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Oeiras, Portugal
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sábado, 15 de outubro de 2011

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«É, porém, um facto curioso que a religião e a ciência têm a mesma base - a intuição determinista. A noção de lei é fundamental na ciência, e na mentalidade científica; sem que haja uma noção de lei, nem pode haver ciência, nem quem busque fazer ciência.
Mas esta mesma noção de determinismo é que é o fundamento da religião; porque a religião não passa, na essência, do reconhecimento de que a vida, a acção, tudo quanto somos e representamos, não tem origem ou explicação em nós mesmos, mas está nas mãos de um poder ou poderes desconhecidos.

Paralelamente, porém, ao reconhecimento da existência de uma força superior a ele, o homem nota, também, que a acção dessa força, no que se refere às ideias morais e outras (que ele tira da sua vida social), é absurda por vezes, outras vezes injusta, frequentemente inexplicável. O que acontece é por vezes imoral; morre o justo ante o pecador, e a astúcia vale mais que a honestidade muitas vezes. Mas isto acontece umas vezes, e outras o contrário; difícil é determinar qual a lei oculta a que tudo isso obedece. Por isso a religião espontânea da humanidade reconhece que, como há motivos desencontrados e absurdos provindos da complexidade, na vida, assim deve haver, governando-nos, não só uma presença, mas várias; e os mais lógicos entre os homens reconhecem que essas várias presenças, que nos regem, como não são limitadas na sua regência e contudo produzem por vezes efeitos imorais para nós, e por certo injustos frequentemente, ou têm uma moral diferente da nossa, ou moral nenhuma, ou são, como nós, susceptíveis de caprichos e de volubilidades. Tal a doutrina pagã, que, completada, reconhece, porém, mais alguma coisa. Assim como nós agimos e supomos que produzimos acção, mas, pensando bem, reparamos na nossa servitude, e que a acção que agimos não é nossa mas produzida, assim chegamos a crer que essa acção das presenças superiores não emane exclusivamente deles, mas de qualquer outra presença, que os governe. E assim a lógica do paganismo concebe, e bem, que o Destino se oculta por detrás, e interiormente, à acção dos homens e dos deuses.

A ideia cristã, de que há um Deus supremo moralmente caracterizável, e presenças intermédias de várias espécies, primordialmente os anjos, é menos lógica que a ideia pagã. Pondo acima de tudo (no lugar de Deus no cristismo) o Destino, o pagão reconhecia que o que temos que ter por superior a tudo é a Lei, mas a Lei nem moral nem imoral, nem caracterizável  nem não,simples força a que se não pode resistir, compulsão contra a qual não há revolta e da qual não há apelo.»

Ricardo Reis, Prosa

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