«MJS
– Correndo o risco de achares que não tem sentido fazer esta pergunta
sacramental, pergunto: O que é para ti a literatura?
AF-
A pergunta «o que é…?» faz todo o sentido no campo da Física, por exemplo, onde
para perguntas como «o que é a densidade?», ou «o que é a massa?», há, presumo,
respostas exactas. Mas usar essa forma sintáctica da interrogação peremptória
para domínios como a literatura, é aplicar um critério a uma área de
problemática em que esse tipo de critério não é funcional. Neste sentido, essa
é uma pergunta que, em relação a este objecto particular – a literatura -, talvez
não faça sentido. Aquilo que se procurou durante muito tempo descrever como a
característica central do que é «o literário», e que portanto definiria a
literatura, nunca foi formulado de modo preciso. Houve tentativas brilhantes,
como a dos formalistas russos que caracterizavam esse princípio como o da
«literariedade». A literariedade, o característico do literário, poria em evidência
a ostensividade do enunciado, a natureza estranha daquele modo de dizer, em
detrimento do que está a ser dito. Isto não funciona, no entanto, porque na
vida real as pessoas utilizam este mesmo tipo de procedimento sem estarem a
fazer literatura. Para além disso, a literatura é um corpo muito instável. Hoje
poucos percebem que Pessoa, tal como Pascoaes, considerasse Guerra Junqueiro o
maior poeta do seu tempo. Entretanto, Junqueiro sofreu um eclipse quase total.
Esta questão invoca necessariamente um conhecido debate contemporâneo, o debate
sobre o chamado «cânone». O cânone é o conjunto daquelas obras que é objecto de
discurso e de referência obrigatórios, bem como de presença atenuada nos
programas escolares. Há uma série de teorias em relação a esta persistência dos
«clássicos». Teorias conspirativas pretendem que o cânone é uma construção
política, descrevendo esse elenco obrigatório de autores como motivado por
interesses particulares. As pessoas que falam com grande ferocidade teórica
contra a existência de um cânone, na prática não sugerem, todavia, alterações a
introduzir no elenco de nomes. Ou seja, com o lado esquerdo da boca denunciam a
sua existência, mas com o lado direito não nos dizem por que razão deverá
substituir-se, por exemplo, Eça de Queirós por Pinheiro Chagas ou Arnaldo Gama.
Em Portugal, há poucos candidatos recém-chegados ao cânone que o perturbem. Há
uma peculiaridade adicional: quem impugna teoricamente a existência do cânone,
persiste, no entanto, em falar dos autores canónicos. Mas decerto deverá
explicar o porquê dessa obstinação, sob pena de ser visto como conivente com os
interesses que denuncia, ou ter de explicar qual a natureza do valor que
reconhece nos autores de que persiste em falar. A discussão sobre a noção de
cânone foi importada dos Estados Unidos, país onde, de facto, alterações
parcelares do cânone se dão, e o debate sobre isso é virulento. Têm um
significado político, peculiar a uma democracia fortemente igualitária, e
traduzem recomposições demográficas. Um aumento significativo da população
hispânica, por exemplo, força o currículo a incorporar autores que digam alguma
coisa a esse segmento da população. O panteão está desenhado para acolher
mentores. É uma espécie de mesa do orçamento literário, que nenhum mandarinato
cultural controla, ou se arroga sequer a mera ideia de controlar.»
Entrevista de Maria João Seixas a António M. Feijó
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