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segunda-feira, 17 de maio de 2021

Literatura

 

«MJS – Correndo o risco de achares que não tem sentido fazer esta pergunta sacramental, pergunto: O que é para ti a literatura?

AF- A pergunta «o que é…?» faz todo o sentido no campo da Física, por exemplo, onde para perguntas como «o que é a densidade?», ou «o que é a massa?», há, presumo, respostas exactas. Mas usar essa forma sintáctica da interrogação peremptória para domínios como a literatura, é aplicar um critério a uma área de problemática em que esse tipo de critério não é funcional. Neste sentido, essa é uma pergunta que, em relação a este objecto particular – a literatura -, talvez não faça sentido. Aquilo que se procurou durante muito tempo descrever como a característica central do que é «o literário», e que portanto definiria a literatura, nunca foi formulado de modo preciso. Houve tentativas brilhantes, como a dos formalistas russos que caracterizavam esse princípio como o da «literariedade». A literariedade, o característico do literário, poria em evidência a ostensividade do enunciado, a natureza estranha daquele modo de dizer, em detrimento do que está a ser dito. Isto não funciona, no entanto, porque na vida real as pessoas utilizam este mesmo tipo de procedimento sem estarem a fazer literatura. Para além disso, a literatura é um corpo muito instável. Hoje poucos percebem que Pessoa, tal como Pascoaes, considerasse Guerra Junqueiro o maior poeta do seu tempo. Entretanto, Junqueiro sofreu um eclipse quase total. Esta questão invoca necessariamente um conhecido debate contemporâneo, o debate sobre o chamado «cânone». O cânone é o conjunto daquelas obras que é objecto de discurso e de referência obrigatórios, bem como de presença atenuada nos programas escolares. Há uma série de teorias em relação a esta persistência dos «clássicos». Teorias conspirativas pretendem que o cânone é uma construção política, descrevendo esse elenco obrigatório de autores como motivado por interesses particulares. As pessoas que falam com grande ferocidade teórica contra a existência de um cânone, na prática não sugerem, todavia, alterações a introduzir no elenco de nomes. Ou seja, com o lado esquerdo da boca denunciam a sua existência, mas com o lado direito não nos dizem por que razão deverá substituir-se, por exemplo, Eça de Queirós por Pinheiro Chagas ou Arnaldo Gama. Em Portugal, há poucos candidatos recém-chegados ao cânone que o perturbem. Há uma peculiaridade adicional: quem impugna teoricamente a existência do cânone, persiste, no entanto, em falar dos autores canónicos. Mas decerto deverá explicar o porquê dessa obstinação, sob pena de ser visto como conivente com os interesses que denuncia, ou ter de explicar qual a natureza do valor que reconhece nos autores de que persiste em falar. A discussão sobre a noção de cânone foi importada dos Estados Unidos, país onde, de facto, alterações parcelares do cânone se dão, e o debate sobre isso é virulento. Têm um significado político, peculiar a uma democracia fortemente igualitária, e traduzem recomposições demográficas. Um aumento significativo da população hispânica, por exemplo, força o currículo a incorporar autores que digam alguma coisa a esse segmento da população. O panteão está desenhado para acolher mentores. É uma espécie de mesa do orçamento literário, que nenhum mandarinato cultural controla, ou se arroga sequer a mera ideia de controlar.»

Entrevista de Maria João Seixas  a António M. Feijó

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