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quarta-feira, 25 de abril de 2012

Caixão

«Talvez estejamos mortos e este cavalgar debaixo de chuva quase neve, na pálida noite, seja a eternidade e a sua pena. Em Goli Otok o gelo morde ainda mais, até o coração e a mente. Mas em Vorkuta, no gulag ártico, o inferno é ainda mais gelado - soube-o através de Julius, muitos anos depois. Julius Sattler, o Partido enviou-o para a União Soviética e ele acabou naquelas pinças ardentes de gelo - nem sequer ele soube alguma vez o porquê, que culpa o mandou para lá, encontrei-o muitos anos depois, foi um dos poucos que voltaram. Tornámo-nos especialistas em gelo; a História que vivemos é o zero absoluto, a morte da matéria. Também aí dentro, quero dizer, nesses ecrãs, deve fazer muito frio... Cyberia, Sibéria... Em Dachau, o doutor Rascher, SS Hauptsturmfuhrer, submerge os prisioneiros na água gélida, para ver se depois consegue reanimá-los, roçando-lhes o corpo inanimado contra o corpo nu de algumas deportadas, trazidas propositadamente para ali de Ravensbruck. O incêndio de Christiansborg...
Na velha casa, o pastor, um albino de olhos encovados, ofereceu-nos truta e leite.
«Sim, é o meu caixão» e indicava a urna num cantinho da igreja. «Há aqui tão pouca gente, que quando chegar a hora não se pode esperar que tratem de tudo, já fazem muito se o meterem aos ombros e o levarem para o cemitério. Aliás, quando eu pressentir que a minha hora está a chegar, vou estender-me lá dentro com a Bíblia na mão, como fez o Sera Asmundur Sveinsson, o meu antecessor, que agora jaz sob um rio de lava. Dois anos, senhor, as cinzas enegreciam quase todos os dias o céu; depois cataratas de lava, rios ardentes que escorriam do Hekla, o sol estava escuro como o sangue, aqueles pássaros pretos que existem apenas no Hekla caíam fulminados no ar ardente.»

Claudio Magris, Às Cegas

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