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domingo, 21 de outubro de 2012

Camilo

«Camilo, de enxada nas mãos, desenterra a defunta, à luz dos relâmpagos, que lhe gravam, na sombra, a silhueta violadora de sepulcros. Se ele visse, naquele instante, a sua figura amortalhada no clarão fosforescente, fugiria da igreja, apavorado, como se fugisse de si mesmo. Não vê. Continua a cavar, a tirar saibro e detritos de ossos e farrapos, o que sobreexiste do nosso ser... Encontra o corpo. Levanta-lhe o lenço da cara. É ela! É ela, mas não é a imagem da vida que lhe falava; é a imagem da morte silenciosa, a suprema tentação para um temperamento camiliano, de animal e fantasma, deste e do outro mundo...
O que ele ama realmente é a morte. Ama-a na Maria do Adro, como outros amam a vida até numa insignificância ou numa qualquer Maria... Camilo apaixonou-se por dois anjos, porque eram anjos de luar ou de sepulcro. Sim, a morte é a sua noiva. Namoram-se durante sessenta anos. Por fim, casaram-se, de repente. Foram gozar a lua de mel nos Campos Elísios...
Agora, não retira a vista da defunta. Tem-na, viva, na lembrança, e morta dentro de uma campa violada. Martiriza-o, sedu-lo, como viva e morta, duplamente. Também ele é um vivo e um morto, um animal febril e um fantasma contagiado desse lume. E arde, como aquela estrela, por nada. Todo o acto em si começa e finda, está, em si, portanto, absolutamente; e a sua existência, ou passada ou actual, afronta, indestrutível, todos os séculos. O destino de uma cousa é existir ou ter existido. O destino do mármore é ser mármore. Se o mudam numa Vénus de Milo, é um caso formal sem importância ou repercussão no Cosmos.
Camilo, junto do cadáver da donzela, sente ignotas impressões, em que há um requinte tormentoso de prazeres fúnebres. Tais impressões emanam da fundura de um túmulo, o mais profundo dos abismos. Vai dar ao inferno. E é o inferno que, neste momento, lhe queima a fronte, - uma espécie de febre quimérica e terrível. Tritura-lhe os nervos, afinando-os, para que eles ressoem as notas mais agudas do sofrimento, que o sofrimento é a música de Orfeu, em pleno Tártaro; uma arte que tem os seus adoradores.»

Teixeira de Pascoaes, O Penitente

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