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Oeiras, Portugal
Aluno e Professor. Sempre aluno.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Fazia muito calor. Um calor anormal para aquela época do ano. Noutras circunstâncias, teria sido capaz de se meter no carro e de partir à procura de uma praia onde não corresse riscos de encontrar alguém conhecido. Transpirava mesmo enquanto permanecia quieto. Bem vistas as coisas, podia agora aproveitar para ler um daqueles livros que sempre deixara para trás, enquanto aspirava uns sumos de limão muito açucarados. No entanto, à lembrança apenas lhe ocorriam pequenas histórias, entrecortadas por associações que lhe impossibilitavam atingir um final. Lembrava-se de alguns familiares, das suas características particulares. De um irmão que vivia numa cadeira de rodas desde os sete anos, de um avô que desde pequeno lhe alimentara o gosto pela aventura que ao mar se associava na sua terra natal. Havia, contudo, um espaço do seu raciocínio que ele ainda não conseguia alcançar. Ainda não era capaz de verbalizar os movimentos instintivos que sentia em determinados momentos em que o discernimento se lhe tolhia e apenas concedia a existência de um vaguear vazio que muitas vezes o fizera abeirar do abismo. Permanecia sentado numa enorme poltrona que Lorenzo comprara em Porta Portese no fim-de-semana anterior. Dissera-lhe que fora uma pechincha e que a comprara a um casal de filipinos com ar de esfomeados. Ao longe parecia rumorejar a cidade. O lugar, sentia-o Filipe, apresentava-se-lhe propício à errância. Desde muito jovem que se habituara a andar sem destino. Os amigos chamavam-lhe carinhosamente Stanton, a partir da sua admiração por um filme dos anos oitenta em que havia uma personagem que caminhava sem destino pelas terras áridas do Texas.
De repente, deixou de estar sozinho. A irmã de Lorenzo viera buscar alguma roupa de cama para poder acomodar convenientemente uns hóspedes que chegariam no dia seguinte. Filipe nunca simpatizara com Ilaria, mas esforçava-se por manter a cordialidade quando se encontrava com ela. No fim de contas, só teria de se relacionar com ela enquanto permanecesse naquele apartamento. Pela manhã, enquanto se dirigia para a Universidade, pensava sempre em Madalena e nos meninos. Aos poucos tinha concluído que eles eram tudo aquilo que o ligava à sua terra natal. Aos poucos tinha compreendido que a sua terra era aquela em que em cada momento se encontrava. Ainda perplexo com a descoberta, pensava na diferença que existe em conjecturar uma situação e vivê-la de facto. Descobrira que facilmente conseguiria sair para qualquer lado a qualquer momento e que o maior peso que teria de carregar seria o de si próprio e das suas constantes inquietações. Tamanha descoberta provocou nele o gosto por olhar do lado de fora as coisas que mais intimamente sentia. Tornara-se um ser silencioso. A disciplina da palavra conhecia-a agora ele intimamente. Sabia que toda a palavra podia ser diferentemente utilizada consoante a situação em que fosse pronunciada.

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