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segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Cabra-cega

«Agora a pergunta era tão clara que eu não achei uma sombra para me esconder. De outras vezes, outra gente me perguntara o mesmo. E nunca soube responder. Falavam-me de fora, de outro mundo, com uma linguagem diferente. E assim, as nossas ideias jogavam à cabra-cega. Eu próprio, quando queria entender-me, espreitando-me donde me não suspeitasse, não tinha razões talhadas à medida do meu sonho. Os princípios do senso, da justiça, talvez tivessem envelhecido e não pudessem acompanhar o meu anseio. Só metido dentro de mim eu me compreendo todo e sem razões. Hei-de um dia tombar e arrefecer. Talvez então seja possível a outros ler em rigor o que se imobilizou da minha agitação. Até lá, é difícil. Qualquer coisa me está sempre forçando os limites, mesmo da regra que julgo dar-me. Um vento largo ergueu-se não sei donde e arrebatou-me. Lembra-me bem como tudo aconteceu. Mas quando penso no que eu fui, não me parece que tenha acontecido nada de extraordinário. É como se eu tivesse já nascido para isso. Meu pai às vezes dizia: «Hoje vou ter sorte»; ou: «Hoje vai-me acontecer uma desgraça.» O mais difícil era convencer-se de que seria assim. Porque depois, durante o dia, só tinha de andar atento para achar a desgraça com a sorte que profetizara. Mas nunca fui capaz de entender que arcanjos da vida o faziam acreditar assim nos anúncios do seu destino. Havia sol ou chuva no céu, nem sempre o comer estava pronto a horas, às vezes o filho mais novo chorava sem razões adultas, ou qualquer coisa parecida. Mas é difícil pensar que factos desses decidissem das certezas de meu pai.»

Vergílio Ferreira, «Adeus», in Contos  

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