Das minhas asas volto para meu lar,
asas da minha perda repentina.
Fui cântico, e Deus, a rima
ainda em meu ouvido a murmurar.
Torno-me de novo simples e silencioso,
e minha voz se abre à solidão;
curvou-se o meu rosto ditoso
para melhor oração.
Para os outros fui como um vento desavindo,
quando os chamei sacudindo.
Onde estão os Anjos, longe, estive eu
alto, onde a luz para o nada correu...
mas Deus profundamente obscureceu.
Os Anjos são o último ar
na orla do seu cimo;
dos seus ramos se separar,
é para eles como um sonho peregrino.
Aí mais na luz cada um acreditou
do que Deus força mais negra,
Lúcifer se refugiou
na sua proximidade como regra.
Ele é o príncipe no país da luz,
e a sua fonte está num lado
tão íngreme no nada que reluz,
que ele, de rosto chamuscado,
trevas implora.
É o claro deus do tempo que se demora,
para quem alto desperta,
e porque muitas vezes com dores grita
e muitas vezes com dores ri na realidade,
o tempo na sua felicidade acredita
e adere à sua autoridade.
O tempo é como seca margem
na folha de um livro usado.
É o manto brilhante de viagem
por Deus rejeitado,
quando Ele, que sempre foi profundidade,
do voo se cansou, da sua intensidade,
e se escondeu de cada ano começado
até que seu cabelo enraizou
e, crescendo, todas as coisas atravessou.
Rainer Maria Rilke, O Livro de horas
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