Io credo nelle persone, però non credo nella maggioranza delle persone. Anche in una società più decente di questa, mi sa che mi troverò a mio agio e d'accordo sempre con una minoranza. (Nanni Moreti)
Acerca de mim
terça-feira, 30 de novembro de 2010
Rousseau
Devaneios
«O amontoado de tantas circunstâncias fortuitas, a ascensão de todos os meus cruéis inimigos, determinada por assim dizer pela fortuna, por todos os que governam o Estado, todos os que dirigem a opinião pública, todas as pessoas importantes, todos os homens com crédito, escolhidos com muito cuidado entre aqueles que sentem por mim alguma animosidade secreta, para participarem na conspiração comum, constituíam acordo universal demasiado extraordinário para ser meramente fortuito. Um só homem que se recusasse a ser cúmplice, um só acontecimento que lhe fosse contrário, uma só circunstância imprevista que constituísse um obstáculo, bastariam para que tal conspiração falhasse. Todas as vontades, porém, todas as fatalidades, o destino e todas as revoluções fortaleceram a obra dos homens, e um concurso de circunstâncias tão impressionante que tem algo de prodigioso não me permite duvidar que o seu êxito total esteja escrito nos decretos eternos. Inúmeras observações particulares, quer passadas, quer presentes, confirmam a tal ponto esta minha opinião que, a partir de agora, não posso deixar de encarar como um desses segredos do Céu, impenetráveis à razão humana, essa obra que até agora considerava apenas fruto da maldade dos homens.
Esta ideia, longe de ser cruel e pungente para mim, consola-me, tranquiliza-me, e ajuda-me a resignar-me. Não vou tão longe como foi Santo Agostinho, que se consolaria com a condenação, se esse fosse a vontade de Deus. A minha resignação provém, é certo, de uma fonte menos desinteressada, mas não menos pura e mais digna, na minha opinião, so Ser perfeito que adoro. Deus é justo; quer que eu sofra, e sabe que estou inocente. É esse o motivo da minha confiança; o meu coração e a minha razão dizem-me que ela não me enganará. Deixemos, pois, agir os homens e o destino; aprendamos a sofrer sem um murmúrio; no fim, tudo deve reentrar na ordem e a minha vez chegará, mais cedo ou mais tarde.»
Esta ideia, longe de ser cruel e pungente para mim, consola-me, tranquiliza-me, e ajuda-me a resignar-me. Não vou tão longe como foi Santo Agostinho, que se consolaria com a condenação, se esse fosse a vontade de Deus. A minha resignação provém, é certo, de uma fonte menos desinteressada, mas não menos pura e mais digna, na minha opinião, so Ser perfeito que adoro. Deus é justo; quer que eu sofra, e sabe que estou inocente. É esse o motivo da minha confiança; o meu coração e a minha razão dizem-me que ela não me enganará. Deixemos, pois, agir os homens e o destino; aprendamos a sofrer sem um murmúrio; no fim, tudo deve reentrar na ordem e a minha vez chegará, mais cedo ou mais tarde.»
Jean-Jacques Rousseau, Os Devaneios do Caminhante Solitário
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
Liberdade
«Infelizmente para o bom senso das pessoas, o facto de serem falíveis está longe de ter o peso no seu juízo prático que lhe é sempre concedido teoricamente; pois ainda que cada um saiba muito bem que é falível, poucos acham necessário tomar quaisquer precauções contra a sua própria fiabilidade, ou aceitar a hipótese de que qualquer opinião de que tenham muita certeza possa constituir um dos exemplos de erro a que reconhecem estar sujeitos. Príncipes absolutos, ou outros que estão habituados a deferência ilimitada, sentem geralmente esta confiança plena nas suas próprias opiniões em relação a quase todos os assuntos. Pessoas mais afortunadamente colocadas, que por vezes ouvem as suas opiniões ser disputadas, e não estão completamente desabituadas de ser corrigidas quando não têm razão, colocam a mesma confiança ilimitada apenas nas opiniões que partilham com todos os que os rodeiam, ou com aqueles a quem estão habituados a submeter-se: pois a falta de confiança de uma pessoa no seu juízo solitário é proporcional à confiança implícita que coloca na infalibilidade do «mundo» em geral. E, para cada indivíduo, o mundo é aquela parte do mundo com a qualele entra em contacto; o seu partido, a sua seita, a sua igreja, a sua classe social: quase pode dizer-se que a pessoa para o qual o mundo é algo tão abrangente como o seu próprio país ou a sua própria época e, por comparação, liberal e tem vistas largas. E a sua confiança nesta autoridade colectiva não é de modo algum abalada por ter consciência de que outras eras, países, seitas, igrejas, grupos e partidos pensaram, e mesmo agora pensam, de modo exactamente oposto.»
John Stuart Mill, Sobre a Liberdade
A Confiança em Si
«Em toda a parte, a sociedade conspira contra a virilidade de cada um dos seus membros. É uma empresa de capital social cujos membros se põem de acordo para retirar liberdade e cultura àquele que come, a fim de melhor garantirem o pão quotidiano de cada um dos seus accionistas. A virtude mais estimada é o conformismo. A sociedade só sente aversão pela autoconfiança. Não gosta de realidades nem de criadores, mas de nomes e costumes..
Quem desejar ser um homem terá de ser um inconformista. Quem desejar colher louros imortais não deve ser impedido em nome da bondade, mas deverá indagar se isso é verdadeiramente bondade. Nada, em definitivo, é sagrado, a não ser a integridade da nossa própria mente. Absolveis-vos a vós próprios e recebereis so sufrágios do mundo. Lembro-me de uma resposta que a minha juventude me incitou a dar a um estimável conselheiro que tinha o hábito de me importunar com as boas velhas doutrinas da Igreja. Quando lhe disse: «Que quer que faça da sacralidade das tradições, se vivo plenamente no interior de mim mesmo?», o meu amigo sugeriu-me: «E se esses impulsos vierem de um plano inferior e não superior?» Então respondi-lhe: «Não me parece, mas se eu for filho do Demónio, pois bem, viverei de acordo com ele.» Para mim, nenhuma lei pode ser sagrada, a não ser a lei da minha própria natureza.»
Quem desejar ser um homem terá de ser um inconformista. Quem desejar colher louros imortais não deve ser impedido em nome da bondade, mas deverá indagar se isso é verdadeiramente bondade. Nada, em definitivo, é sagrado, a não ser a integridade da nossa própria mente. Absolveis-vos a vós próprios e recebereis so sufrágios do mundo. Lembro-me de uma resposta que a minha juventude me incitou a dar a um estimável conselheiro que tinha o hábito de me importunar com as boas velhas doutrinas da Igreja. Quando lhe disse: «Que quer que faça da sacralidade das tradições, se vivo plenamente no interior de mim mesmo?», o meu amigo sugeriu-me: «E se esses impulsos vierem de um plano inferior e não superior?» Então respondi-lhe: «Não me parece, mas se eu for filho do Demónio, pois bem, viverei de acordo com ele.» Para mim, nenhuma lei pode ser sagrada, a não ser a lei da minha própria natureza.»
Ralph Waldo Emerson, A Confiança em Si, a Natureza e Outros Ensaios
sábado, 27 de novembro de 2010
O Jogo do Reverso
«Quando Maria do Carmo Meneses de Sequeira morreu, estava eu a olhar para Las Meninas de Velasquez no museu do Prado. Era um meio dia de Julho e eu não sabia que ela estava a morrer. Fiquei a olhar para o quadro até às doze e um quarto, depois saí devagar procurando levar na memória a expressão da figura do fundo, lembro-me de ter pensado nas palavras de Maria do Carmo, a chave do quadro está na figura do fundo: é um jogo do reverso; atravessei o jardim e apanhei o autocarro até à Puerta del Sol, almocei no hotel, um gazpacho bem frio e fruta, e voltei à penumbra do meu quarto para fugir ao calor. Acordou-me o telefone por volta das cinco, ou talvez não, estava numa estranha sonolência, lá fora havia o rumor do trânsito da cidade e no quarto o do aparelho de ar condicionado que, porém, na minha consciência era o motor de um pequeno rebocador azul que atravessa a foz do Tejo à tardinha, enquanto eu e Maria do Carmo o seguíamos com o olhar. É uma chamada de Lisboa, disse-me a voz da telefonista, depois ouvi a pequena descarga eléctrica do comutador e uma voz de homem, neutra e baixa, perguntou o meu nome e depois disse sou Nuno Meneses Sequeira, Maria do Carmo morreu ao meio dia, o enterro é amanhã às cinco da tarde, telefono-lhe por sua vontade expressa. O telefone fez clic e eu disse está está, Senhor Doutor desligaram, disse a telefonista, a comunicação interrompeu-se.»
Antonio Tabucchi, O Jogo do Reverso
Identidade
`«É o desassossego que faz devir as subjectividades, que abre o futuro e a dinâmica do presente. A nossa superidentidade omnipresente que povoa cada uma das nossas acções e sonhos fecha os egos dentro de fronteiras tanto mais difíceis de transpor quanto elas são também mentais; mas, sobretudo, fecha-os em sim mesmos, oferecendo-lhes uma aparência de auto-suficiência e autonomia que torna todo o elemento exterior neutro e indiferente.»
José Gil, «A Subjectividade Perdida», in Em Busca da Identidade, o Desnorte
Máximas e Interlúdios
«Se se tiver carácter tem-se também uma vivência típica e própria que sempre se repete.»
Nietzsche, Para Além de Bem e Mal
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Destino e Carácter
«Não só é impossível, em qualquer caso, dizer o que, afinal, deve ser visto como função do carácter ou como função do destino na vida de uma pessoa (isto não teria aqui qualquer significado se ambos, por exemplo, se interpenetrassem apenas na experiência), como também o exterior que o homem activo encontra pode remeter, numa escala quase sem limite, para o seu interior, e este para o seu exterior, na mesma escala e por princípio, ou mesmo ser tomado essencialmente por esse exterior. Deste ponto de vista, o carácter e o destino, longe de se separarem teoricamente, acabam por coincidir. É o que Nietzsche tem em mente ao escrever: «Quando alguém tem carácter, há sempre alguma sua vivência que se torna recorrente». Ou seja: quando alguém tem carácter, o seu destino é, no essencial, constante. O que, por outro lado, pode também significar: não tem destino (esta foi a conclusão a que chegaram os estóicos).
(...)A sorte parece ser antes aquilo que liberta quem a tem da cadeia dos destinos e da rede do seu próprio destino. Não é por acaso que Holderlin diz que os deuses bem-aventurados «escapam ao destino». Também a sorte e a bem-aventurança, portanto, fogem à esfera do destino, tal como a inocência.
(...) O destino revela-se, portanto, na observação de uma vida como algo de condenado, no fundo como algo que começou por ser condenado para depois ser culpado. Goethe resumiu estas duas fases nas palavras: «Vós fazeis dos pobres culpados.» O Direito não condena à punição, mas à culpa.
(...) Existe então um conceito de presente - e é o autêntico, o único, que se aplica da mesma maneira ao destino na tragédia e às intenções da cartomante - totalmente independente do do carácter, e que busca o seu fundamento numa esfera completamente diferente.
(...) ... é preciso mostrar à moral que nunca são as qualidades que são moralmente importantes, mas sim as acções.
(...) Já a visão do carácter é libertadora sob todas as formas: está ligada à liberdade (de uma forma que não pode aqui ser demonstrada) pela via da sua afinidade com a lógica.
O traço de carácter não é, portanto, o nó na rede. É o sol do indivíduo no céu descorado (anónimo) do ser humano, que projecta a sombra da acção cómica. É isto que reconduz ao seu verdadeiro contexto a profunda consideração de Cohen segundo a qual toda a acção trágica, por mais sublime que seja nos seus coturnos, projecta uma sombra cómica.»
(...)A sorte parece ser antes aquilo que liberta quem a tem da cadeia dos destinos e da rede do seu próprio destino. Não é por acaso que Holderlin diz que os deuses bem-aventurados «escapam ao destino». Também a sorte e a bem-aventurança, portanto, fogem à esfera do destino, tal como a inocência.
(...) O destino revela-se, portanto, na observação de uma vida como algo de condenado, no fundo como algo que começou por ser condenado para depois ser culpado. Goethe resumiu estas duas fases nas palavras: «Vós fazeis dos pobres culpados.» O Direito não condena à punição, mas à culpa.
(...) Existe então um conceito de presente - e é o autêntico, o único, que se aplica da mesma maneira ao destino na tragédia e às intenções da cartomante - totalmente independente do do carácter, e que busca o seu fundamento numa esfera completamente diferente.
(...) ... é preciso mostrar à moral que nunca são as qualidades que são moralmente importantes, mas sim as acções.
(...) Já a visão do carácter é libertadora sob todas as formas: está ligada à liberdade (de uma forma que não pode aqui ser demonstrada) pela via da sua afinidade com a lógica.
O traço de carácter não é, portanto, o nó na rede. É o sol do indivíduo no céu descorado (anónimo) do ser humano, que projecta a sombra da acção cómica. É isto que reconduz ao seu verdadeiro contexto a profunda consideração de Cohen segundo a qual toda a acção trágica, por mais sublime que seja nos seus coturnos, projecta uma sombra cómica.»
Walter Benjamin, O Anjo da História
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
More Human Than Human
Imagine-se que a humanidade sente estar a perder a capacidade de se auto-regular, que fenómenos como o efeito de estufa ou a superpopulação das cidades terão atingido proporções dramáticas. Imagine-se depois que, por um acaso, a tecnologia mais avançada não terá sido capaz de evitar uma catástrofe nuclear.
Somos levados a pensar, perante um cenário tão aterrador, que a sociedade do bem-estar tem os dias contados. Será que o podemos afirmar? Será que podemos colocar o problema desta maneira?
Ao rever Blade Runner, o filme de Ridley Scot, fui de novo assaltado por uma necessidade vital de encontrar um sentido, um enquadramento actualizado das circunstâncias que ali são projectadas no futuro.
Desde logo me pareceu ser este o caminho a seguir já que, se não procedesse deste modo, correria o risco de apresentar simplesmente um plano de ocorrências susceptìvel de conduzir a minha análise para os dominios da mera previsão especulativa.
No prefácio a O Inumano (1), intitulado “Do Humano”, Jean-François Lyotard parece afirmar a dicotomia criança/adulto como exemplo de uma outra de carácter mais totalizador: a de humano/inumano. A este respeito afirma: “Desprovida da palavra, incapaz da paragem certa, hesitante quanto aos objectivos do seu interesse, inapta no cálculo dos seus benef’ícios, insensível à razão comum, a criança é eminentemente humana, pois a sua aflição anuncia e promete os possíveis”.
Rachel (a protagonista feminina), tal como os demais replicantes, “teria nascido“ adulta. Assim sendo, por não ter conhecido a infância, jamais poderá ser enquadrada na categoria de humano, pois dela não terá tido senão informações indirectas, produzidas através do contacto com o seu criador. Mas será isto assim tão linear? Parece-me que não. Vejamos: no filme, Rachel é apresentada como uma replicante especial a quem foi feito o implante da memória de uma sobrinha do seu criador. Partindo desse facto, a personagem percorre um trajecto sinuoso de justificação de si mesma, que se revela como elemento importante na sua auto-defesa.
Ao procurar no interior do corpo (aparelho) que lhe foi fornecido uma infância vivida num outro corpo, não estará ela a assumir o papel da criança que se interroga a si e aos adultos? E nessa medida, enquanto agente de um processo interior, efectuado em sentido inverso, não estará ela a ser “more human than human”, como afirma o Dr. Tyrrel? Irónicamente somos levados a concordar que (pelo menos) Rachel acaba por se revelar “mais humana do que o que é humano”, pelo menos no sentido que Lyotard parece querer atribuir à palavra “humano”.
Os replicantes, cada um à sua maneira, parecem querer encontar a resposta para o seu problema fundamental: a ausência de um sentido para além daquele para que terão sido criados. Em certo sentido criador e criatura parecem relacionar-se intimamente. Enquanto que à superfície desempenham papeis diferentes, para uns e outros existe um lugar em que os seus papéis se cruzam: o da necessidade de encontrar um prolongamento espacio-temporal das suas existências.
O filme apresenta-nos um mundo onde a tecnologia ocupa um lugar determinante, uma função primordial na preparação de outros mundos. A certa altura aquele mundo que nos é apresentado é um lugar sem tempo, onde o que se joga é a mera subrevivência. É aqui que os replicantes, através dos seus procedimentos, se apresentam como extensão dos seus criadores.
Ao serem criados, os replicantes desconhecem o seu tempo de duração. Contudo, são equipados com inteligência, com capacidade de pensar e sentir. Para serem perfeitos (numa dimensão genesíaca do termo) apenas lhes falta atingir a imortalidade. A sua luta, a sua revolta advém não apenas dessa circunstância mas também do facto de desconhecerem a sua durabilidade. Assim sendo, considero que o tempo se mostra em duas domensões distintas: a de um registo fotográfico, enquanto corte, momento de intersecção entre um antes e um depois (a este respeito considero pertinente o facto de quase todas as acções decorrerem de noite, circunstância que, de algum modo, condiciona a ideia de sucessão); e a de uma intemporalidade (no sentido em que, embora datados, os acontecimentos remetem para conceitos e para referências não exclusivas de um determinado período histórico).
No primeiro caso, coincidindo com a acção do filme, somos confrontados com o problema. No segundo, com a procura de um sentido para aquilo que, sugerido pelo registo fotográfico, constitui o temor do devir. É nesta angústia comum que se encontram criador e criatura.
Contudo, se para o criador o prolongamento no espaço se assume também enquanto prolongamento temporal, para a criatura o processo é inverso, de um espaço alargado parte em direcção a um outro, limitado, onde a vida se começa a desvanecer.
Para além disso, ao criador não se apresenta aqui o problema da origem mas sim o da continuidade da sua evolução, enquanto que à criatura é da determinação da origem que se trata. Mas não será tudo isto um jogo de espelhos?
De algum modo, servindo-nos dos termos de Jean-François Lyotard, somos tentados a dizer que, se a “inumanidade” do criador continuamente se “inumaniza”, a “inumanidade da criatura busca a “humanidade”. Nestas linhas divergentes caminham uns e outros na prossecução de um objectivo semelhante.
Somos levados a pensar, perante um cenário tão aterrador, que a sociedade do bem-estar tem os dias contados. Será que o podemos afirmar? Será que podemos colocar o problema desta maneira?
Ao rever Blade Runner, o filme de Ridley Scot, fui de novo assaltado por uma necessidade vital de encontrar um sentido, um enquadramento actualizado das circunstâncias que ali são projectadas no futuro.
Desde logo me pareceu ser este o caminho a seguir já que, se não procedesse deste modo, correria o risco de apresentar simplesmente um plano de ocorrências susceptìvel de conduzir a minha análise para os dominios da mera previsão especulativa.
No prefácio a O Inumano (1), intitulado “Do Humano”, Jean-François Lyotard parece afirmar a dicotomia criança/adulto como exemplo de uma outra de carácter mais totalizador: a de humano/inumano. A este respeito afirma: “Desprovida da palavra, incapaz da paragem certa, hesitante quanto aos objectivos do seu interesse, inapta no cálculo dos seus benef’ícios, insensível à razão comum, a criança é eminentemente humana, pois a sua aflição anuncia e promete os possíveis”.
Rachel (a protagonista feminina), tal como os demais replicantes, “teria nascido“ adulta. Assim sendo, por não ter conhecido a infância, jamais poderá ser enquadrada na categoria de humano, pois dela não terá tido senão informações indirectas, produzidas através do contacto com o seu criador. Mas será isto assim tão linear? Parece-me que não. Vejamos: no filme, Rachel é apresentada como uma replicante especial a quem foi feito o implante da memória de uma sobrinha do seu criador. Partindo desse facto, a personagem percorre um trajecto sinuoso de justificação de si mesma, que se revela como elemento importante na sua auto-defesa.
Ao procurar no interior do corpo (aparelho) que lhe foi fornecido uma infância vivida num outro corpo, não estará ela a assumir o papel da criança que se interroga a si e aos adultos? E nessa medida, enquanto agente de um processo interior, efectuado em sentido inverso, não estará ela a ser “more human than human”, como afirma o Dr. Tyrrel? Irónicamente somos levados a concordar que (pelo menos) Rachel acaba por se revelar “mais humana do que o que é humano”, pelo menos no sentido que Lyotard parece querer atribuir à palavra “humano”.
Os replicantes, cada um à sua maneira, parecem querer encontar a resposta para o seu problema fundamental: a ausência de um sentido para além daquele para que terão sido criados. Em certo sentido criador e criatura parecem relacionar-se intimamente. Enquanto que à superfície desempenham papeis diferentes, para uns e outros existe um lugar em que os seus papéis se cruzam: o da necessidade de encontrar um prolongamento espacio-temporal das suas existências.
O filme apresenta-nos um mundo onde a tecnologia ocupa um lugar determinante, uma função primordial na preparação de outros mundos. A certa altura aquele mundo que nos é apresentado é um lugar sem tempo, onde o que se joga é a mera subrevivência. É aqui que os replicantes, através dos seus procedimentos, se apresentam como extensão dos seus criadores.
Ao serem criados, os replicantes desconhecem o seu tempo de duração. Contudo, são equipados com inteligência, com capacidade de pensar e sentir. Para serem perfeitos (numa dimensão genesíaca do termo) apenas lhes falta atingir a imortalidade. A sua luta, a sua revolta advém não apenas dessa circunstância mas também do facto de desconhecerem a sua durabilidade. Assim sendo, considero que o tempo se mostra em duas domensões distintas: a de um registo fotográfico, enquanto corte, momento de intersecção entre um antes e um depois (a este respeito considero pertinente o facto de quase todas as acções decorrerem de noite, circunstância que, de algum modo, condiciona a ideia de sucessão); e a de uma intemporalidade (no sentido em que, embora datados, os acontecimentos remetem para conceitos e para referências não exclusivas de um determinado período histórico).
No primeiro caso, coincidindo com a acção do filme, somos confrontados com o problema. No segundo, com a procura de um sentido para aquilo que, sugerido pelo registo fotográfico, constitui o temor do devir. É nesta angústia comum que se encontram criador e criatura.
Contudo, se para o criador o prolongamento no espaço se assume também enquanto prolongamento temporal, para a criatura o processo é inverso, de um espaço alargado parte em direcção a um outro, limitado, onde a vida se começa a desvanecer.
Para além disso, ao criador não se apresenta aqui o problema da origem mas sim o da continuidade da sua evolução, enquanto que à criatura é da determinação da origem que se trata. Mas não será tudo isto um jogo de espelhos?
De algum modo, servindo-nos dos termos de Jean-François Lyotard, somos tentados a dizer que, se a “inumanidade” do criador continuamente se “inumaniza”, a “inumanidade da criatura busca a “humanidade”. Nestas linhas divergentes caminham uns e outros na prossecução de um objectivo semelhante.
“E se a retenção divina deve ser completa, é porque inclui do mesmo modo as informações que ainda não estão presentes diante das mónades incompletas representadas pelos nossos espíritos e que estão por acontecer no que chamamos futuro”.
terça-feira, 23 de novembro de 2010
As cidades e a memória
«O homem que cavalga longamente por terrenos bravios sente o desejo de uma cidade. Finalmente chega a Isidora, cidade onde os prédios têm escadas de caracol incrustadas de búzios marinhos, onde se fabricam artísticos óculos e violinos, onde quando o forasteiro está indeciso entre duas mulheres encontra sempre uma terceira, onde as lutas de galos degeneram em brigas sangrentas entre os apostantes. Era em todas estas coisas que ele pensava quando desejava uma cidade. Assim Isidora é a cidade dos seus sonhos: com uma diferença. A vida sonhada continha-o jovem; a Isidora chega em idade tardia. Na praça há o paredão dos velhos que vêem passar a juventude; ele está sentado em fila com eles. Os desejos são já recordações.»
Italo Calvino, As Cidades Invisíveis
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
O Escrúpulo
«O escrúpulo é a morte da acção. Pensar na sensibilidade alheia é estar certo de não agir. Não há acção, por pequena que seja - e quanto mais importante, mais isso é certo - que não fira outra alma, que não magoe alguém, que não contenha elementos de que, se tivermos coração, nos não tenhamos que arrepender. Muitas vezes tenho pensado que a filosofia real do eremita estará antes no esquivar-se a ser hostil, pelo simples facto de viver, do que em qualquer pensamento directamente relacionado com o isolar-se.»
Barão de Teive, A Educação do Estóico
Italo Calvino, Se una notte d'inverno un viaggiatore
Chegou porventura o momento de admitir que o tarot número um é o único que representa seriamente aquilo que consegui ser: algum escamoteador ou ilusionista que num banco de feira dispõe mas quantas figuras e, deslocando-as, concatenando-as, permutando-as, obtém uns tantos efeitos.
Italo Calvino, O Castelo dos destinos cruzados
Italo Calvino, O Castelo dos destinos cruzados
Estás prestes a começar a escrever a propósito de um romance de Italo Calvino: Se un notte d'inverno un viaggiatore . Já percorreste um número considerável de livros e sabes que muitos outros ficaram pelo caminho, pois a cada leitura que fazes encontras sempre mais uma, duas, três e mais referências a obras que poderias consultar. Pensas que haverá sempre uma oportunidade de o fazeres, embora saibas que provavelmente o não farás.
Decides limitar o teu campo de manobra e, por isso, optas por escolher um capítulo. É notória a razão por que decides desde já colocar-te numa posição defensiva: tu sentes-te desamparado por um autor que, entretanto, se escondeu na teia por ele próprio criada. Foste convidado para um banquete a que até mesmo o anfitrião faltou. Só te resta jogar.
Caminhas pelas margens de um texto que te assalta com propostas imprevistas. Já passaram várias vozes por ti neste teu percurso em que procuras construir uma unidade. Do primeiro encontro conservas a imagem de um narrador que apresenta uma obra: a mesma que tu próprio tens diante de ti. Primeiro sinal de afastamento do autor perante a obra produzida? É no mínimo curioso notar que o Calvino nomeado não corresponde ao Calvino-autor empírico. Trata-se da nomeação de um facto: a obra foi escrita por Calvino, Italo Calvino. Este, por sua vez, afastou-se preferindo o lado de fora da teia construída, ao denso emaranhado em que se constituíu. Aí emerge uma personagem: o Leitor. Será ele quem viajará ao longo da multiplicidade proporcionada pelo labirinto em que serenamente o texto se vai tornando. Por isso procura incessantemente uma origem, a palavra original de um texto que lhe foge desde a página 32: Da pagina 32 sei ritornato a pagina 17!
É sem dificuldade que se vê num bosque labiríntico onde os caminhos se parecem sistematicamente bifurcar. A certa altura, na sua busca de um caminho plano, toma uma decisão: «Lettore, hai deciso: andrai a trovare lo scritore».
Tu bem sabes como até então o trajecto deste Leitor foi feito de começos, de expectativas nunca concretizadas a compreendes a sua necessidade de preencher o vazio em que sente ter sido largado.
De repente, és tu que te instalas para a leitura. Do lugar em que te encontras podes observar um escritor que contempla "una giovane donna che legge". Como uma necessidade vital, ele procura nessa jovem mulher um sinal, um reflexo no seu rosto, capaz de lhe mostrar "quel movimento invisibile che è la lettura". Talvez esta mulher represente um papel de mediação: entre o escritor e o prazer da leitura. Num certo sentido ela surge investida de um poder insondável: o de proporcionar ao escritor um redimensionamento da leitura, o abandono da sua condição de "forzato dello scrivere". Por isso se opõem "sforzo innaturale" da escrita e "respiro". Este escritor hesita entre um lugar, dentro ou fora do texto, manifestando a sua angústia perante a situação em que, de facto, se encontra: no espaço da "distanza tra il mio scrivere e il suo leggere". Há, no entanto, um lugar onde estas duas circunstâncias se parecem encontrar: a mão do escritor. Incapaz de modificar a ordem dos acontecimentos, ele observa a sua mão que progride, caminha, ganha autonomia. É o seu corpo que então se instrumentaliza e transgride o limiar da sua existência. Contudo, o escritor afirma a sua incomodidade: "Come scriverei bene se non ci fossi!"
A jovem mulher surge, entretanto, duplamente observada. Para além do escritor já referido (a que a partir de agora chamaremos atormentado) também um outro escritor, produtivo, a observa. Qualquer um deles pensa ver na reacção da jovem mulher à leitura daquilo que gostaria de ver em quem lesse os seus livros. Mas, ao mesmo tempo, cada um deles considera que esse tipo de reacção à leitura só é possível perante os livros do outro. A jovem mulher é agora o lugar de desejo que ambos se esforçam por conquistar. Para o efeito, escritor atormentado e escritor produtivo decidem trocar de papéis. O resultado é surpreendente: "m'avete dato due copie dello stesso romanzo!" - afirma a jovem .
Chegado a este ponto tudo te parece caminhar para um vazio que se preenche sucessivamente com outro vazio e decides deter-te perante o desfecho intrigante da contenda. No capítulo VIII encontras, então, dois escritores de características diferentes. Até aqui tudo te parece fazer sentido. Mas por que motivo escreveram involuntariamente o mesmo romance? É esta a pergunta a que a partir de agora procurarás responder.
No início do capítulo VIII deparas com o escritor atormentado e, ao longo desse mesmo capítulo, vais dando conta de sucessivas posições desse escritor perante a circunstância da escrita. Escolhes uma delas, a que encontras na página 181: "Allo scrittore che vuole annullare se stesso per dar voce a ciò che è fuori di lui s'aprono due strade: o scrivere un libro che possa essere il libro unico, tale da esaurire il tutto nelle sue pagine; o scrivere tutti I libri, in modo da inseguire il tutto attraverso le sue immagini parziali. Il libro unico, che contiene il tutto, non potrbb'essere altro che il testo sacro, la parola totale rivelata. Ma io non credo che la totalità sia contenibile nel linguaggio; il mio problema è ciò che resta fuori, il non-scritto, il non-scrivibile. Non mi rimane altra via che quella di scrivere tutti I libri, scrivere I libri di tutti gli autori possibili".
Nesta passagem dás conta de algo que até agora não te ocorrera e interrogas-te: haverá alguma relação entre o escritor atormentado e o autor textual da obra? Se existe uma relação entre o escritor atormentado e o autor textual da obra, então que função desmpenha o escritor produtivo?
Quanto à primeira questão, parece-te que a resposta é afirmativa. Isto porque consideras que, entendida no seu todo, a obra pode ser vista como resultado de uma série de fragmentos, de começos. Neste caso, as afirmações do escritor atormentado podem ser aplicadas, por extensão, ao denso tecido em que a obra se constitui. É aí que o jogo se exerce em toda a sua plenitude: "M'è venuta l'idea di scrivere un romanzo fatto solo d'inizi di romanzo. Il protagonista potrebb'essere un Lettore che viene continuamente interrotto. Il Lettore acquista il nuovo romanzo A dell'autore Z. Ma è una copia difettosa, e non riesce ad andare oltre línizio… Torna in libreria per farsi cambiare il volume…"
Além disso, ao percurso reflexivo em torno das palavras, exercido pelo escritor atormentado, corresponde o itinerário do autor textual da obra, percorrido pelo Leitor e pela Leitora.
O escritor produtivo surge, então, como elemento funcional nesta intrincada teia de relações. A relação que se estabelece entre ele e o escritor atormentado permite-te observar, no interior do capítulo VIII, aquilo que, numa dimensão mais ampla, pode ser entendido como identificação entre escritor atormentado e autor textual da obra. Do mesmo modo, um e outro desconhecem o desenrolar das histórias que nos contam. Do mesmo modo, ambos põem em acção o jogo da escrita, levado às últimas consequências: "Il libro è sbriciolato, dissolto, non più ricomponibile, come una duna di sabbia soffiata via dal vento".
Propões a ti próprio uma resposta para estas questões e apontas um caminho. Do ponto a que chegaste, consideras a existência de um autor empírico que apenas se deixa nomear, que lança os dados, dando início ao jogo. Consideras ainda a existência de um autor textual, de uma voz que percorre o texto através daquilo que é vivido e observado por uma personagem: o Leitor. Essa voz é o lugar onde emergem outras vozes, outros textos que vêm contribuir para a formação de um corpo, de um tecido complexo. Uma dessas vozes é a do narrador do capítulo VIII à qual tu atribuis a exemplaridade de uma deriva. Deriva exemplar? Em relação a quê? Crês que a exemplaridade da deriva dessa voz é a da personagem a que é atribuída. Isto é, nas considerações enunciadas por essa personagem podemos encontrar reunidas as características gerais da obra, contidas na prática discursiva da voz do seu autor textual. Apercebo-me agora da fadiga estampada no teu rosto, caro interlocutor desta reflexão. Já fizeste a tua parte. Vai descansar! Eu hei-de encontrar uma chave que me permita, mais tarde, abrir a porta do lugar onde vais repousar.
"Lettore, è tempo che la tua sballottata navigazione trovi un approdo".
Não é apenas o Leitor que deve "encontrar um cais", é também a voz do narrador que pressente agora uma revelação. O caminho que resta percorrer é breve, parece-nos dizer essa voz: "Quale porto può accoglierti più sicuro d'una grande biblioteca?"
É, de facto, numa biblioteca que o Leitor se encontra. É aí que ele, por fim, se dirige, na esperança de encontrar "i dieci romanzi che si sono volatilizzati" assim que iniciou a sua leitura. O que encontra, contudo, é a sua incapacidade para pôr fim ao jogo, pois não sabe como o fazer: "Anticamente un racconto aveva solo due modi per finire: passate tutte le prove, l'eroe e l'eroina si sposavano oppure morivano" - afirma o sétimo leitor com quem o Leitor se cruza.
O Leitor reconhece que o seu tempo é outro, assume essa contingência. Ele, enquanto joguete de um narrador que "viaja" em direcção às metas imprevisíveis do romance, sabe que o importante é a própria viagem, é a deriva, e que só essa o faz viver. Também o narrador sabe que apenas sobrevive enquanto a sua voz se fizer ouvir. No fundo, as palavras proferidas pelo sétimo leitor encerram esta marca: "Il senso ultimo a cui rimandano tutti i racconti ha due facce: la continuità della vita, l'inevitabilità della morte". Depois é "a inevitabilidade da morte" que se abre diante dos nossos olhos. O Leitor, casando com a Leitora, vê interromperem-se as suas aventuras, as suas viagens, num certo sentido morre. O mesmo não acontece ao autor empírico. No último parágrafo da obra encerram-se duas circunstâncias antagónicas: o fim da viagem, do jogo, e a consequente morte que daí resulta; e a sobrevivência do autor textual, agora recuperado. Ele é chamado para instaurar um novo desequilíbrio: é que, se por um lado assistimos à conclusão de uma viagem, por outro ficamos a saber que há um lugar onde poderemos vir a retomar o jogo, um lugar onde a vida continua: "Finchè so che al mondo c'è qualcuno che fa dei giochi di prestigio solo per amore del gioco, finchè so che c'è una donna che ama la lettura per la lettura, posso convincermi che il mondo continua…"
Decides limitar o teu campo de manobra e, por isso, optas por escolher um capítulo. É notória a razão por que decides desde já colocar-te numa posição defensiva: tu sentes-te desamparado por um autor que, entretanto, se escondeu na teia por ele próprio criada. Foste convidado para um banquete a que até mesmo o anfitrião faltou. Só te resta jogar.
Caminhas pelas margens de um texto que te assalta com propostas imprevistas. Já passaram várias vozes por ti neste teu percurso em que procuras construir uma unidade. Do primeiro encontro conservas a imagem de um narrador que apresenta uma obra: a mesma que tu próprio tens diante de ti. Primeiro sinal de afastamento do autor perante a obra produzida? É no mínimo curioso notar que o Calvino nomeado não corresponde ao Calvino-autor empírico. Trata-se da nomeação de um facto: a obra foi escrita por Calvino, Italo Calvino. Este, por sua vez, afastou-se preferindo o lado de fora da teia construída, ao denso emaranhado em que se constituíu. Aí emerge uma personagem: o Leitor. Será ele quem viajará ao longo da multiplicidade proporcionada pelo labirinto em que serenamente o texto se vai tornando. Por isso procura incessantemente uma origem, a palavra original de um texto que lhe foge desde a página 32: Da pagina 32 sei ritornato a pagina 17!
É sem dificuldade que se vê num bosque labiríntico onde os caminhos se parecem sistematicamente bifurcar. A certa altura, na sua busca de um caminho plano, toma uma decisão: «Lettore, hai deciso: andrai a trovare lo scritore».
Tu bem sabes como até então o trajecto deste Leitor foi feito de começos, de expectativas nunca concretizadas a compreendes a sua necessidade de preencher o vazio em que sente ter sido largado.
De repente, és tu que te instalas para a leitura. Do lugar em que te encontras podes observar um escritor que contempla "una giovane donna che legge". Como uma necessidade vital, ele procura nessa jovem mulher um sinal, um reflexo no seu rosto, capaz de lhe mostrar "quel movimento invisibile che è la lettura". Talvez esta mulher represente um papel de mediação: entre o escritor e o prazer da leitura. Num certo sentido ela surge investida de um poder insondável: o de proporcionar ao escritor um redimensionamento da leitura, o abandono da sua condição de "forzato dello scrivere". Por isso se opõem "sforzo innaturale" da escrita e "respiro". Este escritor hesita entre um lugar, dentro ou fora do texto, manifestando a sua angústia perante a situação em que, de facto, se encontra: no espaço da "distanza tra il mio scrivere e il suo leggere". Há, no entanto, um lugar onde estas duas circunstâncias se parecem encontrar: a mão do escritor. Incapaz de modificar a ordem dos acontecimentos, ele observa a sua mão que progride, caminha, ganha autonomia. É o seu corpo que então se instrumentaliza e transgride o limiar da sua existência. Contudo, o escritor afirma a sua incomodidade: "Come scriverei bene se non ci fossi!"
A jovem mulher surge, entretanto, duplamente observada. Para além do escritor já referido (a que a partir de agora chamaremos atormentado) também um outro escritor, produtivo, a observa. Qualquer um deles pensa ver na reacção da jovem mulher à leitura daquilo que gostaria de ver em quem lesse os seus livros. Mas, ao mesmo tempo, cada um deles considera que esse tipo de reacção à leitura só é possível perante os livros do outro. A jovem mulher é agora o lugar de desejo que ambos se esforçam por conquistar. Para o efeito, escritor atormentado e escritor produtivo decidem trocar de papéis. O resultado é surpreendente: "m'avete dato due copie dello stesso romanzo!" - afirma a jovem .
Chegado a este ponto tudo te parece caminhar para um vazio que se preenche sucessivamente com outro vazio e decides deter-te perante o desfecho intrigante da contenda. No capítulo VIII encontras, então, dois escritores de características diferentes. Até aqui tudo te parece fazer sentido. Mas por que motivo escreveram involuntariamente o mesmo romance? É esta a pergunta a que a partir de agora procurarás responder.
No início do capítulo VIII deparas com o escritor atormentado e, ao longo desse mesmo capítulo, vais dando conta de sucessivas posições desse escritor perante a circunstância da escrita. Escolhes uma delas, a que encontras na página 181: "Allo scrittore che vuole annullare se stesso per dar voce a ciò che è fuori di lui s'aprono due strade: o scrivere un libro che possa essere il libro unico, tale da esaurire il tutto nelle sue pagine; o scrivere tutti I libri, in modo da inseguire il tutto attraverso le sue immagini parziali. Il libro unico, che contiene il tutto, non potrbb'essere altro che il testo sacro, la parola totale rivelata. Ma io non credo che la totalità sia contenibile nel linguaggio; il mio problema è ciò che resta fuori, il non-scritto, il non-scrivibile. Non mi rimane altra via che quella di scrivere tutti I libri, scrivere I libri di tutti gli autori possibili".
Nesta passagem dás conta de algo que até agora não te ocorrera e interrogas-te: haverá alguma relação entre o escritor atormentado e o autor textual da obra? Se existe uma relação entre o escritor atormentado e o autor textual da obra, então que função desmpenha o escritor produtivo?
Quanto à primeira questão, parece-te que a resposta é afirmativa. Isto porque consideras que, entendida no seu todo, a obra pode ser vista como resultado de uma série de fragmentos, de começos. Neste caso, as afirmações do escritor atormentado podem ser aplicadas, por extensão, ao denso tecido em que a obra se constitui. É aí que o jogo se exerce em toda a sua plenitude: "M'è venuta l'idea di scrivere un romanzo fatto solo d'inizi di romanzo. Il protagonista potrebb'essere un Lettore che viene continuamente interrotto. Il Lettore acquista il nuovo romanzo A dell'autore Z. Ma è una copia difettosa, e non riesce ad andare oltre línizio… Torna in libreria per farsi cambiare il volume…"
Além disso, ao percurso reflexivo em torno das palavras, exercido pelo escritor atormentado, corresponde o itinerário do autor textual da obra, percorrido pelo Leitor e pela Leitora.
O escritor produtivo surge, então, como elemento funcional nesta intrincada teia de relações. A relação que se estabelece entre ele e o escritor atormentado permite-te observar, no interior do capítulo VIII, aquilo que, numa dimensão mais ampla, pode ser entendido como identificação entre escritor atormentado e autor textual da obra. Do mesmo modo, um e outro desconhecem o desenrolar das histórias que nos contam. Do mesmo modo, ambos põem em acção o jogo da escrita, levado às últimas consequências: "Il libro è sbriciolato, dissolto, non più ricomponibile, come una duna di sabbia soffiata via dal vento".
Propões a ti próprio uma resposta para estas questões e apontas um caminho. Do ponto a que chegaste, consideras a existência de um autor empírico que apenas se deixa nomear, que lança os dados, dando início ao jogo. Consideras ainda a existência de um autor textual, de uma voz que percorre o texto através daquilo que é vivido e observado por uma personagem: o Leitor. Essa voz é o lugar onde emergem outras vozes, outros textos que vêm contribuir para a formação de um corpo, de um tecido complexo. Uma dessas vozes é a do narrador do capítulo VIII à qual tu atribuis a exemplaridade de uma deriva. Deriva exemplar? Em relação a quê? Crês que a exemplaridade da deriva dessa voz é a da personagem a que é atribuída. Isto é, nas considerações enunciadas por essa personagem podemos encontrar reunidas as características gerais da obra, contidas na prática discursiva da voz do seu autor textual. Apercebo-me agora da fadiga estampada no teu rosto, caro interlocutor desta reflexão. Já fizeste a tua parte. Vai descansar! Eu hei-de encontrar uma chave que me permita, mais tarde, abrir a porta do lugar onde vais repousar.
"Lettore, è tempo che la tua sballottata navigazione trovi un approdo".
Não é apenas o Leitor que deve "encontrar um cais", é também a voz do narrador que pressente agora uma revelação. O caminho que resta percorrer é breve, parece-nos dizer essa voz: "Quale porto può accoglierti più sicuro d'una grande biblioteca?"
É, de facto, numa biblioteca que o Leitor se encontra. É aí que ele, por fim, se dirige, na esperança de encontrar "i dieci romanzi che si sono volatilizzati" assim que iniciou a sua leitura. O que encontra, contudo, é a sua incapacidade para pôr fim ao jogo, pois não sabe como o fazer: "Anticamente un racconto aveva solo due modi per finire: passate tutte le prove, l'eroe e l'eroina si sposavano oppure morivano" - afirma o sétimo leitor com quem o Leitor se cruza.
O Leitor reconhece que o seu tempo é outro, assume essa contingência. Ele, enquanto joguete de um narrador que "viaja" em direcção às metas imprevisíveis do romance, sabe que o importante é a própria viagem, é a deriva, e que só essa o faz viver. Também o narrador sabe que apenas sobrevive enquanto a sua voz se fizer ouvir. No fundo, as palavras proferidas pelo sétimo leitor encerram esta marca: "Il senso ultimo a cui rimandano tutti i racconti ha due facce: la continuità della vita, l'inevitabilità della morte". Depois é "a inevitabilidade da morte" que se abre diante dos nossos olhos. O Leitor, casando com a Leitora, vê interromperem-se as suas aventuras, as suas viagens, num certo sentido morre. O mesmo não acontece ao autor empírico. No último parágrafo da obra encerram-se duas circunstâncias antagónicas: o fim da viagem, do jogo, e a consequente morte que daí resulta; e a sobrevivência do autor textual, agora recuperado. Ele é chamado para instaurar um novo desequilíbrio: é que, se por um lado assistimos à conclusão de uma viagem, por outro ficamos a saber que há um lugar onde poderemos vir a retomar o jogo, um lugar onde a vida continua: "Finchè so che al mondo c'è qualcuno che fa dei giochi di prestigio solo per amore del gioco, finchè so che c'è una donna che ama la lettura per la lettura, posso convincermi che il mondo continua…"
domingo, 21 de novembro de 2010
Dos Delitos e das Penas
Cesare Beccaria
«Muitas vezes os homens deixam os mais importantes regulamentos entregues à prudência do dia-a-dia ou à discrição daqueles cujo interesse é oporem-se às leis mais previdentes, as quais, de sua natureza, tornam universais as vantagens e resistem àquela força com que tendem a concentrar-se nas mãos de uns poucos, colocando de um lado o auge do poder e da felicidade, e de outro toda a fraqueza e miséria. Pelo que só depois de ter passado através de mil erros nas coisas mais essenciais à vida e à liberdade, só depois de chegados ao extremo de um cansaço de suportar os males, se decidem a remediar as desordens que os oprimem e a reconhecer as verdades mais palpáveis que, precisamente pela sua simplicidade, escapam aos espíritos vulgares, não habituados a analisar as coisas, mas a receber delas uma impressão global, mais por tradição do que por pbservação.
Abra-se a História e veremos que as leis, embora sejam ou devam ser pactos de homens livres, a maior parte das vezes foram apenas instrumento das paixões de uma minoria, ou nasceram tão-só de uma fortuita e passageira necessidade; veremos que elas não são já ditadas por um frio observador da natureza humana que em um só ponto concentrasse os actos de uma multidão e os analisasse segundo este princípio: a máxima felicidade repartida pelo maior número. Felizes aquelas poucas nações que não esperaram que o lento movimento das coincidências e das vicissitudes humanas fizesse suceder ao ponto extremo do mal um encaminhamento para o bem, mas abreviaram os momentos de transição com boas leis; e é digno da gratidão dos homens aquele filósofo que teve a coragem de, do seu obscuro e desprezado gabinete, lançar entre a multidão as primeiras sementes, por muito tempo infrutíferas, das verdades úteis.»
Abra-se a História e veremos que as leis, embora sejam ou devam ser pactos de homens livres, a maior parte das vezes foram apenas instrumento das paixões de uma minoria, ou nasceram tão-só de uma fortuita e passageira necessidade; veremos que elas não são já ditadas por um frio observador da natureza humana que em um só ponto concentrasse os actos de uma multidão e os analisasse segundo este princípio: a máxima felicidade repartida pelo maior número. Felizes aquelas poucas nações que não esperaram que o lento movimento das coincidências e das vicissitudes humanas fizesse suceder ao ponto extremo do mal um encaminhamento para o bem, mas abreviaram os momentos de transição com boas leis; e é digno da gratidão dos homens aquele filósofo que teve a coragem de, do seu obscuro e desprezado gabinete, lançar entre a multidão as primeiras sementes, por muito tempo infrutíferas, das verdades úteis.»
Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas
sábado, 20 de novembro de 2010
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
Entrevista a Teixeira de Pascoaes (1950)
- Gostava de saber o que pensa de Fernando Pessoa. As suas alusões irónicas ao «Supra Camões» e ao «Sumo Poeta da actualidade» parece não deixarem lugar a dúvidas de que Fernando Pessoa não lhe merece muita consideração como poeta...
- Evidentemente.
- Mas então seria muito interessante ouvir a sua opinião, fundamentada, sobre Fernando Pessoa, tanto mais que a teoria do «Supra Camões» foi sob a sua direcção n'A Águia, que ele a expôs, e além disso creio que devem ter convivido um com o outro...
- Conheci-o pessoalmente, mas convivi pouco, ou antes, não convivi com ele. Tinha um aspecto misterioso... Olhe: era quase só nos eléctricos que o encontrava (excepto uma vez em que conversei com ele no Martinho da Arcada). E, a propósito, ocorre-me que, numa ocasião, entrando eu num eléctrico (recordo-me bem, era da carreira da Estrela), deparo com Fernando Pessoa que me pergunta de chofre: «Já notou uma coisa, ó Pascoaes? Há escritores de quem toda a gente fala e ninguém lê, e outros de quem ninguém fala e toda a gente lê. E destas duas espécies, qual, em seu entender, tem mais valor?» Respondi que aqueles de quem toda a gente fala e ninguém lê, e Fernando Pessoa rematou: «é também a minha opinião».
- Evidentemente.
- Mas então seria muito interessante ouvir a sua opinião, fundamentada, sobre Fernando Pessoa, tanto mais que a teoria do «Supra Camões» foi sob a sua direcção n'A Águia, que ele a expôs, e além disso creio que devem ter convivido um com o outro...
- Conheci-o pessoalmente, mas convivi pouco, ou antes, não convivi com ele. Tinha um aspecto misterioso... Olhe: era quase só nos eléctricos que o encontrava (excepto uma vez em que conversei com ele no Martinho da Arcada). E, a propósito, ocorre-me que, numa ocasião, entrando eu num eléctrico (recordo-me bem, era da carreira da Estrela), deparo com Fernando Pessoa que me pergunta de chofre: «Já notou uma coisa, ó Pascoaes? Há escritores de quem toda a gente fala e ninguém lê, e outros de quem ninguém fala e toda a gente lê. E destas duas espécies, qual, em seu entender, tem mais valor?» Respondi que aqueles de quem toda a gente fala e ninguém lê, e Fernando Pessoa rematou: «é também a minha opinião».
Ensaios de Exegése Literária e Vária Escrita
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
Fernando Pessoa
«Viver é pertencer a outrém. Morrer é pertencer a outrém. Viver e morrer são a mesma coisa. Mas viver é pertencer a outrém de fora e morrer é pertencer a outrém de dentro. As duas coisas assemelham-se, mas a vida é o lado de fora da morte. Por isso a vida é a vida e a morte é a morte, pois o lado de fora é sempre mais verdadeiro que o lado de dentro, tanto que é o lado de fora que se vê.
Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela. Toda a emoção verdadeira tem portanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que não se sente.
Os cavalos da cavalaria é que formam a cavalaria. Sem as montadas, os cavaleiros seriam peões. O lugar é que faz a localidade. Estar é ser.
Fingir é conhecer-se.»
Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela. Toda a emoção verdadeira tem portanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que não se sente.
Os cavalos da cavalaria é que formam a cavalaria. Sem as montadas, os cavaleiros seriam peões. O lugar é que faz a localidade. Estar é ser.
Fingir é conhecer-se.»
Obras em Prosa
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Louis Aragon
Ce commencement de moi... j'ai très vite appris à lire, au sens enfantin qu'on donne à ce verbe. C'est-à-dire reconnaître les lettres, les associer, démêler les mots, en sortir un sens, prendre conscience de la chose écrite, pouvoir l'énoncer à mon propre étonnement. Mais quand on me mit un crayon dans les doigts, et qu'on entreprit m'enseigner comment le tenir, en tracer des signes séparés et tout ce qui s'en suit, j'eus uns espèce de révolte. Je refusais d'entendre la signification de ces exercices, je n'arrivais pas à me faire à l'idée que, puisque je lisais, difficilement encore il est vrai, des caractères formés par quelqu'un, avec une certaine fierté par exemple de reconnaître le lion dans quatre lettres liées, il allait de soi que je devais m'appliquer à répondre à l'écrit par l'écrit, à écrire moi-même. On avait beau s'attacher à me l'expliquer, je ne voyais là rien de raisonnable, puisque je pouvais parler, crier le mot LION, et même imiter le lion par le geste, le grognement, et la fureur, comme je l'avais vu une fois au Jardin d'Acclimatation. Mais l'écrire, pourquoi faire? puisque je le savais déjà.
Louis Aragon, Je n'ai jamais appris à écrire ou les incipit
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
Hermann Broch
«Hermann Broch, poeta à sua revelia, segundo as belíssimas e justas palavras de Hannah Arendt, apresenta-se numa posição original dilacerada acerca do que seja ser poeta. Como o Judeu, o artista, escreve ele no seu ensaio sobre Hofmannsthal, nunca chega à assimilação completa. Eterno convidado, convidado estrangeiro, desempenha esse papel sem que ele toque no seu poder de permanecer, de se demorar. Como trabalha em vista da formação da sua existência, o poeta está ameaçado de desdobramento, o que na arte em geral pode ser entrevisto como a sua ambiguidade fundamental.»
Maria Filomena Molder, O Absoluto que pertence à Terra
domingo, 14 de novembro de 2010
Camilo nas palavras de Pascoaes
«Camilo, pálido e trémulo, recebe, na memória assombrada, o desenho da borrasca, um desenho caótico ou do Caos... É o belo horrível visto e imaginado, ou visto em imagem, essa fêmea grávida, nos miolos dum Poeta. A imagem do mar pariu Os Lusíadas; e a da alma humana o D. Quixote. Cervantes viu-a, com se ela fosse uma estrela. E a nossa própria imagem não somos nós num efeito quimérico de luz? Estamos nesse efeito quimérico, como numa dor de cabeça ou em qualquer pensamento que nos domina e pode artisticamente exteriorizar-se. A obra de arte é a projecção, no exterior, da Fauna e Flora criadas na nossa intimidade. A obra lírica é um jardim, e a dramática também, mas zoológico, com bramidos de tigre e cantos de Sereia, a transcender para a Fábula. Um cavalo tem as patas no estrume e relincha, na falta do céu, contra o tecto da estrebaria, como dirá Camilo.»
O Penitente
Algumas pasagens de Teixeira de Pascoaes sobre Camilo Castelo-Branco:
«Teme a condenação, o degredo, por espírito anárquico e medroso; e deseja-o porque é nobre [...] Camilo é medroso, não cobarde. O medo pode ser vencido, a cobardia, nunca, pois deriva de uma conformação moral definitiva, como a estupidez. O seu drama é o da incerteza, dum temperamento líquido, ondulante, inadaptável à quietude. Vai na onda, não deitado, a flutuar, mas como um náufrago, em luta contra a morte.»
«Camilo, para mim, é um autor sagrado. Amo-o com todos os seus defeitos e virtudes. Não distingo as suas páginas, roubadas à Bíblia, de outras, plagiadas ao lugar-comum da literatura romântica. Não sou dos que blasfemam de Deus, por ele ter criado as moscas.
Amo-o, porque se entregou todo à sua obra, como as crianças se entregam aos seus brinquedos. E, por isso, os bonecos vivem, nas suas mãos.»
«Camilo nasceu, em Lisboa, a 16 de Março de 1825, conforme os registos oficiais, e também por ironia do Destino. É como se Maomé tivesse nascido na Gronelândia. Mas Alá não brincou com o seu Profeta; é um deus muito sério ou criado no deserto.»
«Felizes os que alcançam um absoluto indiscutível, no mal ou no bem, no céu ou no inferno. O purgatório é que é terrível, como a esperança.»
«Mas Camilo é ainda uma criança, a bordo dum paquete, batido do temporal. É o Atlântico apôr-lhe, diante dos olhos, a imagem futura da sua vida, a expiação. Viver é expiar o pecado de nascer. Somos nós que nascemos ou pecamos.»
«Teme a condenação, o degredo, por espírito anárquico e medroso; e deseja-o porque é nobre [...] Camilo é medroso, não cobarde. O medo pode ser vencido, a cobardia, nunca, pois deriva de uma conformação moral definitiva, como a estupidez. O seu drama é o da incerteza, dum temperamento líquido, ondulante, inadaptável à quietude. Vai na onda, não deitado, a flutuar, mas como um náufrago, em luta contra a morte.»
«Camilo, para mim, é um autor sagrado. Amo-o com todos os seus defeitos e virtudes. Não distingo as suas páginas, roubadas à Bíblia, de outras, plagiadas ao lugar-comum da literatura romântica. Não sou dos que blasfemam de Deus, por ele ter criado as moscas.
Amo-o, porque se entregou todo à sua obra, como as crianças se entregam aos seus brinquedos. E, por isso, os bonecos vivem, nas suas mãos.»
«Camilo nasceu, em Lisboa, a 16 de Março de 1825, conforme os registos oficiais, e também por ironia do Destino. É como se Maomé tivesse nascido na Gronelândia. Mas Alá não brincou com o seu Profeta; é um deus muito sério ou criado no deserto.»
«Felizes os que alcançam um absoluto indiscutível, no mal ou no bem, no céu ou no inferno. O purgatório é que é terrível, como a esperança.»
«Mas Camilo é ainda uma criança, a bordo dum paquete, batido do temporal. É o Atlântico apôr-lhe, diante dos olhos, a imagem futura da sua vida, a expiação. Viver é expiar o pecado de nascer. Somos nós que nascemos ou pecamos.»
sábado, 13 de novembro de 2010
Goethe
«Tens razão, caríssimo, é certo que haveria menos dor entre os homens - sabe Deus porque são feitos assim! - se, na incansável actividade da sua imaginação, não se ocupassem a evocar a memória do mal passado, mas antes a suportar um presente insípido.»
Goethe, A Paixão do Jovem Werther
sexta-feira, 12 de novembro de 2010
O Estado Ético
Num capítulo intitulado «Lo Stato Etico», datado de 1930, Benedetto Croce apresenta uma reflexão acerca do modo como, ao longo do tempo, foi evoluindo a ideia de ética, tendo em consideração o uso que o estado lhe dá.
Partindo da proposição, segundo a qual “o Estado não tem outra lei senão a própria potência ou força”, o autor manifesta a sua concordância com as palavras que Maquiavel enuncia ao considerar que “os Estados não se governam com padres nossos” e que requerem, em vez disso, a virtude, mas uma virtude diferente da virtude cristã: a virtude política.
Os últimos tempos têm sido férteis em retrocessos. Alguns civilizacionais. Os ideais da Revolução Francesa, tão apregoados por conhecidos republicanos, parecem estar a passar por um curto-circuito.
Com efeito, não posso deixar de manifestar a minha perplexidade quando sou informado de que um dos parâmetros da minha avaliação profissional, passará por encontrar “evidências” que, no meu dia a dia, comprovem a minha idoneidade ética e social. A minha perplexidade resulta do facto de, querendo ainda acreditar na boa vontade de quem legislou, a referência ética, utilizada neste contexto, ser reveladora de falta de cuidado na utilização de conceitos demasiadamente complexos para que deles se faça um uso leviano. Por outro lado, se o legislador agiu consciente do que fazia, a situação pode ser mais preocupante.
Há alguns anos, foi instaurado um processo disciplinar a um amigo meu. Na altura, lembro-me de ele me ter manifestado a sua estupefacção pelo modo insistente como, desde o início, ele se apercebeu da importância de no seu bilhete de identidade se encontrar inscrita a referência ao facto de ser casado. Dizia-me ele que tinha ficado com uma forte convicção de que, se o seu estado civil fosse outro, a sua situação poderia ter sido tratada de maneira diferente. Confesso que, naquele tempo, tudo isto me pareceu estranho. Era estranha a situação por que ele passava e estranha era também a impressão de que me tinha dado conta. Agora, perante a possibilidade de uma avaliação da minha componente ética, começo a não achar tão estranho. Num primeiro momento, depois de ser informado desta situação, procurei encontrar uma forma ligeira de lidar com o assunto, imaginando a fila de professores que a partir de agora se começariam a perfilar em busca de um documento que certificasse a sua dimensão ética. O estado está a tornar-se minúsculo, deixando de merecer a letra maiúscula com que, noutros tempos, fazia por merecer. A necessidade de um comprovativo desta natureza faz relevar a ideia de que, após avanços assinaláveis da nossa civilização, como, por exemplo, a separação entre as dimensões do estado e da Igreja, aparecer agora uma veia moralista encapotada que, apesar de ainda vivermos numa democracia formal, merece uma atenção especial. Até porque confesso a minha dificuldade em imaginar a quem será atribuída a capacidade para avaliar o comportamento ético dos outros, primeiro passo para a arbitrariedade num sistema já de si arbitrário. O reino é mesmo o da arbitrariedade e o pior é que é o direito fundamental à liberdade individual que está a ser posto em causa sem que os cidadãos se apercebam inteiramente. Sob a capa da crise, parece que começa a valer tudo. O meu país começa a não ser este…
Partindo da proposição, segundo a qual “o Estado não tem outra lei senão a própria potência ou força”, o autor manifesta a sua concordância com as palavras que Maquiavel enuncia ao considerar que “os Estados não se governam com padres nossos” e que requerem, em vez disso, a virtude, mas uma virtude diferente da virtude cristã: a virtude política.
Os últimos tempos têm sido férteis em retrocessos. Alguns civilizacionais. Os ideais da Revolução Francesa, tão apregoados por conhecidos republicanos, parecem estar a passar por um curto-circuito.
Com efeito, não posso deixar de manifestar a minha perplexidade quando sou informado de que um dos parâmetros da minha avaliação profissional, passará por encontrar “evidências” que, no meu dia a dia, comprovem a minha idoneidade ética e social. A minha perplexidade resulta do facto de, querendo ainda acreditar na boa vontade de quem legislou, a referência ética, utilizada neste contexto, ser reveladora de falta de cuidado na utilização de conceitos demasiadamente complexos para que deles se faça um uso leviano. Por outro lado, se o legislador agiu consciente do que fazia, a situação pode ser mais preocupante.
Há alguns anos, foi instaurado um processo disciplinar a um amigo meu. Na altura, lembro-me de ele me ter manifestado a sua estupefacção pelo modo insistente como, desde o início, ele se apercebeu da importância de no seu bilhete de identidade se encontrar inscrita a referência ao facto de ser casado. Dizia-me ele que tinha ficado com uma forte convicção de que, se o seu estado civil fosse outro, a sua situação poderia ter sido tratada de maneira diferente. Confesso que, naquele tempo, tudo isto me pareceu estranho. Era estranha a situação por que ele passava e estranha era também a impressão de que me tinha dado conta. Agora, perante a possibilidade de uma avaliação da minha componente ética, começo a não achar tão estranho. Num primeiro momento, depois de ser informado desta situação, procurei encontrar uma forma ligeira de lidar com o assunto, imaginando a fila de professores que a partir de agora se começariam a perfilar em busca de um documento que certificasse a sua dimensão ética. O estado está a tornar-se minúsculo, deixando de merecer a letra maiúscula com que, noutros tempos, fazia por merecer. A necessidade de um comprovativo desta natureza faz relevar a ideia de que, após avanços assinaláveis da nossa civilização, como, por exemplo, a separação entre as dimensões do estado e da Igreja, aparecer agora uma veia moralista encapotada que, apesar de ainda vivermos numa democracia formal, merece uma atenção especial. Até porque confesso a minha dificuldade em imaginar a quem será atribuída a capacidade para avaliar o comportamento ético dos outros, primeiro passo para a arbitrariedade num sistema já de si arbitrário. O reino é mesmo o da arbitrariedade e o pior é que é o direito fundamental à liberdade individual que está a ser posto em causa sem que os cidadãos se apercebam inteiramente. Sob a capa da crise, parece que começa a valer tudo. O meu país começa a não ser este…
terça-feira, 9 de novembro de 2010
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Paradoxo II
«Não gosto do paradoxo, mas muito me agrada a forma paradoxal. Não gosto do paradoxo, porque, frequentemente, é sinal de superficialidade, ou, pelo menos, de pouca compreensividade mental. Quem observa um facto em todas as suas partes e se apercebe de todas as suas relações, pensa necessariamente com equilíbrio e bom senso. Mas eu gosto da forma paradoxal, porque é um modo muito mais artístico de dizer as coisas. Recolhe com a maior evidência a relação que assumem, quando aparecem, as ideias na mente que as pensa, e produz no ouvinte e no leitor uma impressão vivaz e não susceptível de ser esquecida com facilidade.»
Benedetto Croce, Dal Libro dei pensieri
Paradoxo I
"Embora possa parecer um paradoxo - e os paradoxos são sempre coisas perigosas - não deixa de ser verdade que a Vida imita a Arte muito mais do que a Arte imita a Vida."
Oscar Wilde, Intenções
De repente
De repente, o vazio absurdo, inexplicável.
De repente, uma descida sem fim.
De repente, tinha-te nos meus braços inúteis, como inúteis são todos os desejos formulados em horas aflitas.
E tu ali. Caída sem reflexos nem cor. Ao longe havia vozes e gente... ao longe, apenas à distância infinita entre o momento e tudo o resto.
De repente, o crepúsculo, na sua forma mais sombria, apareceu. Nem sequer dei por ele, apenas sei que apareceu na sua forma mais sombria, porque, naquele momento, não podia ser outra a forma do crepúsculo.
Depois, aos poucos, a calma tornou-se diferente. Deixara de ser a calma, agora assustadora, da solidão infinita, para se tornar noutra coisa de onde emergia ilusoriamente a companhia.
É verdade, foi na conjugação das nossas solidões infinitas que nos encontrámos naquele momento em que a sorte e o destino pesaram sobre ti e sobre mim.
Agora, chegada a noite, a minha gratidão mostra-se-me infinita no momento - novo - em que te contemplo.
De repente, uma descida sem fim.
De repente, tinha-te nos meus braços inúteis, como inúteis são todos os desejos formulados em horas aflitas.
E tu ali. Caída sem reflexos nem cor. Ao longe havia vozes e gente... ao longe, apenas à distância infinita entre o momento e tudo o resto.
De repente, o crepúsculo, na sua forma mais sombria, apareceu. Nem sequer dei por ele, apenas sei que apareceu na sua forma mais sombria, porque, naquele momento, não podia ser outra a forma do crepúsculo.
Depois, aos poucos, a calma tornou-se diferente. Deixara de ser a calma, agora assustadora, da solidão infinita, para se tornar noutra coisa de onde emergia ilusoriamente a companhia.
É verdade, foi na conjugação das nossas solidões infinitas que nos encontrámos naquele momento em que a sorte e o destino pesaram sobre ti e sobre mim.
Agora, chegada a noite, a minha gratidão mostra-se-me infinita no momento - novo - em que te contemplo.
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
O meu país é um navio sem rumo certo. Não que a um país devesse exigir aquilo que não é exigível à natureza humana, uma vez que não sei o que é um rumo certo quando a ela me refiro. Apenas sei que o meu país titubeia nas mãos de capitães entregues a conversas de café. A tempestade avança sem que os capitães a que em refiro sejam capazes de um gesto mínimo em direcção à compreensão ínfima das ondas. Nas mãos de tais navegadores, existe uma gente que pressente a deriva e que, ainda sem reacção, procura permanecer à superfície do mar revolto. Há um país que espera e que, em silêncio, permanece no uso dessa bênção a que se usa chamar paciência. Os dias são cinzentos, de um cinzento pesado, escondidos nas costas de um sol que ilude. Vivemos um tempo de resignação positiva, porque, ainda em choque, não sabemos bem o que fazer. O dia virá em que a ideia de espera se sobreporá e dela nascerá a luz, a única capaz de manter a vigília de um sol sincero…
terça-feira, 2 de novembro de 2010
Carta a antigos alunos
No final de um ano inteirinho de trabalho, que fica de nós e das energias que dispendemos? Apenas sei que o centro daquilo que faço sobrevive naquilo que não é imediato. Apenas sei que ler e escrever são para mim actividades distintas de que me sirvo para me descobrir, para me conhecer. Ler nunca foi para mim um acto que visasse um resultado objectivo. Apenas sei que leio e que o faço como estratégia para enfrentar a minha solidão, os meus silêncios.
Por este motivo, também sei que a literatura não se ensina, prova-se, e que a experiência da leitura é o modo de que me sirvo para observar o mundo, para me observar a mim próprio e aos outros, para encontrar caminhos para as minhas angústias pessoais. Não sei ainda o que significa para cada um de vós uma experiência de leitura. Confesso que o primeiro atributo de um leitor é o de estar disponível para reflectir. Nos dias que correm temos de ser leitores num sentido alargado do termo. Temos de ser leitores do mundo, temos de nos encontrar connosco próprios. A leitura é o espaço onde me encontro comigo próprio, onde reflicto, onde me questiono.
Na minha opinião, a grandeza da vida reside na capacidade que todos temos de renascer diariamente até ao dia em que seremos consumidos pelo destino. A vida encerra, entre outros, esse enorme mistério: o de não sermos capazes de fugir da morte. Num certo sentido, preparamos a nossa morte enquanto vivemos através do trabalho diário, das trocas, das discussões que travamos a propósito daquilo que nos é de facto importante. Num tempo em que tudo é tão efémero, em que tudo se nos apresenta marcado pelas ideias de sucesso e de fama, eu prefiro andar na margem. Não vejo outro lugar onde me possa situar. Não pensem que o faço por um mero capricho de adolescente em busca de afirmação. Faço-o porque sou um dos que tiveram a fortuna de encontrar bons mestres que me ensinaram a pensar pela minha cabeça. Mesmo correndo o risco de errar, eu penso pela minha cabeça e tenho cada vez mais a consciência de que a ideia de liberdade em que acredito passa cada vez mais pela possibilidade que possamos ter de pensar e de reflectir sem condicionalismos.
Se eu tiver sido capaz de vos alimentar o espírito crítico, sentir-me-ei satisfeito com o nosso encontro. Em caso contrário, poderei não ter sido capaz de cumprir um dos meus objectivos essenciais: o de promover a vossa capacidade de reflexão acerca de vocês próprios e do mundo.
No quadro dos currículos do ensino secundário, e concretamente do vosso currículo de alunos de Português B, esta é sempre uma disciplina de passagem. Por aqui passam todos os alunos, mesmo que não tenham interesse absolutamente nenhum em relação às coisas da literatura. Contudo, a maior dificuldade que uma disciplina como esta tem para se fazer compreender, relaciona-se com a incapacidade que vocês, como as pessoas em geral encontram quando se têm de confrontar consigo mesmas. O exercício da leitura pressupõe um encontro do leitor com os seus medos, com os seus receios, com as suas angústias, com aquilo que de secreto existe em si. O leitor assim entendido será sempre alguem que lida de perto com a sua contingência e, por conseguinte, com a ideia da sua própria finitude, com a ideia da sua própria morte. Ao ler, de alguma forma preparo-me para a ideia de morte. Este é um dos segredos da leitura e simultaneamente uma das razões por que as pessoas se afastam dos livros.
Não pensem que sou mórbido, apenas sou alguém para quem a literatura encerra os desígnios mais profundos de cada um de nós. Tenho paciência para me aturar, por isso leio. O dia em que isto deixar de acontecer corresponderá ao primeiro dia da minha despedida. Então, terei deixado de pensar e passarei a estar à espera do dia em que sobre o meu corpo seja lançada a cal dos mortos.
Concluo esta reflexão com um poema de um autor italiano (tinha de ser, não?) que decidi traduzir para vós. Ele chama-se Cesare Pavese e diz o seguinte:
Virá a morte e terá os teus olhos –
esta morte que nos acompanha
de manhã à noite, sem dormir,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês todas as manhãs
quando em direcção a ti sózinha os dobras
no espelho. Oh querida esperança,
naquele dia saberemos também nós
que és a vida e és o nada.
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como ver no espelho
reaparecer um rosto morto,
como ouvir um lábio fechado.
Desceremos ao abismo mudos.
Por este motivo, também sei que a literatura não se ensina, prova-se, e que a experiência da leitura é o modo de que me sirvo para observar o mundo, para me observar a mim próprio e aos outros, para encontrar caminhos para as minhas angústias pessoais. Não sei ainda o que significa para cada um de vós uma experiência de leitura. Confesso que o primeiro atributo de um leitor é o de estar disponível para reflectir. Nos dias que correm temos de ser leitores num sentido alargado do termo. Temos de ser leitores do mundo, temos de nos encontrar connosco próprios. A leitura é o espaço onde me encontro comigo próprio, onde reflicto, onde me questiono.
Na minha opinião, a grandeza da vida reside na capacidade que todos temos de renascer diariamente até ao dia em que seremos consumidos pelo destino. A vida encerra, entre outros, esse enorme mistério: o de não sermos capazes de fugir da morte. Num certo sentido, preparamos a nossa morte enquanto vivemos através do trabalho diário, das trocas, das discussões que travamos a propósito daquilo que nos é de facto importante. Num tempo em que tudo é tão efémero, em que tudo se nos apresenta marcado pelas ideias de sucesso e de fama, eu prefiro andar na margem. Não vejo outro lugar onde me possa situar. Não pensem que o faço por um mero capricho de adolescente em busca de afirmação. Faço-o porque sou um dos que tiveram a fortuna de encontrar bons mestres que me ensinaram a pensar pela minha cabeça. Mesmo correndo o risco de errar, eu penso pela minha cabeça e tenho cada vez mais a consciência de que a ideia de liberdade em que acredito passa cada vez mais pela possibilidade que possamos ter de pensar e de reflectir sem condicionalismos.
Se eu tiver sido capaz de vos alimentar o espírito crítico, sentir-me-ei satisfeito com o nosso encontro. Em caso contrário, poderei não ter sido capaz de cumprir um dos meus objectivos essenciais: o de promover a vossa capacidade de reflexão acerca de vocês próprios e do mundo.
No quadro dos currículos do ensino secundário, e concretamente do vosso currículo de alunos de Português B, esta é sempre uma disciplina de passagem. Por aqui passam todos os alunos, mesmo que não tenham interesse absolutamente nenhum em relação às coisas da literatura. Contudo, a maior dificuldade que uma disciplina como esta tem para se fazer compreender, relaciona-se com a incapacidade que vocês, como as pessoas em geral encontram quando se têm de confrontar consigo mesmas. O exercício da leitura pressupõe um encontro do leitor com os seus medos, com os seus receios, com as suas angústias, com aquilo que de secreto existe em si. O leitor assim entendido será sempre alguem que lida de perto com a sua contingência e, por conseguinte, com a ideia da sua própria finitude, com a ideia da sua própria morte. Ao ler, de alguma forma preparo-me para a ideia de morte. Este é um dos segredos da leitura e simultaneamente uma das razões por que as pessoas se afastam dos livros.
Não pensem que sou mórbido, apenas sou alguém para quem a literatura encerra os desígnios mais profundos de cada um de nós. Tenho paciência para me aturar, por isso leio. O dia em que isto deixar de acontecer corresponderá ao primeiro dia da minha despedida. Então, terei deixado de pensar e passarei a estar à espera do dia em que sobre o meu corpo seja lançada a cal dos mortos.
Concluo esta reflexão com um poema de um autor italiano (tinha de ser, não?) que decidi traduzir para vós. Ele chama-se Cesare Pavese e diz o seguinte:
Virá a morte e terá os teus olhos –
esta morte que nos acompanha
de manhã à noite, sem dormir,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês todas as manhãs
quando em direcção a ti sózinha os dobras
no espelho. Oh querida esperança,
naquele dia saberemos também nós
que és a vida e és o nada.
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como ver no espelho
reaparecer um rosto morto,
como ouvir um lábio fechado.
Desceremos ao abismo mudos.
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