Io credo nelle persone, però non credo nella maggioranza delle persone. Anche in una società più decente di questa, mi sa che mi troverò a mio agio e d'accordo sempre con una minoranza. (Nanni Moreti)
Acerca de mim
quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012
[O Argumento Essencial contra uma Ditadura é que ela é Ditadura]
«O argumento essencial contra uma ditadura é que ela é ditadura, isto é, que é ilegal. O apresentarem os seus governos obra melhor, em um ou todos os sentidos, do que os governos legalmente constituídos não diminui a sua ilegalidade. Um homem que matasse outro voluntariamente, sem razão nem provocação, não pode esperar que lhe conte como atenuante - nem como tal lha contarão - que esse outro era provadamente um elemento daninho, que mais útil é morto que vivo.
Uma ditadura, apesar de ilegal, pode ser todavia justificada pelas circunstâncias, quando num país é tal o estado de anarquia, governamental ou social, que se torna impossível a vida da legalidade. Entre um estado de guerra civil, real ou latente, e um governo de força, por ilegal que seja, que coíba essa anarquia, nenhum homem de recto critério, por liberal ou democrata que seja, hesitará em qual apoie.
Sucede porém que até o ilegal, se quer que o consideremos justificado, tem que obedecer a certas normas, isto é, tem que ter, em certo modo, uma legalidade sua. Ora uma ditadura, justificável somente quando não há escolha entre ela e a anarquia, existe, por isso mesmo, só para pôr fim a essa anarquia. O seu papel é portanto limitado à manutenção da ordem até que a anarquia desapareça; desaparecida esta, está findo o papel da ditadura. Se a ditadura não consegue dominar a anarquia ou o espírito anárquico, é que o fenómeno anárquico entrou fundo de mais no espírito da sociedade, e então há uma crise profunda, que, por profunda, nenhum governo, de força ou não, pode debelar. Ou é o fim do país ou, para que este se salve, não há outro remédio senão deixar que a anarquia continue e dela saia, pela aprovação de leis naturais e sociais que ninguém conhece, a lenta e dolorosa salvação. E, quando um país está neste estado, a existência do governo de força não terá feito mais, pelas várias reacções que provoca, do que ter aumentado essa anarquia. Terá sido, afinal, apenas elemento anárquico a mais.
Sendo o papel da ditadura limitado à manutenção da ordem, o governo de força tem todavia que empregar-se também na resolução de problemas correntes, pois que o Estado não pode deixar de ser administrado. Aqui, porém, deve a ditadura limitar-se a um papel rigorosamente administrativo. É a ditadura, por assim dizer, a suspensão do legislativo pelo executivo; não é a substituição do executivo ao legislativo. Uma ditadura não tem pois que fazer leis. E, na proporção em que, saindo do seu justo papel, as fizer, nessa mesma proporção criará novas inimizades, novos descontentamentos. Por uma parte, não há lei que agrade a toda a gente, e assim cada lei faz o seu grupo de descontentes, que poderão ser muito diversos de lei para lei, de sorte que, somados, esses descontentamentos vão formando lentamente uma atmosfera de descontentamento geral. Por outra parte, o homem ama naturalmente a liberdade, pois ninguém gosta de ser mandado nem se sente grato por imposições que se lhe façam, de sorte que os governos de força (a não ser que os envolva um misticismo qualquer) são tendencialmente antipáticos a toda a gente. Segue que o descontentamento contra uma lei promulgada por um governo de força é naturalmente maior do que contra uma lei de um governo de opinião. E o não ter havido oportunidade de se discutir essa lei dá ao descontentamento um apoio francamente justo e racional.»
Uma ditadura, apesar de ilegal, pode ser todavia justificada pelas circunstâncias, quando num país é tal o estado de anarquia, governamental ou social, que se torna impossível a vida da legalidade. Entre um estado de guerra civil, real ou latente, e um governo de força, por ilegal que seja, que coíba essa anarquia, nenhum homem de recto critério, por liberal ou democrata que seja, hesitará em qual apoie.
Sucede porém que até o ilegal, se quer que o consideremos justificado, tem que obedecer a certas normas, isto é, tem que ter, em certo modo, uma legalidade sua. Ora uma ditadura, justificável somente quando não há escolha entre ela e a anarquia, existe, por isso mesmo, só para pôr fim a essa anarquia. O seu papel é portanto limitado à manutenção da ordem até que a anarquia desapareça; desaparecida esta, está findo o papel da ditadura. Se a ditadura não consegue dominar a anarquia ou o espírito anárquico, é que o fenómeno anárquico entrou fundo de mais no espírito da sociedade, e então há uma crise profunda, que, por profunda, nenhum governo, de força ou não, pode debelar. Ou é o fim do país ou, para que este se salve, não há outro remédio senão deixar que a anarquia continue e dela saia, pela aprovação de leis naturais e sociais que ninguém conhece, a lenta e dolorosa salvação. E, quando um país está neste estado, a existência do governo de força não terá feito mais, pelas várias reacções que provoca, do que ter aumentado essa anarquia. Terá sido, afinal, apenas elemento anárquico a mais.
Sendo o papel da ditadura limitado à manutenção da ordem, o governo de força tem todavia que empregar-se também na resolução de problemas correntes, pois que o Estado não pode deixar de ser administrado. Aqui, porém, deve a ditadura limitar-se a um papel rigorosamente administrativo. É a ditadura, por assim dizer, a suspensão do legislativo pelo executivo; não é a substituição do executivo ao legislativo. Uma ditadura não tem pois que fazer leis. E, na proporção em que, saindo do seu justo papel, as fizer, nessa mesma proporção criará novas inimizades, novos descontentamentos. Por uma parte, não há lei que agrade a toda a gente, e assim cada lei faz o seu grupo de descontentes, que poderão ser muito diversos de lei para lei, de sorte que, somados, esses descontentamentos vão formando lentamente uma atmosfera de descontentamento geral. Por outra parte, o homem ama naturalmente a liberdade, pois ninguém gosta de ser mandado nem se sente grato por imposições que se lhe façam, de sorte que os governos de força (a não ser que os envolva um misticismo qualquer) são tendencialmente antipáticos a toda a gente. Segue que o descontentamento contra uma lei promulgada por um governo de força é naturalmente maior do que contra uma lei de um governo de opinião. E o não ter havido oportunidade de se discutir essa lei dá ao descontentamento um apoio francamente justo e racional.»
Fernando Pessoa, Contra Salazar
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012
Prazer
«É difícil definir prazer no seu sentido mais elevado; a definição envolve uma porção de paradoxos aparentes, pois, devido a um inexplicável defeito de harmonia na constituição da natureza humana, o sofrimento das zonas inferiores do nosso ser está frequentemente associado ao prazer das superiores. Mágoa, terror, angústia, o próprio desespero, são, muitas vezes, as escolhidas expressões de uma aproximação ao mais elevado bem. A nossa simpatia na ficção trágica depende deste princípio; a tragédia deleita, pois propicia uma sombra desse prazer que existe na dor. Esta é também a origem da melancolia, a qual é inseparável da dulcíssima melodia. O prazer contido na mágoa é mais doce que a doçura do próprio prazer. Daí o dito: «Mais vale frequentar a casa enlutada do que a casa da alegria». Não é que esta elevada espécie de prazer esteja necessariamente ligada à dor. O deleite do amor e da amizade, o êxtase da admiração da natureza, a alegria da percepção e, mais ainda, da criação de poesia, estão, muitas vezes, totalmente desligadas.»
Percy Bysshe Shelley, Defesa da Poesia
domingo, 26 de fevereiro de 2012
Fama
«Nas artes que não sejam a literatura, temos uma língua universal, e poucas desinteligências há se exceptuada a insensibilidade de cada homem. Mas na literatura, em matéria de fama e de perpetuação da fama, depara-se-nos na esquina da especulação o problema da língua, e entramos numa paisagem diferente de conjecturas.
Há uma forma morta e uma forma viva, e cada uma destas é fama; há uma fama que trabalha e labuta, e uma fama que é como uma estátua, ou uma inscrição num túmulo, uma sobrevivência sem vida. Shakespeare vive e opera; Spenser é um nome sem força. Jamais alguém leu (nem mesmo, talvez, Spenser) Faeri Queen bem a fundo. Até as grandes epopeias completas têm pecado contra o interesse permanente. O ideal seria uma epopeia que resistisse como Milton e interessasse como Conan Doyle. Não é uma impossibilidade, porque as impossibilidades não existem; mesmo as contradições nos termos, graças a Hegel, deixaram de o ser.
Como sobreviverá o homem - se sobreviver - se não for pelo nome que tinha? Quanto da fama de Homero se deve a homens que o leram no original? Tem-se conhecimento de franceses a quem Shakespeare comoveu; contudo, nenhuma mente francesa logra jamais apreender o ritmo mental da frase e a súbita complexidade de sentido que só o conhecimento do inglês pelo lado da alma pode permitir ou conceder.»
Há uma forma morta e uma forma viva, e cada uma destas é fama; há uma fama que trabalha e labuta, e uma fama que é como uma estátua, ou uma inscrição num túmulo, uma sobrevivência sem vida. Shakespeare vive e opera; Spenser é um nome sem força. Jamais alguém leu (nem mesmo, talvez, Spenser) Faeri Queen bem a fundo. Até as grandes epopeias completas têm pecado contra o interesse permanente. O ideal seria uma epopeia que resistisse como Milton e interessasse como Conan Doyle. Não é uma impossibilidade, porque as impossibilidades não existem; mesmo as contradições nos termos, graças a Hegel, deixaram de o ser.
Como sobreviverá o homem - se sobreviver - se não for pelo nome que tinha? Quanto da fama de Homero se deve a homens que o leram no original? Tem-se conhecimento de franceses a quem Shakespeare comoveu; contudo, nenhuma mente francesa logra jamais apreender o ritmo mental da frase e a súbita complexidade de sentido que só o conhecimento do inglês pelo lado da alma pode permitir ou conceder.»
Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012
Crise de vers
«Tout à l'heure, en abandon de geste, avec la lassitude que cause le mauvais temps désespérant une après l'autre après-midi, je fis retomber, sans une curiosité mais ce lui semble avoir lu tout voici vingt ans, l'effilé de multicolores perles qui plaque la pluie, encore, au chatoiement des brochures dans la bibliothèque. Maint ouvrage, sous la verroterie du rideau, alignera sa propre scintillation: j'aime comme en le ciel mûr, contre la vitre, à suivre des lueurs d'orage.»
Stéphane Mallarmé, Crise de Vers
Broken Bicycles
Broken bicycles, old busted chains
Rusted handlebars out in the rain
Somebody must have an orphanage for
These things nobody wants anymore
September's reminding July
It's time to say goodbye
Summer is gone my love will remain
Old broken bicycles out in the rain
Broken bicycles, don't tell my folks
With all those playing cards pinned to the spokes
Laid out like skeletons out on the lawn
Wheels won't turn when the other half's gone
Seasons can turn on a dime
Somehow I forget every time
Well, the things that you've given me will always stay
Broken but I won't throw them away
Rusted handlebars out in the rain
Somebody must have an orphanage for
These things nobody wants anymore
September's reminding July
It's time to say goodbye
Summer is gone my love will remain
Old broken bicycles out in the rain
Broken bicycles, don't tell my folks
With all those playing cards pinned to the spokes
Laid out like skeletons out on the lawn
Wheels won't turn when the other half's gone
Seasons can turn on a dime
Somehow I forget every time
Well, the things that you've given me will always stay
Broken but I won't throw them away
Tom Waits, One from the heart
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012
I. IV
Chiunque sereno per una vita ben regolata
schiaccia sotto i piedi il fato superbo
e guardando in faccia la buona e la mala sorte
sa mantenere impassibile il volto,
costui non smuoveranno né la rabbia del mare minaccioso,
che fino al fondo agita l'onda sconvolta,
né l'instabile Vesuvio allor che dai crateri squarciati
sprigiona lingue di fuoco misto a fumo,
né il guizzo dell'ardente folgore
usa a colpire le alte torri.
Perché tanto timoroso rispetto provano i miseri
verso i feroci tiranni che a vuoto infuriano?
Non attenderti nulla, non temer nulla:
cosi disarmerai la loro furia impotente;
Chiunque invece trepidante teme o brama,
poiché non ha sicura padronanza di sé,
è lui stesso che getta lo scudo e, cedendo terreno,
annoda le catene da cui sarà trascinato.
schiaccia sotto i piedi il fato superbo
e guardando in faccia la buona e la mala sorte
sa mantenere impassibile il volto,
costui non smuoveranno né la rabbia del mare minaccioso,
che fino al fondo agita l'onda sconvolta,
né l'instabile Vesuvio allor che dai crateri squarciati
sprigiona lingue di fuoco misto a fumo,
né il guizzo dell'ardente folgore
usa a colpire le alte torri.
Perché tanto timoroso rispetto provano i miseri
verso i feroci tiranni che a vuoto infuriano?
Non attenderti nulla, non temer nulla:
cosi disarmerai la loro furia impotente;
Chiunque invece trepidante teme o brama,
poiché non ha sicura padronanza di sé,
è lui stesso che getta lo scudo e, cedendo terreno,
annoda le catene da cui sarà trascinato.
Severino Boezio, La Consolazione della Filosofia
Linguagem
«A tradução da linguagem das coisas na do homem não é apenas a tradução do insonoro no sonoro, mas também do que não tem nome, no nome. É, pois, a tradução de uma língua imperfeita numa mais perfeita, não faz mais do que juntar qualquer coisa, nomeadamente o conhecimento. Porém, a objectividade desta tradução tem o aval de Deus. Porque Deus criou as coisas, a palavra criadora nelas contida é o germe do nome cognoscível, da mesma forma que Deus, no fim, denominava a coisa, depois de a ter criado. Mas, aparentemente, esta denominação é apenas a expressão da identidade da palavra criadora e do nome cognoscível em Deus, e não a solução antecipada da tarefa que Deus expressamente confia ao homem: designadamente a de denominar as coisas. Na medida em que ele recebe a linguagem muda, sem nome, das coisas e a transforma no nome, em som, o homem cumpre esta tarefa. Tarefa que seria insolúvel se não foessem afins em Deus a linguagem humana dos nomes e a linguagem das coisas sem nomes, emanadas da mesma palavra criadora que, nas coisas, se teria tornado comunicação da matéria em em comunidade mágica e, no homem, linguagem do conhecimento e do nome no espírito bem-aventurado. Hamman diz: «Tudo o que o homem, no princípio, ouviu, viu com os olhos... e as suas mãos tocaram era... palavra viva; porque Deus era a palavra. Com esta palavra na boca e no coração, a origem da língua era tão natural, tão próxima e simples, como uma brincadeira de crianças...» O pintor Muller, na composição poética «O primeiro despertar de Adão e as suas primeiras noites ditosas», põe Deus a exortar o homem para que denomine, com as seguintes palavras: «Homem de terra, aproxima-te, torna-te mais perfeito na contemplação, torna-te mais perfeito através da palavra!» Nesta ligação entre contemplação e denominação, está intrinsecamente implícita a mudez comunicante das coisas (dos animais), relativamente à linguagem humana da palavra que a apreende no nome. No mesmo capítulo da composição, emana do poeta o conhecimento de que só a palavra, a partir da qual são criadas as coisas, permite ao homem a sua denominação, na medida em que ela, na diversidade das linguagens dos animais, ainda que mudas, se comunica na imagem: Deus confere, progressivamente, aos animais um sinal que os faz aparecer ao homem para que os denomine. De uma forma quase sublime verifica-se, deste modo, a comunidade linguística da criação muda com Deus na imagem do signo.»
Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012
Nem sequer sou poeira
«Não quero ser quem sou. A avara sorte
Quis-me oferecer o século dezassete,
O pó e a rotina de Castela,
As coisas repetidas, a manhã
Que, prometendo o hoje, dá a véspera,
A palestra do padre ou do barbeiro,
A solidão que o tempo vai deixando
E uma vaga sobrinha analfabeta.
Já sou entrado em anos. Uma página
Casual revelou-me vozes novas,
Amadis e Urganda, a perseguir-me.
Vendi as terras e comprei os livros
Que narram por inteiro essas empresas:
O Graal, que recolheu o sangue humano
Que o Filho derramou pra nos salvar,
Maomé e o seu ídolo de ouro,
Os ferros, as ameias, as bandeiras
E as operações e truques de magia.
Cavaleiros cristãos lá percorriam
Os reinos que há na terra, na vingança
Da ultrajada honra ou querendo impor
A justiça no fio de cada espada.
Queira Deus que um enviado restitua
Ao nosso tempo esse exercício nobre.
Os meus sonhos avistam-no. Senti-o
Na minha carne triste e solitária.
Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano,
Serei o paladino. Serei sonho.
Nesta casa já velha há uma adarga
Antiga e uma folha de Toledo
E uma lança e os livros verdadeiros
Que ao meu braço prometem a vitória.
Ao meu braço? O meu rosto (que não vi)
Não projecta uma cara em nenhum espelho.
Nem sequer sou poeira. Sou um sonho
Que entretece no sono e na vigília
Meu pai e irmão, o capitão Cervantes,
Que militou nos mares de Lepanto
E sabia uns latins e algum árabe...
Para que eu pudesse sonhar o outro
Cuja verde memória será parte
Dos vãos dias dos homens, eu suplico-te:
Meu Deus, meu sonhador, sonha-me ainda.»
Quis-me oferecer o século dezassete,
O pó e a rotina de Castela,
As coisas repetidas, a manhã
Que, prometendo o hoje, dá a véspera,
A palestra do padre ou do barbeiro,
A solidão que o tempo vai deixando
E uma vaga sobrinha analfabeta.
Já sou entrado em anos. Uma página
Casual revelou-me vozes novas,
Amadis e Urganda, a perseguir-me.
Vendi as terras e comprei os livros
Que narram por inteiro essas empresas:
O Graal, que recolheu o sangue humano
Que o Filho derramou pra nos salvar,
Maomé e o seu ídolo de ouro,
Os ferros, as ameias, as bandeiras
E as operações e truques de magia.
Cavaleiros cristãos lá percorriam
Os reinos que há na terra, na vingança
Da ultrajada honra ou querendo impor
A justiça no fio de cada espada.
Queira Deus que um enviado restitua
Ao nosso tempo esse exercício nobre.
Os meus sonhos avistam-no. Senti-o
Na minha carne triste e solitária.
Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano,
Serei o paladino. Serei sonho.
Nesta casa já velha há uma adarga
Antiga e uma folha de Toledo
E uma lança e os livros verdadeiros
Que ao meu braço prometem a vitória.
Ao meu braço? O meu rosto (que não vi)
Não projecta uma cara em nenhum espelho.
Nem sequer sou poeira. Sou um sonho
Que entretece no sono e na vigília
Meu pai e irmão, o capitão Cervantes,
Que militou nos mares de Lepanto
E sabia uns latins e algum árabe...
Para que eu pudesse sonhar o outro
Cuja verde memória será parte
Dos vãos dias dos homens, eu suplico-te:
Meu Deus, meu sonhador, sonha-me ainda.»
Jorge Luis Borges, História da Noite
domingo, 19 de fevereiro de 2012
Tolerância
«A tolerância é impossível ao crente verdadeiro de qualquer fé, sobretudo se ella excede os limites estreitos do feiticismo e da simples superstição, sem que attinja ainda o syncretismo dos pagãos e dos occultistas. Quem tem a sua religião por verdadeira, e por certa só dentro d'ella a salvação das almas, não pode senão considerar como um crime de tal vulto, que excede todos os crimes d'este mundo, o prégar outra religião, que não essa, ou o desviar d'ella aquelles que só nella terão sua salvação. Nada ha pois que pasmar do espirito perseguidor dos inquisidores, dos puritanos, e de todos quantos teem deveras uma fé que suppõem universal. Nem outra ordem de fé era possível a populações que viviam ainda num grau imperfeito de cultura e de civilização. Podemos lamentar os martyres d'essas perseguições, como os das perseguições aos christãos, fructo de um cuidado analogo, da segurança e da unidade do Império; mas nem devemos culpar os perseguidores como a criminosos, nem lamentar os martyres mais do que lamentamos aquelles que soffrem as injustiças da sorte.»
Fernando Pessoa, Sebastianismo e Quinto Império
sábado, 18 de fevereiro de 2012
Stanzas Written on the Road between Florence and Pisa
Oh, talk not to me of a name great in story;
The days of our youth are the days of our glory;
And the myrtle and ivy of sweet two-and-twenty
Are worth all your laurels, though ever so plenty.
What are garlands and crowns to the brow that is wrinkled?
'T is but as a dead-flower with May-dew besprinkled:
Then away with all such from the head that is hoary!
What care I for the wreaths that can only give glory?
Og FAME! - if I e'er took delight in the praises,
'T was less for the sake of thy high-sounding phrases,
Than to see the bright eyes of the dear one discover
She thought that I was not unworthy to love her.
There chiefly I sought thee, there only I found thee;
Her glance was the best of the rays that surround thee;
When it sparkled o'er aught that was bright in my story,
I knew it was love, and I felt it was glory.
The days of our youth are the days of our glory;
And the myrtle and ivy of sweet two-and-twenty
Are worth all your laurels, though ever so plenty.
What are garlands and crowns to the brow that is wrinkled?
'T is but as a dead-flower with May-dew besprinkled:
Then away with all such from the head that is hoary!
What care I for the wreaths that can only give glory?
Og FAME! - if I e'er took delight in the praises,
'T was less for the sake of thy high-sounding phrases,
Than to see the bright eyes of the dear one discover
She thought that I was not unworthy to love her.
There chiefly I sought thee, there only I found thee;
Her glance was the best of the rays that surround thee;
When it sparkled o'er aught that was bright in my story,
I knew it was love, and I felt it was glory.
George Gordon, Lord Byron, Selected Poems
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012
Nudez
«A afirmação ou verificação da própria nudez é a resposta de Job à notícia da perda de tudo aquilo que tornava a sua vida viável. A nudez corresponde à condição de Job, antes de adquirir tudo o que adquiriu («nu saí do ventre de minha mãe») e depois de lhe ter sido retirado tudo o que havia sido objecto de aquisição. A nudez corresponde, assim, ao núcleo do sujeito desprovido de aquisição e traduz a separabilidade entre o próprio ser do sujeito e tudo aquilo que pode tornar-se seu por aquisição. E isto de tal modo que a noção de nudez aponta justamente que o núcleo do próprio ser do sujeito só por si não basta, está radicalmente dependente da aquisição. Por outras palavras, a determinação da nudez tem, por um lado, uma conexão fundamental com a questão da aquisição (corresponde à marcação de uma insuficiência, da falta de algo mais - a nudez é nudez de qualquer coisa que permita cobri-la, superá-la). Por outro lado, a nudez a que Job faz referência tem que ver com a falta (e, portanto, com a aquisição) de algo que permita a própria vida. Finalmente, trata-se de uma nudez tal que a falta a que corresponde e a questão de aquisição que suscita é, como Adquirir a sua alma na paciência pretende fazer crer, a falta e a aquisição da alma. Ou seja, neste Discurso Edificante apresenta-se a nudez de que fala Job, a nudez que caracteriza os seres humanos naquilo que os constitui - ou seja, aquela falta de algo mais que viabilize a vida que afecta de raiz os seres humanos - como sendo uma nudez que só pode ser «vestida» pela aquisição da alma e, nesse sentido, uma nudez da alma.
N. Ferro e M. Jorge de Carvalho, nota a uma passagem a uma passagem de Adquirir a sua alma na paciência, de Soren Kierkegaard
terça-feira, 14 de fevereiro de 2012
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012
Diana e Actéon
«Gostaria de vos falar de Diana e Actéon: dois nomes que no espírito do meu leitor evocam poucas ou muitas coisas: uma situação, posturas, formas, um motivo pictórico, ou somente a lenda, porque a imagem e a história, vulgarizadas pelas enciclopédias, reduziram estes dois nomes - o primeiro dos quais foi um dos mil que a divindade usou perante a humanidade desaparecida - à visão única de um banho de mulheres surpreendidas por um intruso. Se esta visão não é «o que nós tivemos de melhor», será pelo menos a coisa mais difícil de imaginar. Mas se o meu leitor não estiver completamente vazio de recordações, e de recordações transmitidas por outras recordações, estes dois nomes podem brilhar subitamente como uma explosão de esplendores e emoções. Essa humanidade desaparecida até ao ponto em que o termo «desaparecida» - apesar de todas as nossas etnologias, de todos os nossos museus, etc. -, em que o termo «desaparecida», dizia eu, deixa de ter ele próprio sentido: esta humanidade, como pôde ela existir? E no entanto o que, ao caminhar, ela sonhou, o que pelos olhos de Actéon ela viu no seu sonho acordado, até imaginar os olhos de Actéon chega-nos como a luz das constelações para nós extintas, e para sempre longínquas: ora, é em nós que fulgura o astro luminoso, é na treva das nossas memórias, na grande noite constelada que trazemos no nosso seio, mas da qual fugimos refugiando-nos na ilusão do dia a dia. Aí confiamo-nos à nossa língua viva. Mas por vezes, entre duas palavras de uso quotidiano, deslizam algumas sílabas das línguas mortas: palavras-espectro que possuem a transparência da chama em pleno meio-dia, da lua no azul do céu; mas desde que as abriguemos na penumbra do nosso espírito, elas são de brilho intenso: que deste modo os nomes de Diana e Actéon restituam, por um instante os seus sentidos ocultos às árvores, ao veado sedento e à água, espelho da impalpável nudez.»
Pierre Klossowski, O Banho de Diana
sábado, 11 de fevereiro de 2012
Les Affinités Électives
Par-delà les tombeaux, les dalles funéraires,
Guettant sous leur beau masque une proie assurée,
Serpente le sentier vers le jardin d'Éden,
Où les eaux du Jourdain à l'Achéron confluent.
Sur son sable mouvant Sion veut vers le ciel
Paraître se dresser; mais, atrocement tendres,
Les Nixes, depuis six mille ans, attendent
Le sacrifice au lac pour se purifier.
Une enfant est venue, en sa sainte impudence,
Du salut porte l'ange, et le fils des pêchés.
Le lac engloutit tout! Malheur! - C'était pour rire!
Hélios va-t-il alors embraser notre terre?
Mais non! De l'embrasser avec amour il brûle!
Tu peux aimer le demi-dieu, ô coeur qui trembles!
Guettant sous leur beau masque une proie assurée,
Serpente le sentier vers le jardin d'Éden,
Où les eaux du Jourdain à l'Achéron confluent.
Sur son sable mouvant Sion veut vers le ciel
Paraître se dresser; mais, atrocement tendres,
Les Nixes, depuis six mille ans, attendent
Le sacrifice au lac pour se purifier.
Une enfant est venue, en sa sainte impudence,
Du salut porte l'ange, et le fils des pêchés.
Le lac engloutit tout! Malheur! - C'était pour rire!
Hélios va-t-il alors embraser notre terre?
Mais non! De l'embrasser avec amour il brûle!
Tu peux aimer le demi-dieu, ô coeur qui trembles!
Zacharias Werner
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
Poème Triste
On est assis sur la chaise et on écrit.
On est de plus en plus fatigué, de plus en plus fatigué.
On se couche à l'heure.
On mange à l'heure.
On a de l'argent,
C'est un cadeau du bon Dieu.
La vie est magnifique!
Le coeur bat de plus en plus fort, de plus en plus fort.
La mer est de plus en plus calme, de plus en plus calme,
Jusqu'au fond.
On est de plus en plus fatigué, de plus en plus fatigué.
On se couche à l'heure.
On mange à l'heure.
On a de l'argent,
C'est un cadeau du bon Dieu.
La vie est magnifique!
Le coeur bat de plus en plus fort, de plus en plus fort.
La mer est de plus en plus calme, de plus en plus calme,
Jusqu'au fond.
Walter Benjamin, Écrits auto-biographiques
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