A única atitude digna de um homem superior é o persistir tenaz de uma actividade que se reconhece inútil, o hábito de uma disciplina que se sabe estéril, e o uso fixo de normas de pensamento filosófico e metafísico cuja importância se sente ser nula.[2]
O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, apresenta-se como um livro acerca de aborrecimentos[3]. À partida, quando alguém afirma que o seu lugar é onde a imaginação pode permitir uma existência concreta, onde o significado de “agir” se apresenta do avesso, aquilo que pode ser expectável será muito mais uma espécie de não existência em que a acção não tem lugar. Contudo, o problema que a este respeito o autor nos coloca situa-se ao nível do desfiar de um novelo, só que em vez de o fazermos de fora para dentro, necessitamos de descobrir, a partir do seu interior, a ponta que nos possa ajudar a chegar à superfície. Uma superfície que, tal como um novelo, se vai desfiando, até se revelar em contornos pouco definidos.
Ao ler o Livro do Desassossego, vem-me à lembrança uma passagem de um texto de Otto Fenichel[4] em que o autor afirma que “boredom […] is not just a lack of impulse, but also a ‘need for intense mental activity”. Com efeito, o texto de Bernardo Soares parece ser uma maneira de o autor combater o seu estado de “aborrecimento”. Ou será melhor dizer uma maneira de o autor assumir o seu estado de “aborrecimento”, como coisa boa em sim mesma? Confesso que me parece muito mais atraente esta segunda possibilidade, não apenas porque considero realmente que um estado de “aborrecimento” não tem que ser necessariamente uma coisa desagradável, mas também porque o desfiar do novelo, para além de ser um trabalho de paciência, pode ser feito apenas para ocupar o tempo. Apesar de preferir a segunda sugestão que apresento, não creio que ela possa ser tida em consideração independentemente da primeira, antes colaborando com ela, na medida em que o exercício de escrever ocupará o lugar onde o vazio (seja ele o que for) vai sendo ocupado. Nem que seja com matizes diferenciados.
“Agir” é, em Bernardo Soares, o resultado de uma vontade, uma determinação em perseguir uma ideia, e exerce-se por via de uma particular forma de entender a noção de desejo, de gerar uma vitalidade que parece estar em falta. Ora, esta necessidade vital de preencher um tempo corrosivo no seu fluir, acaba por se cumprir através da escrita, de um modo que pode encontrar algum eco nas palavras de Patricia Meyer Spacks, quando afirma que “the act of writing both draws on and generates vitality”[5].
A ideia de vitalidade pode resultar, então, como modalidade susceptível de permitir o encontro com a noção de fuga. A fuga, tal como aqui me pretendo referir, indicia um caminho em direcção ao conceito de desobediência, na medida em que, ao falarmos de fuga, parece existir muitas vezes, em associação, uma maneira particular de assumir uma necessidade de sair de si, bem como uma vontade de libertação, espiritual ou não. Contudo, fugir é muitas vezes um acto condenado ao fracasso, visto que, só na aparência, ele pode ser consequente. Um caso paradigmático desta ideia pode ser tomado a partir do exemplo de Jonas. Com efeito, no «Livro de Jonas», esta personagem bíblica, através da sua desobediência a Deus, pode ser tomada como exemplo do modo como, sendo próprio dos homens a sua incapacidade para fugirem em absoluto de si próprios, mesmo sabendo intimamente que esta é uma característica da sua condição, se manifesta constantemente essa ilusão de que é possível partir em direcção a um lugar diferente. Se na maioria dos casos esta situação se revela em relação a aspectos exteriores, o facto é que o caso de Bernardo Soares adquire, nestas circunstâncias aspectos específicos, na medida em que se dirige para o interior do sujeito. É nesta característica particular do seu texto que reside o nó central do seu percurso. Com efeito, Bernardo Soares “foge”, mas para dentro de si, de forma a explorar uma interioridade que é a sua.
É este movimento particular do espírito que é visível no Livro do Desassossego, no seu conjunto, mas que se manifesta, por exemplo, na secção 268. Atentemos na seguinte passagem:
O olfacto é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente. Tenho sentido isto muitas vezes. Passo numa rua. Não vejo nada, ou antes, olhando tudo, vejo como toda a gente vê. Sei que vou por uma rua e não sei que ela existe com lados feitos de casas diferentes e construídas por gente humana. Passo numa rua. De uma padaria sai um cheiro a pão que nauseia por doce no cheiro dele: e a minha infância ergue-se de determinado bairro distante, e outra padaria me surge daquele reino das fadas que é tudo que se nos morreu. Passo numa rua. Cheira de repente às frutas do tabuleiro inclinado da loja estreita; e a minha breve vida de campo, não sei já quando nem onde, tem árvores ao fim e sossego no meu coração, indiscutivelmente menino. Passo numa rua. Transtorna-me, sem que eu espere, um cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó meu Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei, pela recordação, à única verdade, que é a literatura.[6]
O exercício de Bernardo Soares consiste sistematicamente em lançar um tópico, sugerir um percurso de leitura, de forma a, mais adiante, inverter o seu sentido. É nesta inversão de sentido, que se processa regularmente ao longo do texto, que se manifesta a noção de fuga a que me refiro. Com efeito, o início do texto parece remeter para uma memória de factos concretos, associados ao olfacto ou à visão, por exemplo. Contudo, o movimento descritivo que se realiza de seguida não tem como elemento central a paisagem observada, mas sim a paisagem para onde se escapa a imaginação do autor. Por esse motivo as “frutas de tabuleiro” não evocam as “frutas de tabuleiro”, mas o “menino”, ou a figura do autor numa espécie de momento inaugural do cheiro das “frutas de tabuleiro”, ou, através da sensação daquele cheiro, a infância e a figura que agora o autor constrói de si próprio no tempo em que, enquanto menino, experimentava aquele cheiro. Num certo sentido, este movimento mental remeterá para uma ideia de desobediência, ou de não aceitação daquilo que é visível em si mesmo, do concreto. É deste modo que poderemos compreender o sentido do final da passagem, quando se afirma que “a única verdade é a literatura”. O texto coloca ao mesmo nível as recordações que resultam de sensações do autor ao passar numa rua e recordações de leituras de Cesário Verde, assumindo, assim, que tudo pode ser considerado como elemento central da cogitação e, por esse motivo, são tão importantes na vida as recordações de momentos concretos como as recordações de leituras e que a literatura assume, então, um lugar ainda mais central do que a vida, porque mais verdadeiro.
A desobediência a que me refiro resulta de uma construção particular que impõe uma recusa de aceitação do concreto como elemento decisivo e primordial da reflexão[7]. A esta ideia de desobediência associa-se um tom subversivo provocado pelo modo como, em outros momentos da obra, é feita, por exemplo, a caracterização da mentira.
A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos das palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer.[8]
A mentira, tal como é referida nesta passagem, ocupa o lugar daquilo que não é visto, aproximando-se, então, da cegueira a que o autor alude ao mesmo tempo que afirma que olha tudo[9]. Isto é, quando afirma a sua cegueira, o autor enuncia o princípio que o distancia de toda a gente, sendo que o nada que ele afirma não ver, acaba por consubstanciar uma ideia segundo a qual a única verdade reside naquilo que não se vê e que, por esse motivo, e na perspectiva de que é esse espaço nebuloso que o ocupa prioritariamente, é aí que ele “vive” e encontra a explicação para a mentira e para a felicidade de encontrar “a única verdade, que é a literatura”.
Apesar de todo este procedimento mental, que, em si mesmo se assume como uma forma de acção em Bernardo Soares, o facto é que encontramos frequentemente ao longo da obra uma assumpção por parte do autor de uma incapacidade em compreender os mecanismos mais íntimos que precedem as deambulações do seu espírito, nomeadamente em passagens em que descreve acontecimentos, sem que, contudo, seja capaz de identificar os impulsos imediatos que os originam. Num certo sentido, porque somos imperfeitos por passarmos pelas coisas sem nos fixarmos nelas[10].
E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei.[11]
Numa outra passagem, o autor afirma que “O poder de criar precisa de um ponto de apoio, da muleta da realidade”[12]. Se atendermos ao modo como se vão sucedendo, em cadência, os desenvolvimentos do processo mental do autor, poderemos dizer que, não apenas perante uma conversa ocasional, mas também num passeio a pé pelas ruas, ou noutra situação qualquer, tudo pode ser absorvido por ele, toda a realidade pode ser encontrada, assimilada, digerida, mas sempre em função de outra coisa, de algo que pode ser encontrado na referência à literatura, à mentira, lugares onde a vida se manifesta na sua mais vincada exuberância. E onde o patrão Vasques não entra.
Aliás, a explicação para este facto parece estar próxima da relação que se pode estabelecer entre duas palavras utilizadas pelo autor em momentos particulares da obra: as palavras “nada” e “tudo”. A propósito de uma passagem em que nos fala do patrão Vasques, o autor afirma que “ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora”[13]. A Vida que o patrão Vasques representa é o lado concreto da existência, das coisas comezinhas, daquilo que aproxima o autor dos outros, o espaço onde, apesar de tudo, existe a possibilidade de uma comunhão. Só que, em Bernardo Soares, esse é o lugar que contrasta com a profundidade para que o nada remete, na medida em que ao nada se associa constantemente a imagem de essencialidade. Deste modo, quando afirma “Tudo me interessa e nada me prende”, o autor apenas materializa, embora de uma forma paradoxal, o lugar invisível onde os grandes acontecimentos se verificam e quando a certa altura considera que “não sei nada”, ele realmente constata que o universo de referências prioritário que é o seu, só se manifesta e encontra no lugar da literatura e da mentira, nos termos enunciados anteriormente.
Ao afirmar que “A única arte verdadeira é a da construção”, o autor assume, então, que o único lugar onde verdadeiramente existe e onde poderá aspirar a uma possível consolação é o da literatura e da obra assim entendida emergirá um caminho para uma leitura do seu subtítulo, bem como das implicações que encerra. A Autobiografia sem factos assumirá por isso a forma como o autor se descreve por dentro e assume uma busca: a do conhecimento de si próprio. Mesmo sabendo tratar-se de uma tarefa cujos resultados nunca serão definitivos, ele põe-se a caminho e foge. Na desobediência que então parece manifestar perante esse fracasso ele encontra no seu espaço interior o ambiente propício para uma contenção dos eventuais danos.
Se alguma coisa há que esta vida tem para nós, e, salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses, é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros[14].
[1] SOARES, Bernardo, Livro do desassossego, Assírio & Alvim, Col.«Obras de Fernando Pessoa», nº4, 7ª edição, Lisboa, 2007. Secção 94, pág.121.
[2] ob. cit., Secção 89, pág.116.
[3] Cf. SPACKS, Patricia Meyer, Boredom, The University of Chicago Press, Chicago, 1995.
[4] FENICHEL, Otto, «On The Psychology of Boredom», in The Collected papers of Otto Finichel, First Series, W.W. Norton & Company, New York, 1953, pp.292-302.
[5] SPACKS, Patricia Meyer, «Reading, Writing, and Boredom», in Boredom, The University of Chicago Press, Chicago, 1995, pág.1.
[6] SOARES, Bernardo, Livro do desassossego, Assírio & Alvim, Col. «Obras de Fernando Pessoa», nº4, 7ª edição, Lisboa, 2007. Secção 268, pág.255.
[7] ob. cit., Secção 138, p.151: “A erudição da sensibilidade nada tem a ver com a experiência da vida. A experiência da vida nada ensina, como a história nada informa. A verdadeira experiência consiste em restringir o contacto com a realidade e aumentar a análise desse contacto.”
[8] idem, secção 268, pág.255.
[9] idem.
[10] idem,secção 94, pág.122: “(…) Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção – isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.”
[11] idem, secção 10, pág.53.
[12] idem, secção 250, pág.237.
[13] idem, secção 9, pág.53.
[14] idem, secção 255, p.243.
2 comentários:
Este texto tem tantos ecos da minha tese que é arrepiante...
Li todos os teus textos recentes com atenção.
Muito bem escritos, de um modo que eu já não sei escrever em Português...
E tão... faltam-me as palavras... não sei... os novelos que desembaraças e ao mesmo tempo vais construindo...
Olá Zé, só hoje percebi como se lêem os comentários que se fazem por aqui... sou mesmo totó... Obrigado pelas tuas palavras amigas. Hoje tive de voltar a actualizar o blog. Perdi uma pessoa importante.
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