Tudo isso é Migdar e o reconhecimento de Migdar, como essência da realidade, chama-se Heterodoxia. Ou, traduzindo o mito, heterodoxia é a convicção de que o real não é apenas a cabeça mordendo sem hesitações, nem a cauda devorada sem resistência, mas o inteiro movimento de morder e ser mordido, a paixão circular da vida por si mesma. O movimento da cabeça, devorando com a certeza de existir um só caminho, pode receber o nome de Ortodoxia, assim como a convicção inversa da não existir caminho algum pode designar-se por Niilismo.
Fiel ao símbolo que a representa e à vida que nele se manifesta, a heterodoxia não é o contrário de ortodoxia, nem de niilismo, mas o movimento constante de os pensar a ambos. É o humilde propósito de não aceitar um só caminho pelo simples facto de ele se apresentar a si próprio como único caminho, nem de os recusar a todos só pelo motivo de não sabermos em absoluto qual deles é, na realidade, o melhor de todos os caminhos.
O primeiro que convém saber é que a heterodoxia não é fácil. Serviço divino a pouco cometido, paga-o a moeda que os deuses amam: a amargura e a solidão. Obedientes a um único mandamento, o de não recusar para as trevas aquilo que se vê na luz, essa exigência dá ao rosto dos heterodoxos uma aparência inequívoca de dureza. Porque o Senhor é um só e os amigos, a mulher, o pai e a mãe não lhe guardam fidelidade, o heterodoxo não pode fazer outra coisa que declarar que "pai e mãe e amigos" são os que servem o deus e não aqueles que o mundo aponta segundo a carne. Mas trocar os amigos, o pai e a mãe, pela loucura invisível da Verdade, é ofender o mais originário dos mandamentos, o grito mais veemente da claridade animal e por isso o preço da ofensa é pago em amargura e solidão. E na boca daqueles cujo espírito é paz e cujo coração está cheio de uma piedade comovida pelo destino de cada homem, o deus da heterodoxia põe a palavra "guerra". Porque a paz do mundo é a negação do homem, os que amam o homem, a ponto de se consumir nessa talvez inútil paixão, declaram que vêm trazer a guerra.»
Eduardo Lourenço, Heterodoxias
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