrou ser certa, é a de que todos os seres humanos têm as mesmas capacidades se lhes forem facultadas as mesmas oportunidades.
Em Portugal, um estudo feito pelo ISEG que analisou um grupo de famílias pobres num período de seis anos revelou que, face a novas oportunidades, metade dessas famílias conseguiu ter sucesso e sair da pobreza, ganhando competências que lhes permitiram autonomizar-se.
A pobreza não é uma fatalidade mas uma indignidade. Perceber isso é altamente perturbador num país como o nosso, com dois milhões de pobres e uma abordagem da pobreza que assenta, ainda e principalmente, em “assalariar” a pobreza através de subsídios em vez de microcrédito, em ver num pobre um assistido em vez de um cidadão que precisa de uma oportunidade, um problema em vez de parte da solução.
A pobreza é um fenómeno complexo, radica em causas muito diversas e não se compadece com abordagens simplistas, metodologias rígidas ou procedimentos uniformes que constituem um álibi para o fracasso dos resultados. Um mau ambiente é gerador de pobreza, como o é um mau urbanismo: a falta de habitação ou um sistema de saúde pouco equitativo; o abandono e o insucesso escolar, a doença ou o desemprego. Sabemos que é muito mais difícil olhar um pobre como alguém que tem direito à sua oportunidade do que introduzi-lo no sistema informático para receber uns euros. É muito mais desgastante trabalhar com uma família pobre para construir com ela as alternativas possíveis do que lançá-la nos meandros da burocracia social. Mas é este esforço e este empenhamento que se exige num combate tão desigual, que convoca o Estado e a sociedade em geral e nos interpela a cada um de nós, pessoalmente, todos os dias.
A pobreza não se resolve com pacotes de medidas governamentais, com leis ou retórica. Há que inovar face a modelos esgotados, promover abordagens interdisciplinares, construir redes de proximidade às pessoas, aos problemas e às suas causas. É preciso estabelecer parcerias transparentes com o Terceiro Sector que assegurem a continuidade e a sustentabilidade das intervenções. E ter uma visão prospectiva face a novos fenómenos igualmente exigentes: as novas doenças, a demografia, os movimentos migratórios, a info-exclusão e tantos outros.
Precisamos de muita inquietação e pouco conformismo. Porque a pobreza não é uma fatalidade mas a nossa vergonha colectiva.»
Maria José Nogueira Pinto, Público, 23-09-10
Frei Luis de León, O CÂNTICO DOS CÂNTICOS. EXPOSIÇÃO DO LIVRO DE JOB
«A Bíblia, cujo nome grego é plural, significa «os livros». É, com efeito, uma biblioteca dos livros fundamentais da literatura hebraica ordenados sem grande rigor cronológico e atribuídos ao Espírito, ao Ruach. Abarca a cosmogonia, a história, a poesia, as parábolas, a meditação e a ira profética. Os diversos autores correspondem a diversas épocas e a diversas regiões. São, para o piedoso leitor, meros amanuenses do Espírito, que determina cada palavra e, segundo os cabalistas, cada letra e o seu valor numérico e as suas possíveis ou fatais combinações. O mais curioso desses textos é o Livro de Job.
Em 1853, Froude predisse que este livro, chegado o seu devido tempo, seria considerado o maior de todos quanto os homens escreveram. O tema, o eterno tema, é o facto de um justo poder ser feliz. Job, na sua lixeira, queixa-se e maldiz e os seus amigos aconselham-no. Esperamos raciocínios, mas o raciocínio, próprio do grego, é alheio à alma semítica e a obra limita-se a oferecer-nos esplêndidas metáforas. A discussão é árdua e porfiada. Nos capítulos finais, a voz de Deus fala de um remoinho e condena por igual aqueles que o culpam ou o justificam. Declara que é inexplicável e de uma forma indirecta compara-se com as suas mais estranhas criaturas, o elefante (o Behemoth, cujo nome, como o das Escrituras, é plural, dado que significa «animais», por ser tão grande) e a baleia, ou Levietã. Max Brod, em Heidentum, Christentum, Judentum, ein Bekenntnisbuch, analisou esta passagem. O mundo seria regido por um enigma.
A data da redacção é incerta. H. G. Wells escreveu que o Livro de Job é a grande resposta dos Hebreus aos diálogos de Platão.
Publicamos aqui a versão literal de frei Luis de León, a sua explicação de cada versículo e outra versão em verso hendecassílabo e rimado, ao jeito italiano. A prosa de frei Luis é, em geral, de uma serenidade exemplar; o original hebraico impõe-lhe aqui música de violências. Quando ouve a trompa, diz: «Ah! ah, cheira logo a batalha, o ruído dos capitães e o estrondo dos soldados.»
Esta biblioteca inclui também o Cântico dos Cânticos ou, como traduz frei Luis, Cantar de cantares. Define-o como écloga pastoril e dá-lhe um sentido alegórico. O esposo, profeticamente, seria Cristo; a esposa, a Igreja. O amor terreno seria um emblema do amor divino. Talvez não seja de mais recordar que a mais ardorosa obra da língua castelhana, a de São João da Cruz, provém deste livro.»
Em 1853, Froude predisse que este livro, chegado o seu devido tempo, seria considerado o maior de todos quanto os homens escreveram. O tema, o eterno tema, é o facto de um justo poder ser feliz. Job, na sua lixeira, queixa-se e maldiz e os seus amigos aconselham-no. Esperamos raciocínios, mas o raciocínio, próprio do grego, é alheio à alma semítica e a obra limita-se a oferecer-nos esplêndidas metáforas. A discussão é árdua e porfiada. Nos capítulos finais, a voz de Deus fala de um remoinho e condena por igual aqueles que o culpam ou o justificam. Declara que é inexplicável e de uma forma indirecta compara-se com as suas mais estranhas criaturas, o elefante (o Behemoth, cujo nome, como o das Escrituras, é plural, dado que significa «animais», por ser tão grande) e a baleia, ou Levietã. Max Brod, em Heidentum, Christentum, Judentum, ein Bekenntnisbuch, analisou esta passagem. O mundo seria regido por um enigma.
A data da redacção é incerta. H. G. Wells escreveu que o Livro de Job é a grande resposta dos Hebreus aos diálogos de Platão.
Publicamos aqui a versão literal de frei Luis de León, a sua explicação de cada versículo e outra versão em verso hendecassílabo e rimado, ao jeito italiano. A prosa de frei Luis é, em geral, de uma serenidade exemplar; o original hebraico impõe-lhe aqui música de violências. Quando ouve a trompa, diz: «Ah! ah, cheira logo a batalha, o ruído dos capitães e o estrondo dos soldados.»
Esta biblioteca inclui também o Cântico dos Cânticos ou, como traduz frei Luis, Cantar de cantares. Define-o como écloga pastoril e dá-lhe um sentido alegórico. O esposo, profeticamente, seria Cristo; a esposa, a Igreja. O amor terreno seria um emblema do amor divino. Talvez não seja de mais recordar que a mais ardorosa obra da língua castelhana, a de São João da Cruz, provém deste livro.»
Jorge Luís Borges, «Biblioteca Pessoal. Prólogos», in Obras Completas, 1975-1988
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terça-feira, 5 de julho de 2011
Realidade
«O espaço e as coisas da cidade são susceptíveis de três grandes regimes de visão: a visão do sono, a da Realidade, e a da Vida como revelação do Apocalipse. Também aqui Lisboa ocupa um espaço-limiar de passagem ou de transformação de um regime ao outro.
O sonho é o bom desassossego, que permite viajar nas sensações, transfigurando a cidade. Descolar, desligar-se da terra, das ruas baixas, pairar na atmosfera sobre os telhados, ou olhá-los de cima «da janella alta» do quarto ou escritório é entrar no plano de visão do sonho. É um plano de movimento que transporta o sujeito para um fora aéreo sem gravidade.
A Realidade é o exterior absoluto, a visão do «polícia como Deus o vê»: «Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalypticamente, como revelações do Mysterio, ms directamente como florações da Realidade.» A Realidade é pura exterioridade sem mistério porque «é só de Deus, ou de si mesma, (...) não contém mysterio nem verdade, que, pois que é real ou finge ser, algures exista fixa, livre de ser temporal ou eterna, imagem absoluta, ideia de uma alma que fosse exterior». (A Realidade como «o que finge ser» é a Realidade da poesia.)
O sonho é o bom desassossego, que permite viajar nas sensações, transfigurando a cidade. Descolar, desligar-se da terra, das ruas baixas, pairar na atmosfera sobre os telhados, ou olhá-los de cima «da janella alta» do quarto ou escritório é entrar no plano de visão do sonho. É um plano de movimento que transporta o sujeito para um fora aéreo sem gravidade.
A Realidade é o exterior absoluto, a visão do «polícia como Deus o vê»: «Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalypticamente, como revelações do Mysterio, ms directamente como florações da Realidade.» A Realidade é pura exterioridade sem mistério porque «é só de Deus, ou de si mesma, (...) não contém mysterio nem verdade, que, pois que é real ou finge ser, algures exista fixa, livre de ser temporal ou eterna, imagem absoluta, ideia de uma alma que fosse exterior». (A Realidade como «o que finge ser» é a Realidade da poesia.)
José Gil, O Devir-Eu de Fernando Pessoa
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segunda-feira, 4 de julho de 2011
Ética
«Uma indiciação das disposições éticas é dada pelo prazer e pelo sofrimento que acompanham as nossas acções. Por um lado, o que se abstém dos prazeres do corpo e nisso encontra motivo de regozijo é temperado; mas já o que se entedia com essa prática é devasso. Do mesmo modo, é corajoso quem resiste em situações terríveis e nisso encontra motivo de regozijo ou, pelo menos, não sente medo. Por outro lado, já é cobarde o que nas mesmas situações sente medo. A excelência ética constitui-se, portanto, em vista de fenómenos de prazer e de sofrimento.
É, assim, por causa do prazer que incorremos, por um lado, em acções vergonhosas. É, do mesmo modo, também por causa da ansiedade causada pelo medo que nos podemos afastar de feitos gloriosos. Por isso devemos ser levados logo desde novos, como diz Platão, a fazer gosto no que deve ser e a sentir desgosto pelo que não deve ser. É essa a educação correcta. Além do mais, se as excelências se constituem a partir das acções e afecções - o prazer e o sofrimento acompanham toda a afecção e toda a acção -, também sob esse fundamento a excelência se constitui sobre os prazeres e os sofrimentos.»
É, assim, por causa do prazer que incorremos, por um lado, em acções vergonhosas. É, do mesmo modo, também por causa da ansiedade causada pelo medo que nos podemos afastar de feitos gloriosos. Por isso devemos ser levados logo desde novos, como diz Platão, a fazer gosto no que deve ser e a sentir desgosto pelo que não deve ser. É essa a educação correcta. Além do mais, se as excelências se constituem a partir das acções e afecções - o prazer e o sofrimento acompanham toda a afecção e toda a acção -, também sob esse fundamento a excelência se constitui sobre os prazeres e os sofrimentos.»
Aristóteles, Ética a Nicómano
domingo, 3 de julho de 2011
Morte
«As diferenças não se ficam pelo prolongamento da vida. No século XIX, os doentes eram, quando o eram, tratados por médicos de clínica geral, enquanto hoje o são por equipas multidisciplinares, o que, além dos efeitos positivos, tem uma consequência negativa: a ligação entre doente e médico tende a dissolver-se. Outro aspecto importante diz respeito ao local da morte. Dantes, tudo se passava em casa, com a família ao lado. Hoje, a morte ocorre em unidades de Cuidados Intensivos, onde o doente se vê sozinho ou, o que não é melhor, ao lado de gente que não conhece. Outrora asilo de miseráveis, o hospital tornou-se o local onde o doente recebe os tratamentos que o levarão à cura ou à morte.
Esta mudança foi excepcionalmente rápida em Portugal: em 1970, só 20% das pessoas morria no hospital; quarenta anos depois, tal acontece em 60% dos casos. Por outro lado, a morte transformou-se num acontecimento estranho. Há algum tempo, deparei-me num jornal, com o título: «Morre-se muito nos hospitais». Mas de que estava à espera quem tal escreveu? Organizados por agências funerárias, que tendem a copiar o modelo americano, os enterros deixaram de ter carga emocional. Tanto as empresas quanto as famílias querem que tudo se passe com rapidez. Uma vez que as sociedades não desejam encarar o facto de sermos mortais, a contemplação do morto é reduzida ao mínimo. Enquanto, na Idade Média, os santos gostavam de ter, diante de si, uma caveira, a fim de recordar quão breve era a passagem pelo mundo, os contemporâneos procuram esquecer a mortalidade. Daí a dessacralização dos enterros. O que se passa nas capelas mortuárias das igrejas parece-se, cada vez mais, com um garden party. Por outro lado, enterrado o morto, ninguém visita o túmulo. A ida aos cemitérios, a 2 de Novembro, Dia dos Fiéis Defuntos, está praticamente limitada às classes rurais.»
Esta mudança foi excepcionalmente rápida em Portugal: em 1970, só 20% das pessoas morria no hospital; quarenta anos depois, tal acontece em 60% dos casos. Por outro lado, a morte transformou-se num acontecimento estranho. Há algum tempo, deparei-me num jornal, com o título: «Morre-se muito nos hospitais». Mas de que estava à espera quem tal escreveu? Organizados por agências funerárias, que tendem a copiar o modelo americano, os enterros deixaram de ter carga emocional. Tanto as empresas quanto as famílias querem que tudo se passe com rapidez. Uma vez que as sociedades não desejam encarar o facto de sermos mortais, a contemplação do morto é reduzida ao mínimo. Enquanto, na Idade Média, os santos gostavam de ter, diante de si, uma caveira, a fim de recordar quão breve era a passagem pelo mundo, os contemporâneos procuram esquecer a mortalidade. Daí a dessacralização dos enterros. O que se passa nas capelas mortuárias das igrejas parece-se, cada vez mais, com um garden party. Por outro lado, enterrado o morto, ninguém visita o túmulo. A ida aos cemitérios, a 2 de Novembro, Dia dos Fiéis Defuntos, está praticamente limitada às classes rurais.»
Maria Filomena Mónica, A Morte
sábado, 2 de julho de 2011
Primavera
«Por mais que as várias centenas de milhares de pessoas concentradas num território pequeno se esforçassem por desfigurar a terra em que se apertavam, por mais que a cravassem de pedras para que nada crescesse nela, por mais que exterminassem a mínima erva que brotasse, por mais que a enchessem de fumo do carvão e do petróleo, por mais que cortassem as árvores e escorraçassem todos os animais e pássaros - a Primavera era a Primavera mesmo na cidade. O sol aquecia, a erva, renascendo, crescia e verdejava por todo o lado onde não a raspassem, não só nos canteiros dos bulevares, mas entre as lajes da calçada, e bétulas, choupos e pados abriam as suas folhas pegajosas e fragrantes, os gomos das tílias inchavam até rebentarem; as gralhas-de-nuca-cinzenta, os pardais e os pombos, com alegria primaveril, já preparavam os ninhos, as moscas aquecidas pelo sol já zuniam junto às paredes. As pessoas, porém - as pessoas grandes, adultas - não deixavam de se enganar e de se magoar, a elas mesmas e aos outros. Achavam elas que o sagrado e importante não era a beleza primaveril nem a beleza do mundo de Deus concedida para o bem de todas as criaturas - beleza que predispunha à paz, à concórdia e ao amor - mas que o sagrado e importante era o que elas próprias tinham inventado para ganharem poder umas sobre as outras.»
Lev Tolstoy, Ressurreição
sexta-feira, 1 de julho de 2011
A Natureza
«A capacidade que o Homem tem de ligar o pensamento ao seu símbolo próprio e de o exprimir depende da simplicidade do seu carácter, ou seja, do seu amor da verdade e do seu desejo de a comunicar sem perda. A corrupção do Homem tem como consequência a corrupção da linguagem. Quando a simplicidade de carácter e do domínio das ideias são destruídos pela prevalência de desejos secundários - o desejo de riquezas, de prazer, de poder, e de honra - e a duplicidade e falsidade substituem a simplicidade e a verdade, o domínio sobre a Natureza como intérprete da vontade perde-se; cessa a criação de novas imagens e velhas palavras são distorcidas até significarem coisas que o não são; usa-se papel-moeda quando já não há barras de ouro na caixa forte. Em devido tempo a fraude é descoberta e as palavras perdem todo o poder de estimular o entendimento ou os afectos. Em qualquer nação há muito civilizada se podem encontrar centenas de escritores que, por breve espaço de tempo, acreditam e podem fazer crer que vêem e exprimem verdades, que, por si próprios, não envolvem um pensamento nas suas vestes naturais, mas que, inconscientemente, se alimentam de língua criada pelos escritores primordiais do país, ou seja, aqueles que se atêm, primordialmente, à Natureza.»
Ralph Waldo Emerson, A Natureza
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