Somos levados a pensar, perante um cenário tão aterrador, que a sociedade do bem-estar tem os dias contados. Será que o podemos afirmar? Será que podemos colocar o problema desta maneira?
Ao rever Blade Runner, o filme de Ridley Scot, fui de novo assaltado por uma necessidade vital de encontrar um sentido, um enquadramento actualizado das circunstâncias que ali são projectadas no futuro.
Desde logo me pareceu ser este o caminho a seguir já que, se não procedesse deste modo, correria o risco de apresentar simplesmente um plano de ocorrências susceptìvel de conduzir a minha análise para os dominios da mera previsão especulativa.
No prefácio a O Inumano (1), intitulado “Do Humano”, Jean-François Lyotard parece afirmar a dicotomia criança/adulto como exemplo de uma outra de carácter mais totalizador: a de humano/inumano. A este respeito afirma: “Desprovida da palavra, incapaz da paragem certa, hesitante quanto aos objectivos do seu interesse, inapta no cálculo dos seus benef’ícios, insensível à razão comum, a criança é eminentemente humana, pois a sua aflição anuncia e promete os possíveis”.
Rachel (a protagonista feminina), tal como os demais replicantes, “teria nascido“ adulta. Assim sendo, por não ter conhecido a infância, jamais poderá ser enquadrada na categoria de humano, pois dela não terá tido senão informações indirectas, produzidas através do contacto com o seu criador. Mas será isto assim tão linear? Parece-me que não. Vejamos: no filme, Rachel é apresentada como uma replicante especial a quem foi feito o implante da memória de uma sobrinha do seu criador. Partindo desse facto, a personagem percorre um trajecto sinuoso de justificação de si mesma, que se revela como elemento importante na sua auto-defesa.
Ao procurar no interior do corpo (aparelho) que lhe foi fornecido uma infância vivida num outro corpo, não estará ela a assumir o papel da criança que se interroga a si e aos adultos? E nessa medida, enquanto agente de um processo interior, efectuado em sentido inverso, não estará ela a ser “more human than human”, como afirma o Dr. Tyrrel? Irónicamente somos levados a concordar que (pelo menos) Rachel acaba por se revelar “mais humana do que o que é humano”, pelo menos no sentido que Lyotard parece querer atribuir à palavra “humano”.
Os replicantes, cada um à sua maneira, parecem querer encontar a resposta para o seu problema fundamental: a ausência de um sentido para além daquele para que terão sido criados. Em certo sentido criador e criatura parecem relacionar-se intimamente. Enquanto que à superfície desempenham papeis diferentes, para uns e outros existe um lugar em que os seus papéis se cruzam: o da necessidade de encontrar um prolongamento espacio-temporal das suas existências.
O filme apresenta-nos um mundo onde a tecnologia ocupa um lugar determinante, uma função primordial na preparação de outros mundos. A certa altura aquele mundo que nos é apresentado é um lugar sem tempo, onde o que se joga é a mera subrevivência. É aqui que os replicantes, através dos seus procedimentos, se apresentam como extensão dos seus criadores.
Ao serem criados, os replicantes desconhecem o seu tempo de duração. Contudo, são equipados com inteligência, com capacidade de pensar e sentir. Para serem perfeitos (numa dimensão genesíaca do termo) apenas lhes falta atingir a imortalidade. A sua luta, a sua revolta advém não apenas dessa circunstância mas também do facto de desconhecerem a sua durabilidade. Assim sendo, considero que o tempo se mostra em duas domensões distintas: a de um registo fotográfico, enquanto corte, momento de intersecção entre um antes e um depois (a este respeito considero pertinente o facto de quase todas as acções decorrerem de noite, circunstância que, de algum modo, condiciona a ideia de sucessão); e a de uma intemporalidade (no sentido em que, embora datados, os acontecimentos remetem para conceitos e para referências não exclusivas de um determinado período histórico).
No primeiro caso, coincidindo com a acção do filme, somos confrontados com o problema. No segundo, com a procura de um sentido para aquilo que, sugerido pelo registo fotográfico, constitui o temor do devir. É nesta angústia comum que se encontram criador e criatura.
Contudo, se para o criador o prolongamento no espaço se assume também enquanto prolongamento temporal, para a criatura o processo é inverso, de um espaço alargado parte em direcção a um outro, limitado, onde a vida se começa a desvanecer.
Para além disso, ao criador não se apresenta aqui o problema da origem mas sim o da continuidade da sua evolução, enquanto que à criatura é da determinação da origem que se trata. Mas não será tudo isto um jogo de espelhos?
De algum modo, servindo-nos dos termos de Jean-François Lyotard, somos tentados a dizer que, se a “inumanidade” do criador continuamente se “inumaniza”, a “inumanidade da criatura busca a “humanidade”. Nestas linhas divergentes caminham uns e outros na prossecução de um objectivo semelhante.
“E se a retenção divina deve ser completa, é porque inclui do mesmo modo as informações que ainda não estão presentes diante das mónades incompletas representadas pelos nossos espíritos e que estão por acontecer no que chamamos futuro”.
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