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sábado, 19 de dezembro de 2009

Era uma vez uma flor que brilhava num terreno baldio. Eu contemplei essa flor. Não que ela possuísse uma cor viva, ou sequer que tivesse dimensões exageradas. Tratava-se simplesmente de uma flor. Num primeiro momento limitei-me a contemplá-la. Aos poucos fui gradualmente dando conta da sua imensa singularidade. Era flor. Apenas fui capaz de a sentir, tocar, cheirar, mas não sabia dizê-la. Até porque aquela flor não me recordava nenhuma outra flor que alguma vez tivesse visto, mesmo que fosse igual a tantas outras. A recordação da imagem daquela flor apenas me trazia à memória um campo verde, inexistente, e o som da voz de um rapaz, ao longe. E música, continuamente música. Gostava de descrever esta ideia de flor que de mim se apoderara, mas não sabia como. Apenas sabia que, para a descrever, teria que determinar os nexos que em mim se criaram entretanto e que estavam fora dela. Isto é, na vontade de mostrar a flor, eu não estava senão a traí-la, porque aquilo que eu nela observava não se encontrava nela, mas numa espécie de mentira que eu sentia como verdadeira. No fundo eu interpretava a flor. Não tenho, no entanto, a certeza de que estivesse a ser mentiroso.
O processo em que desenvolvia a minha observação tinha em conta, mais do que a flor, uma certa imagem que em mim e de mim mesmo eu criara. Em vez de interpretar a flor, interpretava-me a mim próprio. Ou pelo menos interpretava qualquer coisa que existia dentro das minhas recordações. Poder-se-á dizer que, a um certo nível, a flor desempenhou uma função e que se encontrava naquele lugar para provocar em mim uma espécie de memória adormecida.



"Car les impressions suivantes ne le sont plus [originais]. Je collectionnerais pour les romans les reliures d’autrefois, celles du temps où je lus mes premiers romans et qui entendaient tant de fois papa me dire: “Tiens-toi droit!” Comme la robe où nous vîmes pour la première fois une femme, elles m’aideraient à retrouver l’amour que j’avais alors, la beautè sur laquelle j’ai superposé trop d’images de moins en moins aimées, pour pouvoir retrouver la première, moi qui ne suis pas le moi qui l’ai vue et qui dois céder la place au moi que j’étais alors, s’il appelle la chose qu’il connut et que mon moi d’aujourd’hui ne connaît point."

Até que ponto será possível afirmar a necessidade da memória como único meio, única estratégia redentora? Nesta passagem da Recherche, existe uma tese embrionária: a de que a única imagem verdadeira é a primeira, aquela que guardamos de um primeiro encontro, na medida em que, a esta, apenas poderão suceder outras imagens só que reveladoras de uma perda. A perda do momento inaugural. Proust afirma que, na prática, só se nasce uma vez, mas que se pode renascer constantemente. Isto é, a partir do momento em que se afirma no texto que o “moi qui ne suis pas le moi qui l’ai vue et qui dois céder la place au moi que j’étais alors”, é conveniente esclarecer que, de um ponto de vista da “argumentação redentora”, o autor, por mais que aponte para um desfalecimento gradual em relação ao primeiro encontro, ele sabe também que o eu que ele é agora é outro e que, até como forma de minimizar os efeitos da perda, podemos evocar sempre um ser-se outro em que o tempo nos transforma e que nos permite, por sua vez, aceder a uma distância que, separando as diferentes imagens de uma mesma circunstância, obtidas em momentos e em graus diferentes, nos proporciona a possibilidade de um recomeço.
O recomeço, conforme é aqui sugerido, é o espaço vital em que a vida pode continuar, o espaço que permite a verbalização, a narrativa. Talvez seja neste registo que possamos prestar atenção à seguinte passagem de Bloom:

"In una delle sue formulazioni più vicine allo stile di Amleto, Nietzsche afferma che le cose per cui riusciamo a trovare le parole sono già morte nel nostro cuore; nell’atto del parlare vi è dunque sempre una sorta di disprezzo"

Acontece que, de certo modo, a afirmação de Bloom, remete para uma ideia, segundo a qual, apenas seremos capazes de falar daquilo que já sentimos como morto, de coisas mortas. Nesta perspectiva, falar, “trovare le parole”, constitui o gesto redentor por excelência, único capaz de gerar recomeços. Ocorre-me pensar em traumas e superações de situações traumáticas.
No caso concreto de Proust, a estratégia parece ser a de procurar na palavra a possibilidade de, estando em contacto com a morte, ser-se capaz, por um processo de anamnese, vislumbrar aquilo que constitui o presente, partindo de impressões do passado. Estaremos a falar de interpretação do passado e do modo como, por via dessa interpretação do passado, damos conta de como a distância pode ser libertadora, mas também e fundamentalmente das alterações que se verificaram no eu que já fui, de tal modo que se repercutem vivamente no eu que sou agora.

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