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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Italo Calvino, Se una notte d'inverno un viaggiatore

Chegou porventura o momento de admitir que o tarot número um é o único que representa seriamente aquilo que consegui ser: algum escamoteador ou ilusionista que num banco de feira dispõe mas quantas figuras e, deslocando-as, concatenando-as, permutando-as, obtém uns tantos efeitos.
Italo Calvino, O Castelo dos destinos cruzados

Estás prestes a começar a escrever a propósito de um romance de Italo Calvino: Se un notte d'inverno un viaggiatore . Já percorreste um número considerável de livros e sabes que muitos outros ficaram pelo caminho, pois a cada leitura que fazes encontras sempre mais uma, duas, três e mais referências a obras que poderias consultar. Pensas que haverá sempre uma oportunidade de o fazeres, embora saibas que provavelmente o não farás.
Decides limitar o teu campo de manobra e, por isso, optas por escolher um capítulo. É notória a razão por que decides desde já colocar-te numa posição defensiva: tu sentes-te desamparado por um autor que, entretanto, se escondeu na teia por ele próprio criada. Foste convidado para um banquete a que até mesmo o anfitrião faltou. Só te resta jogar.
Caminhas pelas margens de um texto que te assalta com propostas imprevistas. Já passaram várias vozes por ti neste teu percurso em que procuras construir uma unidade. Do primeiro encontro conservas a imagem de um narrador que apresenta uma obra: a mesma que tu próprio tens diante de ti. Primeiro sinal de afastamento do autor perante a obra produzida? É no mínimo curioso notar que o Calvino nomeado não corresponde ao Calvino-autor empírico. Trata-se da nomeação de um facto: a obra foi escrita por Calvino, Italo Calvino. Este, por sua vez, afastou-se preferindo o lado de fora da teia construída, ao denso emaranhado em que se constituíu. Aí emerge uma personagem: o Leitor. Será ele quem viajará ao longo da multiplicidade proporcionada pelo labirinto em que serenamente o texto se vai tornando. Por isso procura incessantemente uma origem, a palavra original de um texto que lhe foge desde a página 32: Da pagina 32 sei ritornato a pagina 17!
É sem dificuldade que se vê num bosque labiríntico onde os caminhos se parecem sistematicamente bifurcar. A certa altura, na sua busca de um caminho plano, toma uma decisão: «Lettore, hai deciso: andrai a trovare lo scritore».
Tu bem sabes como até então o trajecto deste Leitor foi feito de começos, de expectativas nunca concretizadas a compreendes a sua necessidade de preencher o vazio em que sente ter sido largado.
De repente, és tu que te instalas para a leitura. Do lugar em que te encontras podes observar um escritor que contempla "una giovane donna che legge". Como uma necessidade vital, ele procura nessa jovem mulher um sinal, um reflexo no seu rosto, capaz de lhe mostrar "quel movimento invisibile che è la lettura". Talvez esta mulher represente um papel de mediação: entre o escritor e o prazer da leitura. Num certo sentido ela surge investida de um poder insondável: o de proporcionar ao escritor um redimensionamento da leitura, o abandono da sua condição de "forzato dello scrivere". Por isso se opõem "sforzo innaturale" da escrita e "respiro". Este escritor hesita entre um lugar, dentro ou fora do texto, manifestando a sua angústia perante a situação em que, de facto, se encontra: no espaço da "distanza tra il mio scrivere e il suo leggere". Há, no entanto, um lugar onde estas duas circunstâncias se parecem encontrar: a mão do escritor. Incapaz de modificar a ordem dos acontecimentos, ele observa a sua mão que progride, caminha, ganha autonomia. É o seu corpo que então se instrumentaliza e transgride o limiar da sua existência. Contudo, o escritor afirma a sua incomodidade: "Come scriverei bene se non ci fossi!"
A jovem mulher surge, entretanto, duplamente observada. Para além do escritor já referido (a que a partir de agora chamaremos atormentado) também um outro escritor, produtivo, a observa. Qualquer um deles pensa ver na reacção da jovem mulher à leitura daquilo que gostaria de ver em quem lesse os seus livros. Mas, ao mesmo tempo, cada um deles considera que esse tipo de reacção à leitura só é possível perante os livros do outro. A jovem mulher é agora o lugar de desejo que ambos se esforçam por conquistar. Para o efeito, escritor atormentado e escritor produtivo decidem trocar de papéis. O resultado é surpreendente: "m'avete dato due copie dello stesso romanzo!" - afirma a jovem .
Chegado a este ponto tudo te parece caminhar para um vazio que se preenche sucessivamente com outro vazio e decides deter-te perante o desfecho intrigante da contenda. No capítulo VIII encontras, então, dois escritores de características diferentes. Até aqui tudo te parece fazer sentido. Mas por que motivo escreveram involuntariamente o mesmo romance? É esta a pergunta a que a partir de agora procurarás responder.

No início do capítulo VIII deparas com o escritor atormentado e, ao longo desse mesmo capítulo, vais dando conta de sucessivas posições desse escritor perante a circunstância da escrita. Escolhes uma delas, a que encontras na página 181: "Allo scrittore che vuole annullare se stesso per dar voce a ciò che è fuori di lui s'aprono due strade: o scrivere un libro che possa essere il libro unico, tale da esaurire il tutto nelle sue pagine; o scrivere tutti I libri, in modo da inseguire il tutto attraverso le sue immagini parziali. Il libro unico, che contiene il tutto, non potrbb'essere altro che il testo sacro, la parola totale rivelata. Ma io non credo che la totalità sia contenibile nel linguaggio; il mio problema è ciò che resta fuori, il non-scritto, il non-scrivibile. Non mi rimane altra via che quella di scrivere tutti I libri, scrivere I libri di tutti gli autori possibili".
Nesta passagem dás conta de algo que até agora não te ocorrera e interrogas-te: haverá alguma relação entre o escritor atormentado e o autor textual da obra? Se existe uma relação entre o escritor atormentado e o autor textual da obra, então que função desmpenha o escritor produtivo?
Quanto à primeira questão, parece-te que a resposta é afirmativa. Isto porque consideras que, entendida no seu todo, a obra pode ser vista como resultado de uma série de fragmentos, de começos. Neste caso, as afirmações do escritor atormentado podem ser aplicadas, por extensão, ao denso tecido em que a obra se constitui. É aí que o jogo se exerce em toda a sua plenitude: "M'è venuta l'idea di scrivere un romanzo fatto solo d'inizi di romanzo. Il protagonista potrebb'essere un Lettore che viene continuamente interrotto. Il Lettore acquista il nuovo romanzo A dell'autore Z. Ma è una copia difettosa, e non riesce ad andare oltre línizio… Torna in libreria per farsi cambiare il volume…"
Além disso, ao percurso reflexivo em torno das palavras, exercido pelo escritor atormentado, corresponde o itinerário do autor textual da obra, percorrido pelo Leitor e pela Leitora.
O escritor produtivo surge, então, como elemento funcional nesta intrincada teia de relações. A relação que se estabelece entre ele e o escritor atormentado permite-te observar, no interior do capítulo VIII, aquilo que, numa dimensão mais ampla, pode ser entendido como identificação entre escritor atormentado e autor textual da obra. Do mesmo modo, um e outro desconhecem o desenrolar das histórias que nos contam. Do mesmo modo, ambos põem em acção o jogo da escrita, levado às últimas consequências: "Il libro è sbriciolato, dissolto, non più ricomponibile, come una duna di sabbia soffiata via dal vento".
Propões a ti próprio uma resposta para estas questões e apontas um caminho. Do ponto a que chegaste, consideras a existência de um autor empírico que apenas se deixa nomear, que lança os dados, dando início ao jogo. Consideras ainda a existência de um autor textual, de uma voz que percorre o texto através daquilo que é vivido e observado por uma personagem: o Leitor. Essa voz é o lugar onde emergem outras vozes, outros textos que vêm contribuir para a formação de um corpo, de um tecido complexo. Uma dessas vozes é a do narrador do capítulo VIII à qual tu atribuis a exemplaridade de uma deriva. Deriva exemplar? Em relação a quê? Crês que a exemplaridade da deriva dessa voz é a da personagem a que é atribuída. Isto é, nas considerações enunciadas por essa personagem podemos encontrar reunidas as características gerais da obra, contidas na prática discursiva da voz do seu autor textual. Apercebo-me agora da fadiga estampada no teu rosto, caro interlocutor desta reflexão. Já fizeste a tua parte. Vai descansar! Eu hei-de encontrar uma chave que me permita, mais tarde, abrir a porta do lugar onde vais repousar.

"Lettore, è tempo che la tua sballottata navigazione trovi un approdo".
Não é apenas o Leitor que deve "encontrar um cais", é também a voz do narrador que pressente agora uma revelação. O caminho que resta percorrer é breve, parece-nos dizer essa voz: "Quale porto può accoglierti più sicuro d'una grande biblioteca?"
É, de facto, numa biblioteca que o Leitor se encontra. É aí que ele, por fim, se dirige, na esperança de encontrar "i dieci romanzi che si sono volatilizzati" assim que iniciou a sua leitura. O que encontra, contudo, é a sua incapacidade para pôr fim ao jogo, pois não sabe como o fazer: "Anticamente un racconto aveva solo due modi per finire: passate tutte le prove, l'eroe e l'eroina si sposavano oppure morivano" - afirma o sétimo leitor com quem o Leitor se cruza.
O Leitor reconhece que o seu tempo é outro, assume essa contingência. Ele, enquanto joguete de um narrador que "viaja" em direcção às metas imprevisíveis do romance, sabe que o importante é a própria viagem, é a deriva, e que só essa o faz viver. Também o narrador sabe que apenas sobrevive enquanto a sua voz se fizer ouvir. No fundo, as palavras proferidas pelo sétimo leitor encerram esta marca: "Il senso ultimo a cui rimandano tutti i racconti ha due facce: la continuità della vita, l'inevitabilità della morte". Depois é "a inevitabilidade da morte" que se abre diante dos nossos olhos. O Leitor, casando com a Leitora, vê interromperem-se as suas aventuras, as suas viagens, num certo sentido morre. O mesmo não acontece ao autor empírico. No último parágrafo da obra encerram-se duas circunstâncias antagónicas: o fim da viagem, do jogo, e a consequente morte que daí resulta; e a sobrevivência do autor textual, agora recuperado. Ele é chamado para instaurar um novo desequilíbrio: é que, se por um lado assistimos à conclusão de uma viagem, por outro ficamos a saber que há um lugar onde poderemos vir a retomar o jogo, um lugar onde a vida continua: "Finchè so che al mondo c'è qualcuno che fa dei giochi di prestigio solo per amore del gioco, finchè so che c'è una donna che ama la lettura per la lettura, posso convincermi che il mondo continua…"

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