«Primeiro que tudo, a minha obra é um símbolo... é um mito, palavra grega, e de moda germânica, que se mete hoje em tudo e com que se explica tudo... quanto se não sabe explicar.
É um mito porque — porque... Já agora rasgo o véu, e declaro abertamente ao benévolo leitor a profunda ideia que está oculta debaixo desta ligeira aparência de uma viagenzita que parece feita a brincar, e no fim de contas é uma coisa séria, grave, pensada como um livro novo da feira de Leipzig, não das tais brochurinhas dos boulevards de Paris.
Houve aqui há anos um profundo e cavo filósofo de além-Reno, que escreveu uma obra sobre a marcha da civilização, do intelecto — o que diríamos, para nos entenderem todos melhor, o Progresso.
Descobriu ele que há dois, princípios no mundo: o espiritualismo, que marcha sem atender à parte material e terrena desta vida, com os olhos fitos em suas grandes e abstractas teorias, hirto, seco, duro, inflexível, e que pode bem personalizar-se, simbolizar-se pelo famoso mito do Cavaleiro da Mancha, D. Quixote; — o materialismo, que, sem fazer caso nem cabedal dessas teorias, em que não crê, e cujas impossíveis aplicações declara todas utopias, pode bem representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo velho, Sancho Pança.
Mas, como na história do malicioso Cervantes, estes dois princípios tão avessos, tão desencontrados, andam contudo juntos sempre; ora um mais atrás, ora outro mais adiante, empecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se poucas, mas progredindo sempre.
E aqui está o que é possível ao progresso humano.
E eis aqui a crónica do passado, a história do presente, o programa do futuro.
Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em que domina el-rei Sancho.
Depois há-de vir D. Quixote.»
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra
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