No final de um ano inteirinho de trabalho, que fica de nós e das energias que dispendemos? Apenas sei que o centro daquilo que faço sobrevive naquilo que não é imediato. Apenas sei que ler e escrever são para mim actividades distintas de que me sirvo para me descobrir, para me conhecer. Ler nunca foi para mim um acto que visasse um resultado objectivo. Apenas sei que leio e que o faço como estratégia para enfrentar a minha solidão, os meus silêncios.
Por este motivo, também sei que a literatura não se ensina, prova-se, e que a experiência da leitura é o modo de que me sirvo para observar o mundo, para me observar a mim próprio e aos outros, para encontrar caminhos para as minhas angústias pessoais. Não sei ainda o que significa para cada um de vós uma experiência de leitura. Confesso que o primeiro atributo de um leitor é o de estar disponível para reflectir. Nos dias que correm temos de ser leitores num sentido alargado do termo. Temos de ser leitores do mundo, temos de nos encontrar connosco próprios. A leitura é o espaço onde me encontro comigo próprio, onde reflicto, onde me questiono.
Na minha opinião, a grandeza da vida reside na capacidade que todos temos de renascer diariamente até ao dia em que seremos consumidos pelo destino. A vida encerra, entre outros, esse enorme mistério: o de não sermos capazes de fugir da morte. Num certo sentido, preparamos a nossa morte enquanto vivemos através do trabalho diário, das trocas, das discussões que travamos a propósito daquilo que nos é de facto importante. Num tempo em que tudo é tão efémero, em que tudo se nos apresenta marcado pelas ideias de sucesso e de fama, eu prefiro andar na margem. Não vejo outro lugar onde me possa situar. Não pensem que o faço por um mero capricho de adolescente em busca de afirmação. Faço-o porque sou um dos que tiveram a fortuna de encontrar bons mestres que me ensinaram a pensar pela minha cabeça. Mesmo correndo o risco de errar, eu penso pela minha cabeça e tenho cada vez mais a consciência de que a ideia de liberdade em que acredito passa cada vez mais pela possibilidade que possamos ter de pensar e de reflectir sem condicionalismos.
Se eu tiver sido capaz de vos alimentar o espírito crítico, sentir-me-ei satisfeito com o nosso encontro. Em caso contrário, poderei não ter sido capaz de cumprir um dos meus objectivos essenciais: o de promover a vossa capacidade de reflexão acerca de vocês próprios e do mundo.
No quadro dos currículos do ensino secundário, e concretamente do vosso currículo de alunos de Português B, esta é sempre uma disciplina de passagem. Por aqui passam todos os alunos, mesmo que não tenham interesse absolutamente nenhum em relação às coisas da literatura. Contudo, a maior dificuldade que uma disciplina como esta tem para se fazer compreender, relaciona-se com a incapacidade que vocês, como as pessoas em geral encontram quando se têm de confrontar consigo mesmas. O exercício da leitura pressupõe um encontro do leitor com os seus medos, com os seus receios, com as suas angústias, com aquilo que de secreto existe em si. O leitor assim entendido será sempre alguem que lida de perto com a sua contingência e, por conseguinte, com a ideia da sua própria finitude, com a ideia da sua própria morte. Ao ler, de alguma forma preparo-me para a ideia de morte. Este é um dos segredos da leitura e simultaneamente uma das razões por que as pessoas se afastam dos livros.
Não pensem que sou mórbido, apenas sou alguém para quem a literatura encerra os desígnios mais profundos de cada um de nós. Tenho paciência para me aturar, por isso leio. O dia em que isto deixar de acontecer corresponderá ao primeiro dia da minha despedida. Então, terei deixado de pensar e passarei a estar à espera do dia em que sobre o meu corpo seja lançada a cal dos mortos.
Concluo esta reflexão com um poema de um autor italiano (tinha de ser, não?) que decidi traduzir para vós. Ele chama-se Cesare Pavese e diz o seguinte:
Virá a morte e terá os teus olhos –
esta morte que nos acompanha
de manhã à noite, sem dormir,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês todas as manhãs
quando em direcção a ti sózinha os dobras
no espelho. Oh querida esperança,
naquele dia saberemos também nós
que és a vida e és o nada.
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como ver no espelho
reaparecer um rosto morto,
como ouvir um lábio fechado.
Desceremos ao abismo mudos.
1 comentário:
Sobre a Morte
Tenho um sentido muito latente de morte. Assusta-me sofrer a morte daqueles que me são queridos, mas não a minha.
Os meus olhos vêem a vida como uma espécie de ilha. Andamos, caímos, rastejamos: vivemos.
Andamos em círculos arfando como cavalos, não temos saída. Antecipar a morte é uma cobardia tremenda (dizem as pessoas que não querem acordar os seus próprios medos). Acho que não. Melhor: não acho nada. Não tenho que achar nada.
É assim: Sobe-se a ilha, aspira-se chegar ao pique. Mas há um abismo fundo e negro no fim da terra seca. Para alguns a terra molhada é sinal de salvação, vislumbramento de um mar de purificação, de renovação, de alívio.
A ilha sufoca e o mar persegue. É ali. Sempre ali para nos lembrar a nossa efemeridade, o fado trágico que a nossa natureza encerra. Para alguns transmite uma sensação de evasão, de paz que o torna sedutor e que só lá se encontra. É melhor derivar do que andar às voltas, pensam.
Cobardes ou corajosos? … Não acho nada. Não sei nada. Ninguém sabe nada. Nenhuma explicação sobre a vida é um porto seguro.
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