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quarta-feira, 23 de março de 2011

Doença

«- (...) Lembro-me de intelectuais degradando-se muito depressa, enquanto estivadores ou pessoas habituadas ao trabalho manual resistiam melhor. Não há critério absoluto; os critérios eram outros. Um deles era o peso do corpo: é evidente que um homem como eu, franzino de natureza, que pesava, à chegada ao Lager, quarenta e nove quilos, necessitava de menos calorias do que um homem de oitenta ou noventa quilos; no meu caso, foi m factor de sobrevivência, uma vantagem. Muitos intelectuais soçobravam porque se encontravam face a um trabalho que nunca tinham efectuado, confrontados com a obrigação de trabalhar fisicamente, de se ocuparem de coisas que um homem abastado nunca faz, escovar as roupas sem escova, com as mãos, com as unhas...
- De cuidar de si próprio.
- Sim, em vez de deixar esse cuidado a outros.
- Com efeito, nas famílias esse trabalho recaía sobre as mulheres, a esposa, a criada...
- Claro, encarregava-se dele qualquer outra pessoa. Em contrapartida, no Lager era necessário tomá-lo a peito. Eu próprio estive em grande perigo nos primeiros dias por causa de um facto importante para nós italianos: a impossibilidade de comunicar; e creio que fui salvo pela amizade. Senti essa impossibilidade como um ferro em brasa a queimar-me, como uma tortura; caíamos num meio onde não compreendíamos uma palavra, onde a palavra não podia ser compreendida, onde não conseguíamos ser entendidos. Era uma grande sorte encontrar um italiano com quem comunicar. Éramos poucos italianos, cerca de cem em dez mil, um por cento dos presos do Lager, e os estrangeiros a falar a nossa língua eram raros; entre nós quase ninguém falava alemão ou polaco, só alguns falavam francês. Sofríamos de um terrível isolamento linguístico. E descobrir uma brecha, um meio de ultrapassar esse isolamento linguístico, era um factor de sobrevivência. E encontrar na outra extremidade do fio uma pessoa amiga era a salvação. Ora, este rapaz, Alberto, de quem falei frequentemente nos meus livros, era o homem providencial, tinha coragem para dar e vender, para ele e para os outros, tinha todas as condições para a prodigalizar e eu fui parar ao pé dele por mero acaso, sem nunca compreender muito bem... Encontrei nele um salvador; não sei o que é que ele encontrava em mim para me dizer: "És uma pessoa de sorte." Eu não sabia bem no que ele se baseava para dizer isso, mas o destino veio a mostrar-me depois que tive sorte. Tentei várias vezes teorizar sobre o que me tinha salvo e concluí pouca coisa, concluí que o acaso tinha sido o factor dominante. Por exemplo, no meu caso, eu, que não tinha uma saúde particularmente sólida, estive um ano inteiro sem adoecer, mesmo de uma banal infecção, que aliás podia ser perigosa.
- E depois, finalmente...
- Fiquei doente numa altura propícia, quando era uma sorte, porque os alemães abandonaram, de forma completamente imprevisível, os doentes ao seu destino.»

Primo Levi, O Dever de Memória

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