Num texto de Italo Calvino existe uma personagem que afirma a sua necessidade de reler os livros, visto que em cada releitura lhe parece ler pela primeira vez um livro novo.
Confrontamo-nos muitas vezes com o facto de o mesmo texto se revelar de maneiras diferentes a cada releitura e, desse modo, um texto que lemos aos quarenta anos aparece-nos como coisa diferente do mesmo texto lido vinte anos antes. O facto é que o texto está lá, não mudou. Aquilo que mudou foi o seu leitor. A leitura, a interpretação é o lugar onde em permanência procuramos estabilizar o nosso entendimento do mundo e dos livros que lemos. Os textos estão fixados apenas pelo envólucro do livro de papel, mas as estratégias interpretativas variam. Ao leitor cabe engendrar estratégias para pôr em discussão o texto e estabilizá-lo numa determinada comunidade de leitores. Interpretar envolve fazer escolhas e nessas escolhas o leitor tem um papel determinante.
Dante propõe no Convivio quatro etapas para a construção de uma interpretação: literal, alegórica, moral e anagógica. Ao assim proceder, ele afirma que existe uma primeira fase na observação de um texto, que passa pela identificação dos significados das palavras, pelo primeiro contacto com o texto. Mais adiante, define como segunda etapa, o sentido alegórico de um texto, a partir do qual se pode intuir um significado aparente. Só posteriormente surgem os sentidos moral e anagógico do texto. A estes dois últimos sentidos estarão associados aspectos relacionados com a experiência do leitor e com a sua maneira de observar o mundo.
A interpretação de um texto envolve, por outro lado, um momento intuitivo, em que a observação, embora partindo do sentido literal do texto, pressupõe uma tentativa de fixação dos problemas que resultam de uma primeira leitura e permite estabelecer as primeiras propostas para a sua resolução. A este momento intuitivo seguir-se-á um momento crítico, que conduz o momento intuitivo a um patamar superior, pondo à prova as intuições provenientes do momento inicial.
A interpretação não existe independentemente da experiência do leitor. Ainda assim, a experiência do leitor é ela própria o produto de um conjunto de assumpções interpretativas. A interpretação é uma actividade em permanente actualização, cabendo ao leitor engendrar formas de validação do sentido do texto, com base na sua experiência pessoal, tendo em vista uma comunidade de leitores específica. Esta validação a que me refiro é fundamental, visto que sem ela, não existe verdadeiramente aquilo a que chamamos interpretação, na medida em que, apesar de se tratar de uma experiência pessoal, uma interpretação requer um reconhecimento, não dos seus argumentos, mas da sua fixação, mesmo que temporária.
Todos nós fomos contactando ao longo da vida com interpretações variadas de textos variados, que não constituíam propostas de leitura, mas uma espécie de assumpção da “leitura verdadeira” de um texto. Este modo de funcionar, facilitava, de certo modo, a tarefa do leitor. Contudo, quem assim procede parece ter a aspiração de fixar definitivamente um texto, como se fosse possível fixar definitivamente a vida. Ora, um dos problemas da interpretação resulta do facto de o terreno em que ela se exerce parecer muitas vezes movediço, sendo que, nessa medida, o papel do leitor que interpreta assume um lugar determinante na sua actualização.
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