Dous segadores, Falcino e Silvano,
Em quanto os outros jazem à sombra fria
No mais ardente sol de todo o ano,
Eles sós segam e cantam, à porfia,
D'Amor; um, seus bens canta; outro, seu dano;
Arde o mundo, a cigarra só responde;
Amor ora aparece, ora se esconde.
Silv. Quem te não ama, Amor, não te conhece.
Quem se queixa de ti, de todo é cego.
Com amor se semeia e madurece
O branco trigo, que eu cantando sego.
Com amor a água do Mindego cresce,
Com amor cantam Ninfas no alto pego.
Com amor cantarei os meus amores
E vencerei cantando os segadores.
Fal. Quem a Amor chama amor, o nome lhe erra,
E é mais cego quem lhe cego chama.
Frechas e fogo que são senão guerra?
D'onde, senão dos olhos, lança a chama?
Não embebe tanta água a grossa terra,
Nem tanto a loura espiga a fouce chama,
Que eu mais água dos olhos não derrame
E que mais polo Amor em vão não chame.
Silv. Se tu, ó Célia, aqui chegasses ora,
Logo eu, desses teus olhos esforçado,
Mais feixes destes segarei num'hora
Dos que Falcino tem hoje segado.
Não venhas, Célia, ah!, não saias fora,
Que arde o Sol muito, está o campo abrasado,
E inda o Sol arderá mais, em te vendo,
Que, por te ver, se vai assi detendo.
Falc. Se a minha Lília aqui ora viesse,
Não arderia o Sol quanto agora arde,
Que eu sei que antes os raios encolhesse,
Mudando a sexta nua fresca tarde,
E que ant'ela a sua luz escurecesse.
Roga, Silvano, ao Sol que um pouco aguarde,
Verás, se Lília vem, a diferença;
Verás quem em amar e em segar vença.
Silv. Quem seu trigo semeia em terra boa
Recolhe sempre o desejado fruito,
Quando Abril sua água branda coa
E quando Maio vem ventoso e enxuito.
Não venha o mau Suão, que a espiga moa,
Nem muito frio o Sol, nem quente muito.
Assi a Amor também seus tempos vem,
E quem seus tempos lhe erra não o tem.
Falc. Eu semeei, Silvano, em hora escura,
Em parte onde não chove nem orvalha.
Enganou-me da terra a fermosura:
Nem semente colhi, nem grão, nem palha.
A Aristo nasce o trigo em pedra dura,
Que parece que ao vento o lança e espalha.
Assi co Amor mais a ventura val,
O mal paga co bem, o bem co mal.
Silv. Falcino, a voz e a fouce te enfraquece.
A ordem de segar levas errada.
A espiga que ante os pés se te oferece
Deixas, e segas a que está arredada.
A mão te treme, o rosto amarelece.
Um rego mal segaste, do outro nada.
Vai-te à sombra, Falcino, vai-te ao rio,
Que eu segarei cantando ao sol e o frio.
Falc. Bem podes tu vencer na fouce e braço,
Mas serás no amor de mim vencido.
Esses erros, Silvano, eu não os faço,
Que não trago na fouce o meu sentido.
Mas tu, a quem Amor dá tanto espaço,
Não tens jornal tão grande merecido.
S'eu hoje Lília vira, eu só segara,
Sem descansar, outra maior seara.
Erguei-vos já, ó fracos segadores,
Que jazeis atègora à sombra fria.
Vinde ver como segam os amores
Na mor força da calma, ao meio-dia.
Ó doce Amor, quem sofre teus ardores,
Como do Sol o ardor não sofreria?
Amai, amigos; ser-vos-á proveito:
Tereis o corpo ao sol e à neve afeito.
António Ferreira, Poemas Lusitanos
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