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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Afirmo que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte.
Platão, República, 338c

Esta afirmação de Trasímaco parece ecoar no modo como a justiça é exercida no capítulo 3 de Alice’s adventures in wonderland, no momento em que Dodó sugere que todos participem numa “Caucus-Race”. A sugestão de Dodó resulta do insucesso da proposta do Rato, que pressupunha que todos ficariam secos se ouvissem histórias enfadonhas. No texto, a identificação da autoridade, primeiro do Rato e depois do Dodó, resulta à primeira vista pouco explicada: o Rato porque “seemed to be a person of some authority among them”; o Dodó, porque fala num tom solene e se põe de pé. À partida, estas parecem ser razões pouco credíveis para que a alguém seja atribuído um estatuto de autoridade. Contudo, no contexto em que a acção decorre, estas razões são susceptíveis de ser entendidas como boas. Num certo sentido, o nível destas explicações não difere muito daquele em que o Gato define que é maluco, através da caracterização que apresenta do cão, ao afirmar que o cão não é maluco porque rosna quando está zangado e que dá ao rabo quando está feliz, enquanto ele, Gato, rosna quando está feliz e dá ao rabo quando está zangado. Esta definição de maluco, se lida à luz de uma ideia que pressupõe que a um maluco é permitido dizer tudo sem que se lhe exija um nexo, parece ser susceptível de ser associada àquilo que acontece no episódio da “Caucus-Race”, acima mencionado.
Esta situação aproxima-se também daquilo que acontece no capítulo VIII, durante o jogo de croquete, e adquire visibilidade maior no momento em que, lamuriando-se, Alice diz ao Gato que “não lhe parece que eles joguem como deve ser”. Alice tem a noção de que num jogo, como numa discussão, deve existir uma ordem, que devem existir regras claras, ao mesmo tempo que constata que não é isso que acontece no jogo em que ela participa naquele momento.
Alice sabe que a ordem natural de uma discussão pressupõe à partida a ideia de que existem regras e que o exercício dessas regras é executado pela justiça. Neste sentido, a justiça consiste numa prática de actuação que envolve várias partes, todas elas sujeitas a regras de debate, de organização. Ora, a partir do momento em que as regras são pouco claras, ou mesmo arbitrárias e sujeitas aos desejos de alguém que exerce a autoridade, deixa de haver um critério nítido de justiça, se enquadrado ao nível da experiência pessoal de Alice. É esta situação de arbitrariedade que a desconforta e que lhe frustra as expectativas, visto que os critérios de atribuição de sentido e de ordem se encontram postos em causa, partindo da experiência anterior da protagonista.
A “conveniência do mais forte” a que Trasímaco faz referência pode ser um meio de exercer um poder ilegítimo, assente na arbitrariedade das decisões, de acordo com os interesses daquele que exerce a autoridade.

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